Nos últimos dias, Lula esteve no Rio para realizar diversas agendas de caráter pré-eleitoral. Quero me ater nesse texto sobre duas delas. No sábado, o ex-presidente se encontrou com jovens lideranças de favelas e movimentos sociais. Muitos dos quais constroem iniciativas fundamentais em seus territórios, como ações de solidariedade e educação popular, além de construírem dinâmicas mais amplas de enfrentamento à violência policial e ao genocídio da juventude negra. O debate não é sobre as pessoas, mas sobre a política que Lula busca construir com e através delas. 

As falas, em que pesem terem colocado diversas críticas aos governos anteriores, expressaram elementos de apoio à candidatura do petista. Ainda que em graus variados, algumas até pontuaram que não farão mais “política sem nós” e que desta vez será sem conciliação com a burguesia. 

No dia seguinte, a direção do PSOL/RJ, junto às lideranças das três bancadas parlamentares do partido, se reuniu com o pré-candidato buscando a construção de uma suposta frente de esquerda, “com um programa popular que atenda às necessidades do nosso povo, para que possamos enfrentar o bolsonarismo e a agenda liberal”. Tenho dúvidas se essa é a política mais adequada tanto para derrotar a extrema-direita, como para construir uma alternativa de esquerda que tenha o antirracismo no coração de seu programa. 

Sem dúvidas, para realizar esse debate é necessário compreender o papel da esquerda no Rio de Janeiro nos últimos anos. A cidade é o berço do bolsonarismo, que possui a polícia militar que mais mata, ao mesmo tempo que tem o PSOL enquanto principal partido de esquerda, a despeito do peso nacional do PT.

De 1998, com a eleição de Garotinho, até 2014, o PT esteve no governo do Estado, seja ocupando os postos majoritários, seja como base de governo. A política de alianças estava relacionada com a tática eleitoral do partido que levou Lula e Dilma à presidência. Sempre buscando aliança com partidos da burguesia, para chegar ao governo e promover pequenas medidas sociais compensatórias, sem que fosse buscada qualquer transformação estrutural na sociedade.

Tratando da segurança pública, a situação é drástica. Na esfera federal, o governo sancionou a lei de drogas que hoje é a principal responsável pelo encarceramento de jovens negros e favelados, sem produzir qualquer melhoria da situação criminal. Junto ao governo estadual, do qual compunha, promoveu a ocupação dos Complexos da Maré, do Alemão e da Penha, utilizando as Forças Armadas para a instalação das UPPs. Os gastos foram bilionários. Novamente, nenhuma melhoria na vida do morador, pelo contrário. 

Isso sem mencionar a participação do PT nos governos de Paes, os quais foram pautados na lógica de “Cidade Maravilhosa” para aqueles que podem pagar. Sempre expulsando pessoas pobres de determinadas áreas da cidade, para privilegiar os empreendimentos imobiliários e turísticos. O atual prefeito do Rio, que continua sua política de remoções agora no terceiro mandato, também se reuniu com Lula.

Não podemos nos esquecer o que foram os governos do PT e inclusive o seu papel no surgimento do bolsonarismo, relacionado ao processo de frustração de diversos setores com a política petista, que teve sua expressão máxima nas ruas em junho de 2013. Na ausência de uma alternativa à esquerda para enfrentar a crise, Bolsonaro se apresentou como um outsider que questionava a lógica corrupta do regime político e emergiu junto com a parcela mais reacionária da sociedade.

Inclusive, os próprios políticos da burguesia que Lula tinha como aliados têm responsabilidade no crescimento das milícias no Rio, como Paes, Garotinho, Pezão e Cabral. Não só pela política que não buscava o enfrentamento às milícias, mas também pela presença de diversos representantes dos milicianos nos partidos do “centrão” ou da direita tradicional. Infelizmente, Marcelo Freixo, que cumpriu um papel importante na CPI das Milícias, deixa o PSOL buscando uma unidade com aqueles que possibilitaram o desenvolvimento delas.

Foi nesse contexto que o PSOL cresceu e se tornou o principal partido de esquerda no Rio. Enquanto o PT ocupava a presidência e fazia parte dos governos estaduais, surgimos e nos fortalecemos questionando a lógica da velha política. Negando aceitar a realidade como dada, impossível de se transformar e que só permitiria tirar pequenos ganhos negociando com a burguesia.

Como um balanço dessa caminhada, hoje temos as maiores bancadas de esquerda do Rio nas três instâncias. E principalmente, temos militantes, núcleos e movimentos atuando em todo o Estado, com destaque a regiões periféricas e de favelas. Além de termos alcançado a segunda colocação nas disputas para a prefeitura do Rio em 2012 e 2016. Ainda que Freixo tenha mérito enquanto liderança, esse só foi possível de se apresentar na perspectiva de partido que propõe o PSOL. 

Na terra arrasada em que nos encontramos, os setores da esquerda que se reuniram com Lula apontam que precisamos de uma frente de esquerda para derrotar Bolsonaro e construir um programa popular. Os anseios por uma ampla unidade para enfrentar o genocida são justos e os defendemos. Principalmente, que tal unidade seja estabelecida hoje na convocatória aos atos de rua pelo impeachment do presidente. Mas acreditar na construção de uma frente de esquerda e que tenha um programa que atenda as necessidades do nosso povo através de Lula é uma ilusão.

Enquanto o PSOL e movimentos sociais buscam construir mobilizações nas ruas para enfrentar o governo Bolsonaro agora, o petista sequer convoca ou faz alusão aos atos. Isso porque sua prioridade tem sido outra. Além dos encontros com a esquerda, Lula tem se reunido com diversos políticos da burguesia, como FHC, José Sarney, Rodrigo Maia (o engavetador de pedidos de impeachment), Gilberto Kassab e Eduardo Paes. 

Sabemos e ele já deixou claro que quer reviver a aliança entre capital e trabalho estabelecida para que alcançasse à presidência pela primeira vez. Ainda que a direita apresente candidatos ao pleito eleitoral, as pesquisas apontam que Lula estará com vantagens para um possível segundo turno. Certamente, terá o apoio de seus velhos aliados. Não é à toa que o petista não convoca para as mobilizações contra Bolsonaro, já que pretende apenas enfraquecê-lo para facilitar a disputa eleitoral. Seu partido até convoca a militância para os atos de rua, mas muito por uma pressão das bases para que se engajem nessa luta. Ainda que estejam nelas, não querem possibilitar o desenvolvimento da luta nas ruas numa proporção que possa levar ao impeachment de Bolsonaro. 

Lula nunca realizou nem propõe realizar um governo com um programa popular ou anticapitalista. É evidente que seu projeto envolve a burguesia e buscará ter o apoio dela, assim como sempre buscou. Ele tem orgulho em dizer que ouve do trabalhador ao banqueiro. Logo, não há a possibilidade de um governo desse enfrentar o racismo que estrutura o capitalismo e a segurança pública, sendo composto por aqueles que beneficiam da exploração de negros e indígenas no país. 

Enquanto o PT promovia algumas medidas sociais com uma mão, como o bolsa-família e a ampliação do acesso às universidades, com a outra possibilitava a continuidade da política de segurança pública de guerra às drogas. Vale destacar: não existe uma política antirracista que seja construída em conjunto com a burguesia. Nossos problemas vão além da representatividade. Nada adianta termos um governo com pessoas negras ou que assumam um suposto “compromisso contra o racismo”, enquanto não há enfrentamento à lógica de exploração e opressão que tanto atinge o povo negro no país.  

A luta antirracista é intrinsicamente anticapitalista. Não há dúvidas de que precisamos obter conquistas imediatas nessa luta, ainda nos marcos da democracia liberal. Mas não é por isso que devemos abdicar da busca por uma democracia real através da superação do capitalismo. A luta por nossas necessidades imediatas com reformas sociais não se dissocia da luta revolucionária. Mas é na mobilização e não nos acordos ou alianças com a burguesia que a mudança real se impõe, tal qual nos ensinaram o levante negro nos EUA em 2020 e outras experiências históricas. Um candidato que busca construir um governo através dos políticos da ordem, certamente não nos auxiliará na batalha contra o racismo estrutural. Pode até gerar medidas sociais favoráveis ao povo no curto prazo. Mas sabemos que sem mobilização elas são facilmente reversíveis e custam caro. Vejamos o que aconteceu durante e após os governos do PT.

Por mais que temos que buscar a mais ampla unidade para derrotar a extrema-direita, não podemos fortalecer ilusões, nem estreitar nossos horizontes com a diluição em um projeto que não é nosso. Ao menos não foi assim que o PSOL foi construído como o partido que é hoje. Afinal, qual a lógica de existir o PSOL se for para sustentar uma política que não nos representa? A luta contra o bolsonarismo não é uma justificativa para isso. Numa eleição com dois turnos, podemos apresentar as nossas bandeiras em um primeiro turno e posteriormente votar no candidato que estará contra Bolsonaro no segundo. Mas com a clareza de compreender a mobilização para derrubar Bolsonaro como nossa prioridade para o período. 

Construir uma alternativa não é fácil, assim como não é impossível. Como dizia Marta Harnecker, a política é a arte de tornar possível no futuro o que hoje aparece como impossível. Com pés no chão sabendo que para isso temos que derrotar a extrema-direita e garantir condições mínimas de existência e que possibilitem a capacidade de nos organizarmos politicamente, mas com a mente num horizonte que pode ser criado pelo povo em luta. Algo que não acontecerá se repetirmos como farsa a tragédia que ocorreu.

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