Em São Paulo, 200 manifestantes do 15.O acampam no Vale do Anhangabaú
Matéria da Caros Amigos conta como foi o 15 de outubro de 2011 em São Paulo. Confira depoimentos e fotos da juventude indignada que venceu a chuva, passou o dia no coração da cidade e acampou no Vale do Anhangabaú!
por Cecilia Luedemann, da Caros Amigos
A reportagem da Caros Amigos acompanhou a manifestação da juventude indignada, ouviu as vozes dos anônimos e registrou nesta reportagem algumas de suas reflexões.
Muitos e diferentes, os jovens manifestantes de São Paulo coloriram as ruas, numa manhã fria e chuvosa de sábado. “Pode chover e trovejar, essa praça nós vamos ocupar.” Os manifestantes do 15.O ocuparam o Largo São Bento e acordaram a cidade com as palavras de ordem: “A juventude não está parada, está na rua indignada.” Os trabalhadores que caminhavam apressados pelo calçadão do centro ouviam curiosos aos chamados da juventude: “Vem, vem com a gente, queremos um futuro diferente”. Os jovens chamavam para marchar até a Praça do Patriarca, rebatizada de Praça do Matriarca pelas feministas, e para acampar no Vale do Anhagabaú.
Protegidos da chuva na entrada do Mosteiro de São Bento, Nathalie Drumond, do grupo Juntos!, e Felipe Moda, do Barricadas, explicam que o movimento surgiu em São Paulo em resposta ao chamado dos indignados na Espanha. Para Nathalie, “As reivindicações da juventude em São Paulo, no geral, são contra a exploração, a injusta desigualdade da realidade brasileira.” Felipe esclarece: “É um movimento anticapitalista, contra a democracia representativa, por uma democracia direta.” Nathalie aponta que as reivindicações são fruto da união dos vários grupos e independentes com suas pautas de luta: “Há a luta pelos 10% do PIB para a educação pública, a legalização do aborto, a tarifa zero no transporte público, a luta contra a construção da usina de Belo Monte e o novo código florestal, entre outras. São reivindicações de setores da sociedade civil. Nós queremos dialogar com a população e apoiar os trabalhadores em greve.” Como participantes da organização da manifestação global em São Paulo, Felipe e Nathalie pedem a solidariedade da população aos acampantes no Vale do Anhagabaú, com doações de alimentos, materiais de acampamento (lona, barraca), de papelaria (cartolinas, canetas) e materiais de higiene (papel higiênico). Na assembleia de domingo, os manifestantes decidirão pela manutenção ou não do acampamento.
No Manifesto 15.O São Paulo, o movimento exige também o fim das “remoções de famílias para construção de obras da Copa e Olimpíadas”, bem como o gasto público com essas obras e “fora com Ricardo Teixeira”; por um “SUS público e de qualidade”, democratização da comunicação, ou seja, “internet banda larga para todos em regime público e gratuito, pelo fim da criminalização das rádios e comunicadores comunitários, revogação das concessões fraudulentas de rádio e TV no Brasil.” Na lista de reivindicações, consta também: fim da “criminalização dos movimentos sociais e da classe trabalhadora, do Estado Penal, contra a utilização de armas contra as manifestações populares”; “por uma legislação de direitos autorais que valorize o artista, desprivatize a cultura e favoreça o compartilhamento.”; “em defesa do kit escola sem homofobia, pela aprovação do PLC 122 (projeto de lei que criminaliza a homofobia)”; “chega de guerra às drogas e criminalização dos usuários, pela legalização da maconha e de todas as drogas”; “por uma Comissão da Verdade, Memória e Justiça autônoma, que julgue os assassinos e torturadores.”
Aos poucos, a concentração foi aumentando e, com guarda-chuvas e capas improvisadas, jovens ligados a diferentes grupos ou independentes, tomavam o megamofone para explicar as causas da indignação nesse dia de manifestação global. Ali, na praça, a comunicação é livre e aberta para todos: “Bom dia, indignados e indignadas. Acreditamos que somos iguais. Eu estou aqui falando a todos sobre a minha indignação. Estou indignado com o homicídio praticado pelo Estado. Indignado contra a violência do Estado contra a população.” Joseph Pavão, que se denomina independente, participante dos grupos Juntos e Barricadas, fazia ecoar sua indignação e colher aplausos, expondo suas ideias sobre a revolução do 15.O deve fazer sobre a mentalidade do povo, mostrando que manifestante luta por direitos, não é vagabundo.
Mais um indignado toma o megafone: “As pessoas estão morrendo nas ruas, pisadas pelas botas dos skinheads. Como, sozinho, posso me defender deles?” Nilson Vieira Jr, independente que participa do movimento LGBT, defende a criminalização da homofobia, o direito à uma educação livre de preconceitos e a solidariedade da população contra a violência. Mulheres que passam com os filhos, ouvem, atentas, mas apressadas, fugindo da chuva. A indignação compartilhada faz os manifestantes esquecerem a chuva e o frio, aquecidos pela voz dos indignados. O megafone roda mais uma vez: “Meu nome é Caio Dias. Sou militante do PSTU. A juventude está hoje dizendo que não vai mais aturar o regime capitalista, de alienação. A gente não consegue ter uma vida digna. Queremos igualdade de direitos e de possibilidades materiais, reais. Estamos aqui para dizer: Não mais a exploração. Não mais o capitalismo. Queremos uma sociedade igualitária. Viemos dar esse recado. Essa é a luta da Democracia Real Já! Essa luta vai crescer! Vamos todos e todas acampar!”
Cartazes e guarda-chuvas sacodem a chuva grossa. Aplausos, gritos e apitos chamam a atenção para as vozes dos indignados. Maiara Conti, membro da Executiva Estadual (SP) da Associação Nacional dos Estudantes Livres (Anel), faz ecoar sua revolta: “O governo federal corta milhões das verbas sociais e manda para os políticos, empresários e banqueiros. Mas, isso acontece no mundo inteiro. A juventude brasileira também motivo para se indignar. Com o capitalismo, não temos perspectiva de futuro, não temos condições de sobreviver.”
Aproxima-se da roda de manifestantes, um estudante de mestrado em computação, da Unicamp. Luiz Faria Pereira ouve tudo muito atento e dá sua opinião: “Fiquei sabendo desta manifestação pela internet. Não vi nenhuma notícia sobre essas manifestações, aqui no Brasil. Mas, consegui ver na internet o movimento pela Democracia Real, um chamado da juventude indignada. Eu sinto-me indignado com a manipulação da informação, no Brasil. Refleti muito sobre isso e acredito que essa manipulação serve à elite dominante, uma elite que está no poder. Por isso, as informações são ‘selecionadas’ para que o trabalhador chegue em casa, depois de 10 horas de trabalho e se esqueça de tudo assistindo Zorra Total…”
12h15. A chuva não dá trégua, mas os manifestantes também não desistem e marcham até a Praça do Patriarca. Lojas abertas, as pessoas se protegem da chuva, desencorajadas a fazer mais dívidas, mas atraídos pelas luzes das vitrines que encantam com mercadorias coloridas. Muitos e diferentes, os jovens do 15.O pulam, gritam e distribuem panfletos lembrando que a crise capitalista é real e todos precisam se organizar para enfrentá-la: “Não tem dinheiro pra educação, mas tem dinheiro pra banqueiro e pra ladrão.” Interessados, os trabalhadores das lojas se aproximam das calçadas, pegam os panfletos e lêem. A cidade acorda para a realidade da injustiça. A marcha avança com energia: “A juventude não tá parada, tá na rua indignada!”
Na praça da Matriarca, a manifestação contagia a população. Guarda-chuvas velozes cruzam o viaduto do Vale do Anhangabaú. Mas, alguns trabalhadores, param, lêem o manifesto, conversam com os jovens. Dinha de Oliveira, professora do ensino municipal do ensino fundamental há 23 anos, sorri e conversa com a filha, Luiza de Souza, estudante de 15 anos. Orgulhosa, imagina que seus alunos de 1º série poderiam chegar um dia a fazer protestos como do 15.O: “Enquanto os jovens estiverem protestando, não estarão perdendo tempo. São os jovens que iniciam a mudança. Parecem as bolinhas que se formam no fundo da panela quando esquentamos a água. A água não ferve de repente. A fervura começa devagar, vem de baixo, na base. Fico feliz, porque vejo esse movimento que parece pequeno, mas já é o começo da fervura.” Dinha entende o protesto como o resultado de uma educação para o pensamento livre, pensamento crítico: “Precisamos de uma educação crítica, desde a infância. Hoje, não temos sindicatos como no passado. Também precisamos de partidos de esquerda como no passado, críticos. E esse movimento da juventude é uma forma de crítica. Quem sai de sua casa embaixo de chuva, incomoda-se e também vai incomodar. Temos que sair daquele comodismo, daquela zona de conforto. Assim, teremos a renovação do entendimento: conhecer a si mesmo. É isso que estão fazendo aqui, embaixo de chuva, conhecendo a missão da juventude. Estão empenhados, não porque são o futuro, mas porque são o presente. Se transformássemos as escolas em educação crítica, em espaços de discussão, aí teríamos essa juventude diferente que vai questionar esses políticos que vieram do movimento estudantil, mas que se esqueceram do povo. Esse país ainda não se calou, mas é preciso mais movimento.” Luiza concorda com a mãe: “A crise vai chegar aqui também e se precisar, eu também sairei para a rua. Como nós, as pessoas passam, ouvem e se agora não se incomodam, não participam, não quer dizer que não estão entendendo. Acho que essa manifestação é importante, porque, pelo menos, ela levanta uma dúvida.”
Amparados pela cobertura na praça da Matriarca, o megafone voltou a dar voz aos manifestantes. Joseli Pereira, da juventude do PSOL, do Juntos, explicou sua militância nos cursinhos populares da Rede Emancipa: “A nossa luta é pela democratização do ensino, pelo acesso da juventude com os pés no chão. Nosso objetivo é derrubar o vestibular, porque serve apenas para impedir o acesso do povo ao ensino superior, mas enquanto isso não for possível, criamos cursinhos em vários estados do Brasil, como São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Pará, Bahia, para garantir esse direito. Por que trabalhador não pode cursar Medicina? No Brasil, temos escolas que são gaiolas, não escolas que dão asas. Queremos uma educação libertadora.”
Juliana Donato, bancária do Banco do Brasil, participante do movimento de oposição bancária e do Conlutas, une-se ao 15.O e pede a solidariedade da juventude ao movimento grevista: “Esta greve dos bancários é a mais longa, desde 2004. Estamos juntos nesse movimento dos indignados que lutam por um futuro, porque o dinheiro público está indo para os banqueiros. Estamos juntos nessa luta, porque somos contra a política econômica do governo federal que dizendo estar se protegendo da crise global, com juros altíssimos, dá grandes lucros aos banqueiros com o sacrifício dos trabalhadores.” Juliana denuncia que mesmo reivindicando muito pouco, 12.58%, os banqueiros demoraram 20 dias para apresentar uma contraproposta de apenas 9%. O apoio à greve dos bancários é tão importante quanto lutar por uma política econômica mais justa. A unidade entre os trabalhadores pode fortalecer a luta contra as medidas do governo que beneficia os banqueiros e prejudica os trabalhadores. Para Juliana, se esta unidade não for feita agora, derrotando a política econômica do governo, todo mundo vai ter que pagar essa dívida que não é nossa.
A chuva dá uma pequena trégua. Uma enorme faixa vermelha com letras pretas é aberta, chamando a atenção do povo: “Punição aos torturadores da ditadura”. Ângela Mendes de Almeida, coordenadora do Observatório da Violência Policial (OVP-SP) e ex-companheira de Luiz Eduardo Merlino, assassinado sob tortura na Operação Bandeirantes sob ordens do coronel Ustra, integrante do Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça, fala sobre a solidariedade ao 15.O e a luta por uma real Comissão da Verdade como uma luta de todos: “Apoiamos esse movimento, porque é uma iniciativa dos jovens brasileiros, inspirados na Tunísia e no Egito, que derrubaram os ditadores. Viemos aqui, porque queremos publicizar nosso movimento contra a Comissão da Verdade tal como está, lutamos para que ela não passe no senado, pois seria um fracasso. Conseguimos uma audiência pública com o senador Paulo Paim, amanhã e apresentaremos o nosso abaixo-assinado (ver link no site da Caros Amigos), onde colocamos as modificações ao atual projeto da Comissão da Verdade que consideramos necessárias. A principal exigência é contra a presença dos militares. Depois, exigimos aumentar o número de participantes e diminuir os anos de investigação, focando no período da ditadura. Outro problema grave é a falta de autonomia da comissão, pois não terá orçamento. E até o momento a Dilma não consultou a sociedade civil e não recebeu a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.”
As lutas de cada grupo de trabalhadores é também uma luta de todos. É assim que Luis Arruda, militante do movimento LGBT, explicou a sua indignação ao capitalismo que divide e joga diferentes tipos de trabalhadores contra eles próprios: “Eu não acredito que a homofobia foi criada pelo capitalismo. Ela já existia antes, mas o capitalismo se aproveita da homofobia para ganhar, tanto quanto se aproveita do machismo, do racismo. O capital divide, classifica, com preconceitos, tanto quanto divide e classifica o trabalhador para o mercado de trabalho. E quem quiser se dar bem tem que ser homem, branco e heterossexual. Se você quiser ser juiz, não pode ser gay ou vai ter que esconder que é gay. O preconceito serve para esta reserva de mercado, quer dizer, para aguçar a competição entre os trabalhadores. Então, quanto mais divididos, mais difícil será vencer todos os preconceitos. A opressão ao movimento LGBT é o mesmo aos movimentos sociais, às mulheres, aos negros. Para não cair numa cilada, é preciso unir todos os movimentos num só, contra a opressão. O sistema capitalista quer estipular regras de moral, de convivência, que oprimem o ser humano. Precisamos nos libertar.”
Esse esforço dos jovens construírem uma nova forma política de organização, com democracia real, direta, é discutida por Cristina Fernandes, militante do PSOL: “É uma forma de construir algo. A luta, sabemos, é bem maior, é contra o capital. Apoiamos a luta na Europa, no Chile, nos Estados Unidos, no norte da África. Apesar da pauta geral, cada grupo traz a sua reivindicação. Juntos, lutamos pela democracia real. Sabemos que o que motivou essa luta foi a crise global. Na Espanha, esse movimento foi mais forte, porque a crise é grave, com muitos desempregados. A nossa expectativa é iniciar esse movimento por democracia real no Brasil, hoje.” Ao lado de Cristina, seu amigo, Thiago Vasconcelos, estudante de Matemática e professor do ensino público, que não está organizado em partido ou movimentos, diz que está na manifestação com a sua luta: “Quero 10% do PIB para a educação pública. Também sou contra os gastos públicos com as obras da Copa e das Olimpíadas. Mesmo que esse movimento seja ainda pequeno, minha expectativa é de ser um ato simbólico para mostrar nossa indignação. Mas, mesmo tendo minha amiga que é do PSOL, acredito que a presença de partidos nas manifestações fazem as pessoas se afastarem. Elas não acreditam mais nos partidos. Nem todo mundo entende os movimentos muito esquerdistas. Na minha opinião, isso afasta. É aquela ideia de que o mundo é uma bosta e a democracia não funciona.”
A chuva voltou mais fina, o debate entre independentes e organizados em partidos continuava. E Severino Cavalcante, pernambucano de 82 anos, que passava curioso pela praça, parou para ouvir, ver e pensar. Diante da faixa vermelha pela punição aos torturadores da ditadura, lembrou da infância em Caruaru, maior e mais bonita feira do mundo. Mas, também lembrar da crueldade dos coronéis, os latifundiários que colaboraram com a ditadura: “Ninguém falava sobre prisão, tortura, morte. Mas, sempre aparecia alguma coisa estranha. E a gente sabia que boa coisa não era. Eles escondiam.” Ao lado de Ângela Mendes de Almeida, Severino lê a faixa e concorda: “Eles têm que pagar pelo que fizeram.”
14h. A chuva volta a apertar, os homens sem teto e seus cobertores se protegem junto aos manifestantes. Avisam para tomar cuidado com os fios desencapados. Imagens da manifestação é exibida no teto. Severino também corre para se proteger da chuva. A fome bate brava. Alguns grupos mais organizados distribuem lanches. Maíra Mendes, professora da rede municipal e dos cursinhos populares da rede Emancipa fala de sua indignação no dia do professor: “ O salário do professor no município, por 30 horas de trabalho, é R$ 1.400. No Estado, é ainda mais caótico, chega a receber R$ 1.000, se for concursado. Mais da metade dos professores do Estado não são concursados. É o que chamam de professor temporário. Ele só vai receber se entrar em sala de aula. Se for para a escola e não precisar entrar em sala de aula, não vai receber e vai ter que pagar condução, lanche, do próprio bolso. A escola pública não discute mais projeto pedagógico, tudo vem de cima para baixo, imposto, com muito tempo gasto com trabalho burocrático, preencher diário, fichas. Em muitas escolas quem domina é o tráfico de drogas. E a supervisão de ensino se preocupa apenas com a estatística, aprovar o maior número possível de alunos, sem se preocupar com a didática.E o aluno chega no ensino médio sem saber ler e escrever. O professor perdeu autonomia.”
Ao lado de Maíra, o professor Caíque Franchetto, professor do cursinho popular Emancipa e do ensino privado, acredita que o problema da educação brasileira é geral, tanto pública quanto privada: “Nossa educação só serve para formar mão de obra, sem senso crítico. É um absurdo ter cursinho para passar no vestibular, pois prova que o ensino precisa ser complementado. A educação é uma fraude no público e no privado. Se você tem uma educação falha, os preconceitos se desenvolvem de todas as formas. Esses tipo de educação para a formação de mão de obra, faz o ser humano perder o senso crítico. Na área privada, o aluno é cliente, você pode até reprovar, porque o cliente continuará pagando. No público, o supervisor, que não conhece o aluno, obriga o professor aprovar.”
Sem medo de defender temas considerados tabu, como o aborto, Duany Santos, é uma jovem que herdou a luta feminista e fala naturalmente contra a criminalização da mulher: “O aborto é um problema de saúde pública e precisa ser descriminalizado. Milhares de mulheres trabalhadoras morrem, porque não têm dinheiro para pagar o aborto nas clínicas clandestinas. Elas realizam o aborto precário com agulha no útero ou medicamentos perigosos que provocam hemorragia, esterilidade e até morte.” Indignada, Duany cobra da presidenta: “Que avanços o governo da Dilma trouxe para a mulher? A Dilma foi contra a legalização do aborto em sua campanha. Até hoje, as mulheres trabalhadoras sofrem, pois a Lei Maria da Penha não criou os abrigos para protegerem as mulheres vítimas de violência doméstica. Lutamos também pela criação de creches nas universidades para garantir que as estudantes que têm filhos possam continuar seus estudos. Lutamos também para retirar o quando da Zorra Total com apologia ao estupro e também pela punição de Rafinha Bastos que disse que mulher feia tem que agradecer quando é estuprada.”
Apoiando o movimento 15.O, a psicoterapeuta Mirian Giannella, participa de um grupo que defende a Democracia Real Já para a criação de uma nova prática libertadora para a revolução global. Com experiência no trabalho de apoio às vítimas de violência doméstica e violência sexual, Mirian mostra a relação entre a luta política na vida pública e na vida privada das mulheres:
“Nas pesquisas que fazemos sobre stress pós-traumático, a pessoa que sofreu violência sexual na infância, passa a viver em estado de alerta permanente, com o bloqueio do cérebro frontal, com comportamento robótico: não pensa, fica fora da realidade, espectador da vida. Isto é muito grave e os abusos continuam. Essa prática se mantém pelo pacto do silêncio. Então, é preciso que as vítimas comecem a falar e a denunciar. Abuso sexual pelo pai e pelo irmão, desde pequena. Temos que sofrer tortura desde a infância no quarto de dormir? Não tem quem a defenda. O que os padres querem decidir sobre o nosso corpo, sobre a nossa autonomia? Crime, criminoso, arma do crime, dano e reparação. As vítimas devem falar, denunciar. A mulher deve decidir sobre o seu próprio corpo, direito inalienável. Vivemos esta cultura da guerra, machista, do assédio, da violência. Para as vítimas, não há nenhuma palavra construtiva. Há uma solidão atroz. As vítimas são sempre desmoralizadas. É a transformação da dívida e da culpa: você é louca, com seus traumas de infância. É a vitimização para exclusão e extermínio.”
14h30. Frio e chuva forte. Bem no tempo de começar a desanimar, todos bem apertados, ouvem a leitura da poesia do escritor uruguaio Mario Benedetti, “Não te rendas”: (…)Não te rendas, por favor, não cedas,/Ainda que o frio te queime,/Ainda que o medo te morda,/Ainda que o sol ponha e se cale o vento,/Ainda existe fogo na tua alma,/Ainda existe vida nos teus sonhos/Porque cada dia é um novo começo,/Porque esta é a hora e o melhor momento/Porque não estás sozinho, porque eu te amo.” Explodem gritos e aplausos. Contra o isolamento, a solidão, o silêncio e a vitimização: “Porque não estás sozinho, porque eu te amo.” O amor político.
Alguns grupos de manifestantes descem o vale do Anhangabaú. Barracas são armadas. Como numa aldeia indígena com barracas modernas, nossos parentes querem se unir no protesto global, como explica George Guimarães do movimento Brasil pelas Florestas: “ Somos um movimento amplo, mas não somos uma Ong. Nos unimos, porque queremos barrar a construção de Belo Monte, a população indígena não foi consultada e também queremos derrubar o novo Código Florestal com sua política de genocídio das etnias indígenas.” Valêncio Tserenhi’rãiarê Tseredzawê, estudante de cursinho que pretende cursar Medicina e voltar para cuidar do seu povo, Xavante no Mato Grosso, conta porque está acampado no vale do Anhagabaú: “Somos contra a construção da usina de Belo Monte, porque há muitos parentes indígenas morando no Xingu. A construção da usina já está trazendo muitos invasores, como fazendeiros, garimpeiros, junto com empresas da usina que prejudicarão ainda mais a nossa vida.” Lua Airê, artista indígena, indignada protesta contra a usina Belo Monte: “A gente tem que ter uma consciência ecológica e defender os direitos humanos. Na região que querem construir a usina, tem uma grande população, crianças e as águas já estão sendo contaminadas com mercúrio, deixando muitos índios doentes. Se hoje há florestas no Brasil é porque há índios vivendo e defendendo as florestas. Com 500 anos de Xingu e o presente que ganhamos é Belo Monte! A floresta é nossa, de todo povo brasileiro, por isso estamos juntos aqui, hoje!”
Gritos, aplausos, chegam mais parentes descendo a rampa do vale, embaixo do viaduto. Chegam cantando, dançando e todos se aproximam para recebê-los. Numa roda, iniciam um ritual de luta. São os kalapalos, do Alto Xingu, que se uniram à manifestação pela floresta, contra Belo Monte e o novo código florestal. As jovens Samanta Awetei Kalapalo e Sany Kalapalo vieram para denunciar: “A usina Belo Monte não pode ser construída, porque o rio Xingu vai secar. O Pará vai encher, mas o alto Xingu vai secar. Os peixes vão morrer e a alimentação dos índios é basicamente o peixe. Se o peixe acabar, o índio vai morrer também. A vida do índio é o rio, a floresta. Sem rio e sem floresta, ele morre. Nós nunca fomos consultados se permitiríamos ou não construir a usina. É um absurdo! É um desrespeito, um preconceito. Serão inundados 600 km2 de terra, e com o funcionamento de uma parte da usina, já está afetando o médio Xingu, está secando tudo.” Sany, corajosa, avisa: “Nós não vamos sair de lá. Nossos pais, nossos antepassados nasceram e viveram lá, é a nossa terra. Nós nascemos lá e ficaremos lá até morrer.”
A coragem dos parentes chegou bem na hora. 16h30. Um assembleia discute a organização do acampamento, enquanto a polícia municipal, do prefeito Kassab, cerca o vale. Enquanto se discute orientação para votação e meios de resistir à possível tentativa de retirada, os parentes kalapalos brincam de atirar longas flechas. Animados, acompanhamos a brincadeira que intimida a arrogância policial do impopular prefeito. Eles conseguem atirar as lanças certeiras numa longa distância. Impressionados, pensamos: Quando foi mesmo que perdemos essas maravilhosas capacidades de confiar em si próprio e ter coragem de lutar?
Figuras marcantes no movimento dos indignados das praças espanholas, as máscaras do protagonista do filme V de Vingança, estiveram espalhadas durante a manifestação. São os chamados Anonumous, grupo de jovens independentes, apartidários, criado a partir de julho de 2011. O coletivo não aprova que alguém fale em nome do grupo e nem que se identifiquem com nome e sobrenome. Explicam que não são nem anarquistas, nem anticapitalistas, inspiraram-se nos movimentos de luta contra a opressão, por um sistema mais justo e por liberdade de expressão total, inclusive na internet, e também por uma democracia real.
Com o desafio da manifestação global de rejeitar a democracia formal do capitalismo e viver novas formas de democracia real, iniciava-se, ali em São Paulo, numa aldeia igualitária, entre muitos e diferentes jovens uma nova e surpreendente experiência. Ao raiar do sol, muitas e surpreendentes histórias a contar, não só de São Paulo, mas em todas as outras cidades do Brasil e do mundo.