Guilherme Boulos: Gota d’água
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Guilherme Boulos: Gota d’água

O governo estadual e a maior parte da mídia têm presenteado a população de São Paulo com uma verdadeira seca de informação. O ufanismo após as chuvas de fevereiro, com direito a declarações do governador de que “não há previsão de rodízio”, ocultam uma situação alarmante.

Guilherme Boulos 26 fev 2015, 03:39

Guilherme Boulos

O governo estadual e a maior parte da mídia têm presenteado a população de São Paulo com uma verdadeira seca de informação. O ufanismo após as chuvas de fevereiro, com direito a declarações do governador de que “não há previsão de rodízio”, ocultam uma situação alarmante.

Todos sabem que o período de chuvas se encerra em março e só é retomado no fim do ano. Por isso, os reservatórios têm que chegar a março num nível elevado para sustentar os meses de estiagem.

Se compararmos os níveis atuais com os de um ano atrás temos o seguinte: o Cantareira estava com 16,9% de sua capacidade, hoje está com -18,4%; o Guarapiranga estava com 63%, hoje está com 58%; e o Alto Tietê estava com 37,8%, hoje está com 18,3%.

Ou seja, teremos em 2015 muito menos água que no ano passado para enfrentar os meses secos. Vale uma menção ao caso do Cantareira, de longe o maior dos reservatórios. O governo e a mídia falam que seu nível está hoje em 10,8%. Ignoram solenemente que já estamos na segunda cota do volume morto.

As duas cotas representam 29,2% do reservatório, isto é, um volume de água subterrâneo, abaixo do 0% da represa. Se temos 10,8% da segunda cota, o nível real do reservatório continua negativo, em -18,4%. Fica a escolha, se o problema é de matemática ou de transparência informativa.

Discutir se haverá ou não racionamento é o mesmo que discutir se o Brasil perderá a Copa de 2014. É fato consumado. O racionamento –ou rodízio, como queiram– já ocorre há mais de um ano e afeta especialmente as regiões mais pobres de São Paulo. A tendência, dado o nível dos reservatórios, é que se agrave e tenha que ser oficializado nos próximos meses.

Vamos conferir alguns relatos de moradores das periferias da capital e região metropolitana: Jardim Cerejeiras e Jacira (quatro dias sem água, para dois com água); Jardim Valo Verde, em Embu das Artes (três dias sem, para um com); Jardim Ingá e Parque Novo Santo Amaro (dois dias sem, para um com); Vila Calu (água apenas das das 2 às 6 da manhã); Cidade Tiradentes (água apenas das 6h às 13 horas)

“Não há previsão de rodízio”, governador?

Ora, mesmo em bairros centrais o fornecimento está sendo cortado durante algumas horas do dia. A diferença é que condomínios e casas mais estruturadas costumam ter caixas d’água maiores, o que faz com que os cortes sejam pouco sentidos.

Problema não menos grave é o da qualidade da água. Em muitos lugares é frequente sair da torneira uma água barrenta ou então esbranquiçada pelo excesso de cloro. É difícil encontrar quem ainda confie em beber água da Sabesp. Talvez a velhinha de Taubaté. As declarações sobre o uso da água da Billings –pouco claras até agora– podem piorar ainda mais a situação.

Mas na Sabesp não é só a água que precisa ser mais transparente. De um lado, pede economia à população e multa quem consome mais. De outro, mantém contratos fechados com empresas (os chamados contratos de demanda firme) em que quanto mais se consome, menos se paga.

Nesses contratos, a empresa que consumir até 1 milhão de litros/mês pagará R$11,67 para cada mil litros. Já se consumir mais de 40 milhões de litros/mês irá pagar R$7,72 para cada mil litros. Estão neles shoppings, clubes, a Nestlé, Rede Globo e bancos como Bradesco e HSBC. O desperdício é premiado para as grandes empresas e multado aos consumidores residenciais.

E o problema é que você escova os dentes com a torneira aberta…

Neste cenário de colapso iminente, racionamento seletivo, água de má qualidade e privilégios a empresas privadas, a Sabesp resolveu testar a passividade dos paulistas anunciando essa semana um novo reajuste na tarifa.

Vale lembrar que a gota d’água para a explosão da maior revolta popular sobre o tema –a guerra da água, na Bolívia– foi justamente um reajuste tarifário abusivo.

É verdade que por aqui a síndrome de Estocolmo é quase uma epidemia e talvez não cheguemos tão longe. Mas também é verdade que a paciência de muitos já está para lá do volume morto.

Mobilizações irão ocorrer. Hoje haverá um caminhada até o Palácio dos Bandeirantes para exigir medidas emergenciais e maior transparência no tratamento da crise.

A evolução da mobilização social pela água nos próximos meses dependerá em grande medida da postura do governo do Estado. Se continuar negando o óbvio, atuando sem transparência e punindo o povo pela crise poderá criar as condições para uma revolta popular sem precedentes em São Paulo.

Guilherme Boulos é formado em filosofia pela USP, professor de psicanálise e membro da coordenação nacional do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto). Também atua na Frente de Resistência Urbana e é autor do livro “Por que Ocupamos: uma Introdução à Luta dos Sem-Teto”

Fonte: Folha de SP


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