Entre o possível e o necessário
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Entre o possível e o necessário

“Coisas realmente muito estranhas estão acontecendo aqui. Neve no sul da Europa. E estamos quase em março!”. Foi assim que um companheiro quis definir a situação atual da Grécia.

Thiago Aguiar 28 fev 2012, 21:40

“Coisas realmente muito estranhas estão acontecendo aqui. Neve no sul da Europa. E estamos quase em março!”. Foi assim que um companheiro quis definir a situação atual da Grécia. Surpreendidos pelo tempo ruim, a ventania de ontem e a neve de hoje, mantínhamos uma conversa amena sobre o clima grego. Não tão surpreendente, no entanto, é a situação de rápido empobrecimento do país. A dificuldade em manter o nível de vida tem sido uma angústia do povo grego nos últimos anos. O litro do óleo para calefação custa 1 euro. E uma família gasta entre 1500 e 2000 litros por ano para não passar frio.

Uma espécie de encantamento infantil tomou conta de mim nesta manhã ao olhar pela janela a paisagem montanhosa toda coberta de branco. Um cachorro muito grande, num quintal vizinho, chacoalha-se tentando retirar os grossos flocos que estão em seu casaco de pele natural. Nem todos têm a mesma sorte entretanto. Algum tempo depois, do encantamento baixo à realidade. Sair da estação de Monastiraki, no centro da cidade, ou caminhar pela praça Omonia são uma triste e mais real fotografia de Atenas. Dezenas de pessoas se encolhem nas calçadas para proteger-se do frio. O número daqueles que não pode mais pagar alguéis e simplesmente é atirado na rua aumenta dolorosamente. No meio de uma calçada, uma senhora com mais de 70 anos ajoelha-se e pede dinheiro levando as mãos à boca. Ela está com fome. Imagens assim estarão mais guardadas na minha cabeça do que as belas árvores cheias de neve, inéditas para este brasileiro. Um dos grandes desafios para o povo grego, nesse momento, é conseguir confiar em suas próprias forças em meio à desesperança e ao empobrecimento. É preciso lutar pelo mais concreto sem abandonar a luta pelo que é necessário.

Duas experiências locais

Nos últimos dias, pude conhecer duas experiências locais de resistência aos efeitos da crise. Em ambas, o movimento social e as diversas organizaçōes de esquerda uniram-se e passaram a usar a administração local para enfrentar as medidas do governo central. Sendo evidentemente uma exceção à regra, essas experiências no entanto mostram a importância que a organização local vem tomando nessa conjuntura. Assembleias de bairro, redes de solidariedade e comitês de resistência aos aumentos de impostos mostram que o povo grego vai buscando reunir-se para exigir mudanças.

Em Elliniko-Argyrupoli, pequena cidade vizinha a Atenas, pude conversar com o vice-prefeito da esquerda radical Iannis Maragos. Maragos conta que uma das medidas do primeiro plano de austeridade foi a unificação de municípios para “economizar” os repasses de dinheiro do governo central. Este próprio município foi resultado, como mostra o nome, da fusão de outros dois. Com orçamentos cada vez mais reduzidos e dificuldades crescentes, os militantes locais apostam no aumento da mobilização e da pressão para combater os efeitos de uma crise, que também se apresenta como crise urbana. Nessa cidade litorânea, o governo central pretende privatizar a zona costeira para empreendimentos hoteleiros e imobiliários, mas não conseguiu levar o projeto adiante porque a prefeitura tem organizado grandes manifestações para impedi-lo. Além disso, nela fica a área do antigo e desativado aeroporto. A população local pretende fazer com que a área vire um parque municipal, já o governo central quer privatizá-lo para transformá-la num grande empreendimento imobiliário. O embate durava meses quando o prefeito decidiu tomar uma atitude radical: passou semanas em greve de fome até que o governo central, constrangido, tivesse que abrir mão temporariamente do projeto. “Vamos seguir até o fim nisso. O antigo aeroporto vai se tornar um parque para a população e as crianças de Elliniko!”, afirma confiante o vice-prefeito, que tem consciência dos limites da mobilização local para oferecer uma saída à crise. “A mobilização precisa aumentar. A política da União Européia é a responsável pela atual situação do país. É necessário sair da Eurozona e não pagar nenhum centavo a mais dessa dívida ilegal”.

Em outra cidade, me entregam, com orgulho, um álbum de capa dura. Nela, apesar do alfabeto diferente, consigo identificar o título “80 anos de Nea Ionia: 1923 – 2003”. “Somos todos descendentes das famílias que vieram da Ásia Menor”, me explica um simpático senhor, velho militante comunista, agora responsável pelos assuntos financeiros da cidade. Antes disso, ao chegar, sou surpreendido por uma mesa com vários companheiros que vieram para conversar com o “jovem brasileiro”. O primeiro a falar é o prefeito Iraklis Gotsis, histórico militante da esquerda local, brutalmente torturado pela ditadura dos coronéis dos anos 70s. Para ele, a Grécia vive hoje sob uma “ocupação financeira” na qual a perda de soberania, o ataque aos direitos conquistados pelos trabalhadores e a miséria são a contrapartida da remuneração dos capitais europeus. Na cidade, mais de 20% da população está desempregada e o mesmo percentual é o de estabelecimentos que fecharam no último período.

Não bastasse esse cenário, 53% do orçamento municipal de Nea Ionia derreteram durante a crise. No entanto, o movimento local decidiu reagir. Organizando suas assembléias de bairro, passaram a criar redes de solidariedade para atender os que se encontram em situação mais difícil. A prefeitura decidiu mobilizar os cidadãos de Nea Ionia a simplesmente não pagar os impostos, em especial aqueles criados pelos planos de austeridade, “os impostos especiais”, que são imediatamente destinados ao pagamento dos juros da dívida (eles incidem especialmente em taxas como a de eletricidade). Além disso, organizou o mercados social contando com a ajuda de militantes e voluntários para dar comida de graça às numerosas famílias que não podem mais pagar por elas. “A unidade do movimento social e de todos os setores de esquerda permitiu resistir a algumas das medidas, mas sabemos que é necessário ampliar a unidade do movimento em todo o país e seguir a luta na rua para mudar esta situação”, afirma Vassilis, representante de uma assembleia.

Outro futuro é necessário. Será também possível?

As experiências de Elliniko e Nea Ionia demonstram a efervescência do povo grego e a necessidade não só de lutar nas ruas pelo fim do plano de ajuste e pela queda do governo Papademos. É preciso encontrar respostas para os dilemas imediatos que se acumulam dia a dia. Esta é mais uma das enormes tarefas com que o movimento e a esquerda agora têm de lidar. E não há resposta possível para estes problemas que não esteja na auto-organização. Nessas pequenas batalhas, a grande guerra contra o desespero e a desesperança vai se desenvolvendo.

Nesta quarta-feira, seguirá a votação de algumas medidas adicionais do acordo para a concessão do último empréstimo, como mais diminuiçōes nos salários e aumentos de impostos. Em pauta, vejam vocês, também estará a privatização da orla de Elliniko e da área do antigo aeroporto. Uma greve de fome do prefeito local já parece não ser suficiente para barrar os interesses da Troika. Todos, provavelmente, estarão daqui a algumas horas na frente do Parlamento em um novo ato na praça Syntagma se o tempo contribuir um pouco. Fazer o possível é necessário. Transformar o necessário numa possibilidade também.

* Thiago Aguiar é militante do Juntos! SP e diretor da UNE pela Oposição de Esquerda. Ele está na Grécia acompanhando a situação de luta no país e representando o Juntos!


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