A esfinge bolivariana: Impressões sobre a Venezuela atual
Venezuela

A esfinge bolivariana: Impressões sobre a Venezuela atual

Algumas impressões do que vimos. Com o cuidado de não emitir opiniões muito categóricas, pelo resguardo da distância geográfica e política que se encontra o Brasil da Venezuela buscaremos resgatar alguns dos principais elementos que ajudem a compreender a constituição do processo revolucionário bolivariano.

Bernardo Corrêa 3 maio 2011, 06:07

“Que animal caminha com quatro pés pela manhã,
dois ao meio-dia e três à tarde e, contrariando a lei geral,
 é mais fraco quando tem mais pernas?”

 

O Enigma da Esfinge, mitologia egípcia.

Uma desconexão entre consciência e organização, uma distinção (sem separação) entre corpo e cabeça é o que fica mais evidente para quem visita a Venezuela hoje em dia. Em tempos de Revolução Egípcia, o mito da Esfinge, sua imagem e seu enigma são facilmente ilustrativos dessa contradição.

Talvez seja difícil encontrar hoje, no mundo, um lugar onde a disposição de luta, a compreensão sobre as tarefas de uma Revolução e a necessidade do socialismo, ainda que de forma embrionária, permeiem tanto a cabeça da grande maioria do povo pobre.

Por outro lado, o grau de organização do povo e da classe trabalhadora ainda é insuficiente e, apesar de caminhar com muitas pernas, todavia, demonstra sua fraqueza, o que promove uma forma de “substituismo” que é o gérmen da burocratização.

Neste texto tentaremos colocar algumas impressões do que vimos por lá. Com o cuidado de não emitir opiniões muito categóricas, pelo resguardo da distância geográfica e política que se encontra o Brasil da Venezuela buscaremos resgatar alguns dos principais elementos que ajudem a compreender a constituição do processo revolucionário bolivariano. Arriscaremos, ainda, especular sobre sua dinâmica.

 

Quatro pés pela manhã

A esquerda venezuelana tem uma importante tradição. Diferentes formas de luta forjaram uma esquerda que encontra sua síntese em uma fórmula cívico-militar vitoriosa a partir de 1998 com a eleição de Hugo Chávez presidente e é re-impulsionada com a derrota do golpe conservador de 11 de abril de 2002.

A luta por democracia e por uma sociedade distinta na Venezuela é herdeira da luta de Bolívar, de Francisco de Miranda e de tantos outros “libertadores” como são conhecidos por lá. No entanto, para os nossos fins, trataremos aqui de um período demarcado entre o final dos anos cinqüenta e os dias atuais.

Como muitos outros países da América Latina e do mundo, a Venezuela também passou por ditaduras, mais ou menos populistas, sendo a última a de Pérez Jiménez. Quando, em 1957, o ditador Pérez Jiménez tentou permanecer no poder mediante um plebiscito fraudulento, seu regime já tinha perdido completamente o apoio popular e um golpe cívico-militar o derrubou em 23 de janeiro de 1958.

Naquele momento, o país ainda encontrava-se dividido em torno de quatro forças políticas, segundo Luis Bonilla e Haiman El Troudi[1]:

Las experiencias partidarias venezolanas se limitaban a la socialdemocracia (AD), el socialcristianismo (COPEI), el liberalismo (URD) y el comunismo de orientación soviética (PCV). Otras expresiones políticas tenían una influencia muy limitada, poco representativa y sin capacidad real de incidencia en la dinámica política nacional. Sólo AD, COPEI, URD y el PCV contaban con la vitalidad suficiente para administrar el potencial capital político que implicaba el milagro petrolero. (Bonilla e Troudi, 2004)

A esquerda estava nesse momento muito concentrada em torno do Partido Comunista da Venezuela (PCV) que capitalizava a saída à esquerda da ditadura de Pérez Jiménez. Com a força que este partido ganhou, a burguesia, mesmo suas frações democráticas, tratou de derrotá-lo e o primeiro passo foi a ilegalidade do PCV excluindo-o do cenário político-eleitoral. A visita de Nixon à Venezuela, ocorrida no governo Larrazábal, bastante hostilizada pelos militantes de esquerda, foi fundamental para orientar a política anticomunista que se consolidaria no Pacto de Punto Fijo. O pacto entre AD, COPEI e URD significava uma busca de governabilidade que reagia, em primeiro lugar, a uma nova ditadura e, em segundo, à “ameaça comunista”. Além da garantia da exclusão da esquerda nesse processo também foram operadas medidas de cooptação, o Pacto buscava garantir a estabilidade política e econômica da burguesia assim como garantir seus negócios com o capital internacional. A Central dos Trabalhadores da Venezuela (CTV), fundada em 1936 pelos setores combativos e antiditadura da classe operária, foi cooptada fortalecendo a Ação Democrática (AD) e sua política de conciliação de classes. O Pacto de Punto Fijo foi dominante até 1998, ainda que em seus últimos anos tenha sofrido modificações e a quebra deste pacto é o divisor de águas entre a chamada Quarta República e a Quinta República inaugurada com a Revolução Bolivariana.

A situação desfavorável à luta no âmbito da legalidade favoreceu o crescimento de correntes que optaram pela luta armada como tática privilegiada, além da influência decisiva da Revolução Cubana (1959) e a inspiração nos movimentos guerrilheiros da América Central.

Na década de 60 se rompe a “ficção da paz democrática”[2]. A partir do processo de elaboração da Constituição em 1961, que marcou o ordenamento jurídico e político da democracia representativa, novamente vem à tona o protagonismo e a disputa do movimento operário. O IV Congresso da CTV (1961) é marcado pela separação definitiva das correntes socialistas-comunistas do bloco centrista, mais uma vez Bonilla e Troudi nos ajudam:

El Congreso de la CTV expulsa a los siete miembros disidentes y consolida una dirección sindical Adeco-copeyana. La CTV vería afectada su correlación de fuerzas con la separación de AD, en 1967, del grupo liderado por Luis Beltrán Prieto Figueroa y su constitución como organización político electoral (MEP26). El sexto Congreso de la CTV, realizado en 1971, culminaría la fase de control partidario de la central sindical. (Bonilla e Troudi, 2004)

A AD ainda sofre diversas divisões ao longo dos anos 60 e as mais importantes deram origem a importantes grupos de esquerda como o Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR), ARS (pelo lema da Publicidad ARS, que dizia “Permítanos pensar por usted”) e o Movimento Eleitoral do Povo (MEP). O MIR e o PCV-FALN optam pela via militar e passam a organizar focos guerrilheiros nas montanhas da Venezuela e as posteriores discussões e balanços sobre esta tática no final dos anos 60 e início dos 70 deram origem a outros agrupamentos políticos importantes como o Partido de la Revolución Venezolana (PRV), Bandera Roja (BR), Organizción de los Revolucionários (OR) que se construíram de forma clandestina, e outros legais com ênfase nos movimentos populares como Matanceros-Causa R, ou ainda, plataformas eleitorais como o Movimiento al Socialismo (MAS). O desenvolvimento das experiências guerrilheiras e militares se deram durante os anos 60, 70 e 80, tendo como pontos altos o “Assalto ao Trem do Encanto” e as insurreições militares como o Levante de Castro León, o Guairazo, o Carupanazo, o Porteñazo, o Barcelonazo entre outros.

A esquerda sofreu inúmeras modificações, recomposições, capitulações e traições, etc. No entanto, alguns movimentos são fundamentais para compreender o período de acumulação até o final dos anos 90 quando Chávez assume o governo do país. Em primeiro lugar o espaço eleitoral ocupado pelo MAS desde a década de 70 e que seria por muitos anos um referencial da esquerda Venezuelana.

O MAS surge a partir de uma ruptura com o PCV, causada por divergências sobre a relação com a União Soviética, em especial, após a invasão da Tchecoslováquia (1968) e a política do estalinismo apara aquele país, além de divergências táticas com a direção do PCV, no balanço sobre a década de 60 e o isolamento político do partido. Faz seu congresso fundacional em 14 de janeiro de 1971. No mesmo congresso, Alfredo Maneiro e outros que participaram da ruptura com o PCV decidem não participar do novo partido e forma a Causa Radical, popularmente conhecida como Causa R. Estes dois agrupamentos políticos são importantíssimos para compreender como a esquerda venezuelana passou a encarar o terreno eleitoral.

Em 1973, lança o jornalista José Vicente Rangel, à presidência do país em aliança com o MIR, obtendo quase 190 mil votos (4,26%), sendo 3,7% somente do MAS que elegeu dois senadores e nove deputados. Para se ter uma idéia da força do MAS e de Rangel em setores importantes da esquerda, nessa campanha eleitoral o escritor Gabriel García Marques doou 25 mil dólares a Rangel. Em 1978, novamente postula-se à presidência, desta vez com a esquerda muito fragmentada (MEP, MIR e PCV tiveram candidaturas próprias e todas muito fracas) e obtém 276.083 (5,18%), dois senadores e onze deputados e constitui-se como terceira força política do país. Em 1983, Rangel se lança pela aliança entre o MEP a Liga Socialista e o PCV.

O MAS, por sua vez, retira o seu apoio, inicia um processo de fusão com o MIR e ­­lança Teodoro Petkoff, economista, oriundo do movimento estudantil, militante do PCV desde 1949, participante ativo da luta armada na década de 60 e fundador do MAS. Petkoff obteve 277.498 votos (4,17%), ficando em terceiro lugar, sendo os dois primeiros ainda AD e COPEI. José Vicente Rangel obteve 221.918 votos (3,34%) ficando em quarto lugar. A Causa R também se postulou nesta eleição fazendo uma votação muito pequena (0,09%). No entanto Andrés Velásquez, metalúrgico e sindicalista do Estado de Bolívar (região da indústria básica e da siderurgia venezuelana), constituiria-se como um referencial político de esquerda, sendo eleito por duas vezes governador de Bolívar (em 1989 e em 1992) e obtendo 20% dos votos nas eleições de 1993.

Como uma combinação de fatores, nacionais e internacionais, a virada importante veio em 1989 e a correlação de forças realmente começou a mudar após o Caracazo. Um levante popular, produto da crise do puntofijismo e da situação econômica do país, que sacudiu o país e teve milhares de desaparecidos e mortos, segundo Rafael Araújo[3]:

Buscando solucionar a crise econômica da Venezuela, Carlos Andrés Pérez, ao assumir a presidência, firmou um acordo com o FMI. O governo contraiu um empréstimo de US$ 4,5 bilhões. Como contrapartida, ele deveria realizar uma série de ajustes macroeconômicos, entre os quais: a desvalorização da moeda nacional, a redução do gasto público, a liberalização dos preços de gêneros alimentícios e de produtos industrializados e o congelamento de salários. A gasolina foi reajustada em 100%, acarretando na elevação nos preços dos transportes urbanos. (Rafael Araújo, 2009)

Estas medidas foram a faísca que faltava para o incêndio da Revolução. Não é possível compreender o que se sucedeu nos anos noventa e dois mil sem identificar no Caracazo a virada da correlação de forças e nas condições objetivas que permitiriam o surgimento do Movimento Bolivariano.

O acúmulo de forças das organizações de esquerda, o trabalho no interior das forças armadas e o deslocamento de Hugo Chávez foram centrais para a primeira tentativa de tomada do poder através do movimento cívico-militar bolivariano. Em 1992, Chávez encabeça uma tentativa de golpe frustrada, o que lhe rende dois anos de prisão, mas fundamentalmente dá o pontapé inicial à posição de Chávez como liderança da Revolução Bolivariana.

Muitos elementos podem explicar a derrota do golpe, entretanto, foi central o papel covarde que cumpriram algumas organizações, em especial a Causa R. Como nos comenta Íris Garcia em entrevista concedida a Pedro Fuentes[4]:

Em seguida do Caracazo ele [Hugo Chávez] começa a pensar que é preciso fazer algo. Por isso ele diz que o Caracazo inspira e acelera esta insurgência, esta necessidade de fazer algo. Começa a preparar a insurgência militar que se deu em 4 de fevereiro de 1992 (…)

Assim se decidiu, preparou e se fez. Eu estava participando, pois tinha acordo com essa forma de tomada do poder.  E vinculei algumas organizações, camaradas de esquerda… O principal foi o grupo Causa R que através de Ali Rodriguez Araques, ex-guerrilheiro, Comandante Fausto em sua época, me disse que era 4 de fevereiro o dia, às 14h. E que através de mim é que iriam atuar outros camaradas que tinham entre suas ações a tomada dos meios de comunicação. Isto não se deu porque a Causa R, teve a palavra de Araques que foi até presidente da OPEP, Ministro das Energias e Petróleo, Presidente da PDVSA, Conselheiro da República, no Governo de Chávez. Perguntei ao grupo que tinha a responsabilidade de tomar os meios de comunicação, que foi uma das nossas debilidades, por que não haviam feito a ação. E eles me disseram que não chegou quem deveria chegar… E quem deveria chegar era Causa R, era Ali. (Íris Garcia, 2007)

Mesmo com vários dirigentes na prisão, o movimento que liderou o golpe segue fazendo política no país, inclusive impulsionando bases programáticas a partir da publicação da Agenda Alternativa Bolivariana e, apesar da traição das organizações social-democratas e centristas, o Pólo Patriótico conseguiu grande amplitude, inclusive com a incorporação do Partido Pátria para Todos (PPT), organização fundada em 1997, fruto da ruptura de Aristóbulo Istúriz[5] e outros com a Causa R.

Em 1998, Chávez vence as eleições, com 56,2% dos votos, inicialmente com um programa de unificação nacional (baseado na brochura Agenda Alternativa Bolivariana, AAB, apresentada à população em 1996), em torno de algumas medidas de recuperação econômica e de caráter nacionalista radical, no entanto sem uma identidade de classe mais definida.

Buscando uma “nova independência nacional” e aspirando a uma nação soberana, o Polo Patriótico aglutinou setores dos mais diversos para encampar a disputa eleitoral de 1998. Participaram desta frente o MVR, parte do Movimento ao Socialismo (MAS), Pátria Para Todos (PPT), setores do La Causa R, o Movimento Eleitoral do Povo (MEP), o Pela Democracia Social (Podemos) e o PC (Partido Comunista). A construção do Polo Patriótico buscou aglutinar as mais diversas tradições políticas, priorizando os setores mais atingidos pelo neoliberalismo.  (Rafael Araújo, 2009)

Em 1999, há um processo constituinte com ampla participação da população. O processo constituinte impulsionou os movimentos populares e teve como saldo organizativo a criação dos Círculos Bolivarianos que durante a primeira fase do processo revolucionário cumpriram um papel importante de auto-organização dos trabalhadores e do povo pobre. Algo que seria fundamental para a manutenção e aprofundamento da Revolução, posteriormente. Apesar da resistência de setores vanguardistas e elitistas, inclusive no interior do Pólo Patriótico, o processo foi um estopim do protagonismo popular, como balance de ese momento histórico, es digno rescatar que la participación directa comenzó a derrotar a las representaciones, asumiéndose el pueblo como protagonista de su propio destino”. (Bonilla e Troudi, 2004)

Segundo a Constituição de 1999[6], o protagonismo dos cidadãos na formação, execução e controle da gestão pública é um direito e seu exercício é necessário para garantir o desenvolvimento individual e coletivo (art. 62º). Os meios pelos quais o povo venezuelano deve exercer sua soberania e protagonismo são: eleições para cargos públicos; referendos; consultas populares; revogações de mandato; iniciativas legislativa, constitucional e constituinte; votações abertas e assembléias de cidadãos (art.70º).

O que ficou conhecido como processo constituinte, de fato, impôs uma dinâmica muito mais acelerada nas mudanças e no enfrentamento entre as classes. Ao editar as Leis Habilitantes em 2001 (principalmente a Lei da Pesca, Lei de Terras e Lei dos Hidrocarbonetos), nas quais passou a ser proibido por lei latifúndios superiores a 5.000 hectares de terra e diversas medidas de maior controle sobre a renda petroleira e exploração marítima, gerou, por um lado uma maior capacidade do estado em responder às demandas populares e, por outro, uma reação intensa da oposição. Pelo caráter subordinado das oligarquias venezuelanas, rapidamente acelerou-se a conspiração entre a elite golpista e os EUA, que financiaram e fomentaram a tentativa de golpe em 11 de abril de 2002. Já em 2001, a oposição deu sinais de suas intenções:

El paro promovido por la oposición al gobierno del Presidente Chávez, liderado por Fedecámaras con el apoyo de la CTV, se produjo el 10 de diciembre de 2001 y constituyó un calentamiento de la maquinaria contrarrevolucionaria que en el 2002 se emplearía a fondo en un golpe de estado y un paro – sabotaje de la industria petrolera”. (Bonilla e Troudi, 2004)

 

Dois pés ao meio-dia

Em um mundo neoliberal, que é do que se trata aqui, não caberia um projeto de emancipação nacional, buscando romper os laços de dependência e saindo do script do FMI e do Banco Mundial. Desde 1999, com os eventos de Seattle que o neoliberalismo começara a sofrer sua primeira crise enquanto modelo. Se olharmos atentamente para o cenário político da América Latina, veremos que aquilo que se apresentou como um esgotamento no Caracazo, dez anos antes, passa ser questionado de formas mais ou menos avançadas no território latino. A Revolução Bolivariana é efeito de um cenário muito mais amplo, no qual as mobilizações anti-globalização e a luta aintiimperialista se combinam, em especial, a partir dos anos 2000. A guerra da água em Cochabamba (e, mais tarde, as duas insurreições de 2003 e 2005 que produziram o fenômeno do MAS e de Evo Morales), a derrubada dos presidentes equatorianos pelas mão do povo em 2000 (igualmente aprofundadas posteriormente com queda de Gutierrez e a eleição de Rafael Correa), o Argentinazo em 2001, assim como a eleição de governos traidores, mas de origem operária, de esquerda etc. como os governos Lula e Tabaré. A “onda” antineoliberal precisaria ser freada e, de forma desesperada, o imperialismo, a burguesia e a oligarquia venezuelanas tentaram atacar o seu elo mais dinâmico. Se deram mal.

A insurreição popular de 13 de abril que reconduziu Chávez à presidência foi um marco importante nos rumos do processo revolucionário. Não detalharemos aqui os fatos que compuseram o golpe e o contragolpe revolucionário, do 11 ao 13 de abril, para isso há uma literatura razoável, mas a riqueza dos acontecimentos e o chicote da  contrarrevolução colocaram em marcha um aprofundamento do processo, animaram a ação independente das massas e modificaram os rumos de sua direção. Pela força do movimento de massas e a união dos setores militares chavistas, a burguesia foi derrotada, a revolução andou sobre dois pés, iniciou sua fase adulta.

Nesse momento, foi importante a vinda do presidente Chávez ao Fórum Social Mundial em 2003 a convite da então deputada federal Luciana Genro e de Roberto Robaina (atual dirigente do PSOL; naquele momento ainda no PT). Fato que aconteceu por fora da organização e contra a vontade da burocracia do FSM, incluindo o PT. Este vínculo foi importante para que o debate em torno da Venezuela fosse socializado com a vanguarda brasileira, naquele momento iniciando sua experiência com o governo Lula. Quanto mais pressionado pelo movimento de massas, mais próximo de uma posição revolucionária Chávez esteve. Infelizmente foi migrando a uma posição de colaboração com o PT no Brasil, alimentando ilusões em nome de determinados interesses de Estado.

É sabido que Chávez e seus aliados até então, ainda tinham a ilusão de um bloco patriótico sem definições de classes, apostavam na possibilidade de um acordo com este ou aquele setor burguês para o desenvolvimento de um projeto nacionalista, assim como o povo pobre ainda não tinha feito completamente a experiência com sua classe dominante, o golpe foi decisivo para deixar as coisas às claras. O discurso de Chávez no Fórum Social Mundial de 2005[7] é ilustrativo deste fenômeno:

Pues bien, han pasado tantas cosas en estos años, han pasado tanta cosas que me permiten decir, reflexionar con ustedes la clareza de aquella expresión de  León Trotsky, cuando dijo que a toda revolución le hace falta el látigo de contrarrevolución(…). Se pretendió convertir Venezuela en un país tutelado, se pretendió instalar en Venezuela, un procónsul, que todos los días daba ruedas de prensa, pretendiendo instaurar un suprapoder o un poder supranacional por encima de nuestras leyes, por en cima de nuestras instituciones, por en cima de nuestra Constitución. Todo eso nosotros lo resistimos y esa arremetida contrarrevolucionaria nos permitió, primero, pasando la defensiva para resistir a la agresión. Resistir, resistir y resistir hasta que nos correspondió pasar a la contra ofensiva, pasar al contra ataque, y fue así como en el 2003, nosotros, por primera vez, podemos decir que Venezuela recuperó su empresa petrolera , porque siempre estuvo en manos de la oligarquía y del imperio norteamericano, recuperamos la industria petrolera, pero aquello fue una batalla, una verdadera batalla, una guerra económica, social, comunicacional, tecnológica, popular y hasta militar(…)  (Hugo Chávez, 2006)

As campanhas de desestabilização da oposição seguiam ao final de 2002 e inícios de 2003, sempre amparadas pela mídia privada. Após tentativas fracassadas em agosto e setembro de 2002, é no início do ano de 2003 que a burguesia, apoiada na direção da PDVSA, organiza o chamado paro petrolero. Um locaute que deixou o país sem abastecimento de combustível, convulsionou a economia nacional e debilitou a posição no mercado internacional. Uma resposta teria de ser dada.

Mais uma vez o povo pobre da Venezuela deu uma lição para os povos do mundo. Frente à crise e à manobra patronal, os movimentos populares, sociais e operários organizaram a ocupação e a garantia de funcionamento da PDVSA. Uma batalha popular, midiática, econômica, política e, conseqüentemente, militar. A mobilização popular dos bairros e a união cívico-militar, assim como no 13 de abril, foram a garantia de mais um salto: a nacionalização da PDVSA.

No obstante los huelguistas golpistas, la meritocracia fue despedida en su totalidad y prácticamente desde las ruinas se reinició la actividad petrolera. Meses después, los sectores populares y revolucionarios, claves en la recuperación de la industria petrolera comienzan a denunciar una restauración meritocrática em PDVSA. Regresión que aún hoy continúan denunciando sin que ello haya generado ninguna medida desde el alto gobierno. Flujos y reflujos revolucionarios, diría Mandel. (Bonilla e Troudi, 2004)

Um debate importante passa a compor o mosaico da Revolução Bolivariana. Com a renda petroleira sob controle do governo, um conjunto de mudanças econômicas e políticas enriquecem o cenário e aprofundam as iniciativas, no entanto, as contradições se agudizam cada vez mais. Um exemplo importante foi a criação da Universidade Bolivariana da Venezuela Criada mediante decreto Presidencial Nº 2.517, de 18 de julho de 2003.

Outro indicador fundamental do desenvolvimento da consciência e da organização dos trabalhadores venezuelanos foi a criação da UNT (União Nacional dos Trabalhadores). Em contrapartida às manobras e à corrupção da Central dos Trabalhadores da Venezuela (CTV), setores classistas e revolucionários encabeçados por Stálin Perez Borges, Orlando Chirinno, Richard Gallardo, Ruben Linarez e outros sindicalistas, fundam em 5 de abril de 2003 a UNT agrupando os setores combativos do movimento operário e cada vez mais aprofundando a democratização dos sindicatos antes dirigidos pela burocracia adeco-copeiana da CTV.

Do segundo semestre de 2003 até o segundo semestre de 2004 a variação do PIB é impressionantemente positiva e pode-se dizer que de 2004 a 2007 a economia venezuelana teve um crescimento sustentável. Do ponto de vista da capacidade aquisitiva dos trabalhadores também houve uma evolução. Segundo Troudi[8]:

La fuerza de trabajo ha visto mejorar su capacidad adquisitiva entre el período 2004 y 2007; especialmente los sectores de menores ingresos quienes se han beneficiado del incremento sucesivo del salario mínimo y han sido beneficiados por las transferencias directas en servicios gratuitos de salud, educación y las misiones sociales. Al comparar el índice de remuneraciones al cierre de 2003 con el cierre de 2007 refleja una mejoría del salario promedio real de 18,33 por ciento y el salario mínimo refleja un incremento real. (Troudi, 2010)

A disputa pelo controle sobre a renda petroleira se converteu realmente em um combate entre dois projetos político-econômicos. O fato de a disputa ter se dado por setores populares e a vitória ter sido garantida pela sua luta pressionou para que também a utilização da renda petroleira fosse destinada à satisfação de necessidades econômicas da classe trabalhadora, como sugere Vicente Ribeiro[9]:

Muito da política petroleira do governo bolivariano representou um retorno às diretrizes seguidas pelo governo venezuelano ao longo do século XX. A diferença, entretanto, é que esta retomada do nacionalismo petroleiro é promovida por um bloco popular apesar e contra os principais setores da burguesia. As políticas levadas a cabo antes da ascensão do governo bolivariano e a reação destes setores à retomada do nacionalismo petroleiro demonstram a existência de profundas transformações nos setores dominantes. Frente à transnacionalização dos interesses da burguesia venezuelana, a retomada do nacionalismo petroleiro não se realiza enquanto conciliação entre classes, unidas pela sua condição comum de proprietárias de uma riqueza natural, mas sim pelo acirramento de sua polarização. (Ribeiro, 2009)

Também no terreno internacional o governo bolivariano ganhou musculatura para um enfrentamento mais intenso contra o imperialismo. A polarização com os setores dominantes da Venezuela e o avanço da consciência antiimperialista na região foi decisivo para que em 25 de novembro de 2003, durante a V Assembléia Geral da Confederação Parlamentar das Américas, em Caracas, Chávez anunciasse a idéia da Aliança Bolivariana para os povos de nossa América (ALBA). A ALBA seria uma proposta antitética à ALCA (Área de Livre Comercio entre as Américas) proposta pelos EUA para facilitar o comércio, livre de barreiras alfandegárias, na região. Entre as propostas de integração também figuravam uma proposta de Fundo Compensatório para ajudar aos países mais pobres, além da integração entre os produtores de petróleo (PETROAMERICAS), uma TV unificada (TELESUR) e um Banco do Sul, visando à integração econômico-financeira.

Inicialmente firmada por Venezuela e Cuba (14 de dezembro de 2004 em Havana), a ALBA ainda contaria com a participação da Bolívia a partir de 2006, da Nicarágua a partir de 2007, Honduras em 2008 – o que rendeu ao então presidente Manuel Zelaya um golpe de estado que o retirou do poder – o Equador se incorpora em 2009, além de outros países pertencentes ao CARICOM, Comunidade Caribenha.

Aqui se faz importante debater o papel que o governo brasileiro cumpriu no sentido de não “continentalizar” a proposta. Além da negativa de participação em função do MERCOSUL, também não impulsionou as medidas relativas ao petróleo ou o sistema financeiro em nome de interesses comerciais da burguesia brasileira. Certamente a entrada do Brasil seria uma sinalização positiva ao aprofundamento do processo revolucionário e de sua expansão, no entanto, também neste caso demonstrou-se qual a política real do governo do PT.

Após a nacionalização da PDVSA, Chávez ainda passou por um referendo revogatório em 2004, no qual reafirmou sua posição de liderança do processo, desta vez, com mais de 60% dos votos favoráveis à sua continuidade. Como parte da proposta da ALBA e em conformidade com seus princípios integradores, propostas como a erradicação do analfabetismo em 2005 (com a ajuda de Cuba através do método Si, Yo puedo!), as missões de educação e o Barrio Adentro, projeto da área da saúde, também em parceria com os médicos cubanos, foram muito importantes para o avanço do processo revolucionário.

No mesmo discurso proferido no Fórum Social Mundial, em 2005, para além de um balanço do processo revolucionário Chávez expressa o caminho do socialismo com democracia como objetivo da Revolução:

Negar los derechos a los pueblos es el camino del salvajismo, el capitalismo es salvajismo. Yo, cada día me convenzo más, capitalismo y socialismo, no tengo la menor duda. Es necesario, decimos y dicen muchos intelectuales del mundo, transcender al capitalismo, pero agrego yo, el capitalismo no se va a transcender por dentro del mismo capitalismo, no. Al capitalismo hay que transcenderlo por la vía del socialismo (…) el verdadero socialismo. ¡La igualdad, la justicia! (…) Y además, también estoy convencido que es posible tanscender al capitalismo por la vía del socialismo y más allá, en democracia. (Hugo Chávez, 2006)

Em 2006, Chávez ganha novamente a eleição presidencial com um resultado de 62,84% frente aos 36,9% do candidato escualido Manuel Rosales. Desde então começa uma virada na “cabeça” da Revolução. Chávez, a partir da vitória, 18 de dezembro de 2006 o Ministro da Comunicação e Informação Willian Lara anunciou a elaboração de uma carta dirigida ao Conselho Nacional Eleitoral, sobre a proposta de dissolver formalmente o Movimento Quinta República. Chávez salientou a necessidade de um único partido, unido pela causa bolivariana.  Além disso, fortalece-se o caráter antiimperialista do governo que tem talvez como uma de suas maiores expressões o discurso de Chávez na ONU em 20 de setembro de 2006, no qual, ao suceder Bush faz uma denúncia da guerra, a dominação e a exploração, chama a receita imperialista de “receita do Diabo” parafraseando Hitchcok, e discute o futuro do mundo. No mesmo ano de 2006, um grande exemplo da luta antiimperialista foi a atividade realizada na Argentina, em Mar Del Plata (que inclusive contou com a presença de Diego Maradona), contra a ALCA que significou um golpe importante no imperialismo americano. Estava na hora buscar a fortaleza na unidade.

Em 24 de março de 2007 é fundado o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) como parte de uma ampla mobilização social que se expressou nas eleições de 2006. Em seu lançamento o PSUV, fez uma ampla campanha de filiações, chegando a 3 milhões de filiados em menos de um ano.

A fundação do Partido também foi parte do novo projeto de desenvolvimento econômico e social da Venezuela expresso no Proyecto Nacional Simón Bolívar que tratou de dar as linhas gerais para o período de 2007 a 2013 orientando “a construção do Socialismo do Século XXI. As diretrizes fundamentais do Projeto são: 1) A nova ética socialista, anunciando a necessidade de uma mudança profunda dos valores capitalistas herdados dos anos de dependência e exploração; 2) A suprema felicidade social, a partir da construção de uma estrutura social inclusiva, um novo modelo social, produtivo, humanista e endógeno; 3)Democracia protagonista e revolucionária, para consolidar uma organização social que possa transformar  as debilidades individuais em força coletiva, reforçando a independência, a liberdade e o poder originário do indivíduo; 4) Modelo produtivo socialista, com o fim de conseguir um trabalho com significado, buscar-se-á a eliminação de sua divisão social, de sua estrutura hierárquica e da disjuntiva entre a satisfação das necessidades humanas e a produção da riqueza subordinada à reprodução do capital; 5) Nova geopolítica nacional, modificando a estrutura socioterritorial da Venezuela e perseguindo a articulação interna do modelo produtivo, através de um desenvolvimento territorial desconcentrado, definido por eixos integradores, regiões programa, um sistema de  cidades interconectadas  e um ambiente sustentável; 6) Venezuela, potência energética mundial, utilizando os recursos energéticos soberanamente associado à integração regional e mundial e 7) Nova geopolítica internacional, em busca de um mundo multipolar, na busca por justiça , solidariedade e garantindo a paz, sob o aprofundamento do diálogo fraterno entre os povos, sua autodeterminação e pelo respeito às liberdades de pensamento. (Proyecto Nacional Simon Bolívar, líneas de desarollo económico y social de la nación, Gobierno Bolivariano de Venezuela, pp. 5, 6 e 7).

Muito se avançou a partir da divulgação do Projeto Simón Bolívar, no entanto, a grandiloqüência do projeto encontrou e cada vez mais encontra empecilhos políticos e econômicos para a construção de um autêntico socialismo do século XXI.

Como parte dos avanços podemos citar algumas medidas como as nacionalizações. Em maio de 2007, o governo passou a controlar a maior parte das ações das empresas de eletricidade, em 1º de setembro de 2007 o governo tomou as instalações de quatro refinarias na Faixa petrolífera do Orinoco, que significaram 30 milhões de dólares retirados do controle de empresas internacionais.

Apesar das medidas extremamente progressivas (que em grande parte não foram bem compreendidas, em especial, pelos setores de extrema esquerda), o crescimento do controle sobre a renda petroleira também engordou uma burocracia e, aos poucos começou a retirar o protagonismo da organização popular. Esse fato teve como expressão a derrota do referendo em dezembro de 2007, talvez a primeira derrota política do chavismo em dez anos e anunciou outras derrotas que viriam nos anos seguintes.

Em 2008, mais um fato importante marca a conjuntura venezuelana e novamente o governo se encontra no limite entre o avanço e o retrocesso. Após inúmeros enfrentamentos ligados às condições de trabalho na siderúrgica SIDOR. A empresa havia sido privatizada em 1998 (ainda no governo de Carlos Andrés Perez) e acumulou, ao longo dos anos, diversas causas trabalhistas e descontentamentos dos trabalhadores.

As mobilizações foram fortíssimas, enfrentamentos com a polícia e com o governador do estado de Bolívar que fazia parte do campo chavista, mas estava defendendo interesses estranhos ao movimento operário, inclusive com medidas de repressão. Tanto ele como o Ministro do Trabalho caíram pela força da mobilização. Depois de inúmeros combates e tentativas de negociação o governo nacional tomou partido nos conflitos e decidiu por nacionalizar a SIDOR.

La renacionalización de la empresa Sidor por parte del gobierno bolivariano constituye un golpe a las políticas privatizadoras del capitalismo global, y al mismo tiempo golpea también a la derecha endógena que dentro del chavismo pretendía escamotear las reivindicaciones de los trabajadores y doblegarse a los intereses de la transnacional argentina. (Roberto López Sánchez, Aporrea, 11/04/2008)

Aqui duas questões são importantes de serem analisadas: a) o crescimento da burocracia e da “direita endógena”; b) a disposição de um setor importante dos trabalhadores em avançar para além da organização capitalista da produção e a permeabilidade de um setor do governo (especialmente Chávez, nesse caso) às reivindicações mais profundas da classe trabalhadora. Na esteira da nacionalização de SIDOR, iniciou-se um debate e um conjunto de medidas acerca do controle operário da produção. Uma experiência importantíssima se abriu a partir dessa conquista, e seu desenvolvimento levou o governo, em 16 de maio de 2010, a anunciar o plano Guayana Socialista que passou às mãos dos trabalhadores, o controle sobre a indústria básica. A declaração de Marea Socialista definiu de forma muito correta este momento:

Sin duda alguna lo de ayer en Guayana se trata de un hecho revolucionario. Categóricamente lo creemos así. Hubo un cambio de gobierno donde se vencieron, en el marco de una lucha que aún continúa, las presiones de la burocracia y de la burguesía nacional e internacional.  En otras palabras, una derrota importantísima contra las mafias que controlaban el proceso de producción y comercialización de las empresas que están operativas y, por otro lado, una derrota contra la política capitalista liquidadora  de las empresas que progresivamente fueron sacadas de la producción. Quienes conocemos la experiencia de lucha en Guayana y sabemos que este era el camino, es decir, el mismo de la experiencia de Sidor y de la ahora Coorporación Electrica Nacional, no pudimos evitar nuestra grata sorpresa al ver al “Piojo” Cruz Bello, un luchador clasista de toda la vida, trabajador de TAVSA, haciendo la apertura del evento de ayer y convencido de lo que significa, no sólo para los trabajadores de Venezuela, la importancia histórica de las medidas que se iban a anunciar. (Marea Socialista, 17/05/2010)

Como decorrência desse momento, Marea acertou em cheio quando definiu a necessidade de uma Constituinte Operária que possa discutir de conjunto o regime de trabalho no país. Muitas medidas progressivas foram tomadas a este respeito, como a Inamovilidad Laboral que proíbe a demissão de trabalhadores que recebem até três salários mínimos, entretanto, ainda não há um novo regime laboral que modifique, de fato as relações de produção. Esta é uma luta em curso e depende da derrota do setor burocrático que se formou e trabalha contra as propostas de controle operário.

Outros debates importantes ainda estão permeando a vanguarda venezuelana e uma atividade intensa de propaganda socialista segue sendo feita pelo governo através de publicações dos textos de Lênin, Che, Allende, Mariátegui e tantos outros socialistas, muito difundidas no país a preços módicos ou até mesmo de graça pelas Edições El Perro y la Rana feitas através de uma parceria entre a biblioteca nacional e o governo. Um bom exemplo é o debate feito no Alô Presidente e reproduzido nos Cuadernos para el debate[10] acerca da propriedade e do papel das comunas e conselhos comunais que, de fato, acumularam um certo poder de decisão sobre as políticas nos bairros:

Esas Comunidades socialistas, así lo entiendo yo, deben ser las comunas. La comuna debe ser el espacio sobre el cual vamos parir el socialismo. El socialismo desde donde tiene que surgir es desde las bases, no se decreta esto; hay que crearlo. Es una creación popular, de las masas, de la nación; es una “creación heroica”, decía Mariátegui. Es un parto histórico, no es desde la Presidencia da República. (Hugo Chávez, 2010)

Três pés à tarde

Do ponto de vista político-eleitoral, as derrotas que o chavismo sofreu após 2006, reforçaram a tendência ao crescimento da burocracia. O chavismo perdeu a prefeitura da região metropolitana de Caracas (constituída por cidades importantes como Cachao, Baruta, Sucre, El Hálito e a própria capital) entre outras tantas derrotas. Mas talvez a mais importante derrota tenha sido a derrota do referendo constitucional em dezembro de 2007 na qual 50,7% votaram NÃO para as mudanças propostas, com 49,2% votando SIM e 44% se abstendo. Em comparação com a última eleição, a presidencial de dezembro de 2006, Chávez perdeu 3 milhões de votos, obtendo 4 milhões para o sim. Sequer os filiados do PSUV (5 milhões) acompanharam a política. Ao mesmo tempo, a direita ganhou 300.000 votos comparados à eleição presidencial. Importantes mudanças poderiam acontecer caso o SIM tivesse saído vitorioso no referendo, provavelmente teria aprofundado as características revolucionárias do processo e poderia ter avançado a medidas econômicas e políticas de caráter transicional, no entanto, a derrota é também um alarme para a direção do processo. Um distanciamento muito grande das necessidades objetivas do povo e a burocratização em curso demonstraram o quanto é dialético o movimento da consciência da classe e como a incoerência entre o discurso “rojo” e socialista do governo e a prática concreta dos burocratas, esvaziam o conteúdo político das tarefas práticas que se impõem no combate à burguesia, reforçando vícios como o eleitoralismo, o personalismo, o messianismo etc.

Com a entrada em cena da crise econômica mundial, em 2007/2008, a situação ficou ainda mais complicada. O país foi atingido por uma inflação brutal de 25%, exigindo medidas de urgência e, por vezes demasiadamente rudimentares, levando problemas inclusive às empresas nacionalizadas.

Chávez teve uma importante iniciativa de buscar intelectuais da esquerda para debater a situação econômica, no entanto, na política cotidiana o que primou foram as dificuldades. Além disso, alguns reveses políticos nesse período como a tentativa de desestabilização de Evo Morales na Bolívia e o golpe que derrubou Zelaya em Honduras enfraqueceu a possibilidade de expansão da Revolução Bolivariana. A dinâmica descendente da expansão, também levou a direção política do chavismo a buscar cada vez mais resguardo nas burocracias chinesa e cubana e as decorrentes políticas conservadoras como o Fundo Chino que via um compromisso de exportações da indústria básica amarram cada vez mais as ricas experiências de Controle Operário em Guayana ao aparato e aos interesses da burocracia do PC chinês.

As chamadas “razões de Estado” primaram a tal ponto que Chávez defendeu, junto com Fidel, a permanência de Khadafi e Mubarak e um suposto “caminho de diálogo” frente às Revoluções democráticas que estes países estão passando que significaram uma mudança importante (porém ainda não decisiva) na correlação de forças mundial.

 

Decifra-me ou te devoro

 

Em um discurso muito ilustrativo, em 23 de janeiro de 2011 (na marcha referente à data em que foi derrubada aditadura de Pérez Jiménez), Chávez definiu a história da Venezuela a partir de quatro Revoluções e quatro traições:

Que nadie nos aparte de ese camino. Ya hubo muchas traiciones, desde la Cosiata contra Bolívar, la traición que mató a Sucre, la traición que terminó matando a Zamora, y traicionando a la Revolución Federal en el Pacto de Coche, ahí en la hacienda Coche, se firmó la traición al pueblo que hizo e impulsó la Revolución Federal.

La traición de 1908, aquí en este Palacio contra el gran patriota que fue Cipriano Castro. Ya basta, yo lo dije hace poco, producto de mis modestas reflexiones de soldado que piensa y que batalla todos los días.

En la historia venezolana van cinco grandes revoluciones, la primera fue la revolución india-aborigen “¡Anakarina rote aunucon itoto paparoto mantoro! Gritaba Guaicaipuro en estos mismos valles.

La segunda gran Revolución fue la de Miranda y la de Bolívar, la del pueblo de hace 200 años, que también terminó fracasada. La tercera gran Revolución de nuestra historia fue la Revolución Federal que también terminó fracasada, dirigida como fue por Ezequiel Zamora. La cuarta gran Revolución fue, la Revolución Restauradora dirigida por Cipriano Castro, también traicionada. Cuatro grandes revoluciones, cuatro grandes traiciones, ésta es la que estamos viviendo ahora, la quinta gran Revolución de nuestra historia, y esta Revolución la Bolivariana, no nació para ser traicionada, nació para hacer patria grande, independiente y para recoger los 500 años de batalla, para recoger todos los caminos, como aquel camino que condujo hace 53 años, al derrocamiento de Pérez Jiménez y a la insurgencia de una esperanza nacional, que hoy está aquí presente.

El verdadero 23 de enero, está reivindicado, se unió al 4 de febrero, se unió al 27 de noviembre, se unió al Caracazo, se había unido al Caracazo, se unió al 6 de diciembre y al 2 de febrero de 1999 y todas se unieron el 13 de abril, contra la dictadura de la oligarquía.

Que trató de instalar de nuevo la dictadura de Punto Fijo.

Aquí estamos 53 años después, que sería lo mismo decir, aquí estamos 500 años después. Esta Revolución llegó para triunfar, pase lo que pase, cueste lo que cueste (…) (Hugo Chávez, 2011)

De fato, é preciso debater o futuro do processo venezuelano. Os elementos apontados acima estão permeados por uma situação mundial distinta marcada essencialmente pela crise econômica mundial, a resistência na Europa e as revoluções no mundo Árabe. Um cenário onde o imperialismo norte-americano encontra-se com dificuldades de manter seu poder unilateral e já permeada pela força da China no mercado internacional, assim como os outros países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e a própria China). Dessa forma é necessário localizar os processos nacionais nesse marco.

Esta definição não pode ser especulativa e tampouco contemplativa. A relação com os companheiros de Marea Socialista, certamente jogará luzes sobre as tarefas que se impõem a partir de então, particularmente para os revolucionários internacionalistas que acompanham ativamente o processo revolucionário bolivariano. Nesse debate, é preciso escapar das saídas fáceis e dogmáticas como, por exemplo, a posição sustentada por Orlando Chirino da C-CURA. Chirino foi parte importante da reorganização do movimento sindical no Estado de Carabobo, em especial, em Valencia. Chirino tirou conclusões de que o Governo de Chávez é o principal entrave do desenvolvimento da Revolução.

Um dos temas mais importantes que hoje balizam os enfrentamentos entre os escuálidos, representantes dos interesses da burguesia venezuelana e o conjunto das forças políticas que compõem o bloco bolivariano é o tema das expropriações. Diversas empresas foram nacionalizadas e o balanço sobre estas experiências ainda não está totalmente acabado.

Por um lado, a partir da nacionalização da PDVSA, houve uma transferência muito progressiva da renda petroleira para a população mais pobre através de políticas sociais substanciais e aumento real dos salários. Por outro, grande parte das empresas posteriormente nacionalizadas, pela burocratização e má gestão, funcionam debilmente prejudicando os trabalhadores em termos econômicos.

Diante desse quadro, muitos trabalhadores tem tirado conclusões equivocadas e reagido contra as expropriações e seu conteúdo progressivo. Lamentavelmente os companheiros de C-CURA, sob direção de Orlando Chirino ao propor a campanha “Não às expropriações, sim ao salário” em conjunto com a patronal do grande grupo empresarial Polar, confunde os trabalhadores e fortalece a posição mais atrasada presente no movimento operário. Capitula ao economicismo das reivindicações imediatas e não contribui para o aprofundamento da Revolução Bolivariana.

Tristemente, assistimos aos companheiros marchando lado a lado a deputados da direita venezuelana, engrossando as fileiras dos piores inimigos dos trabalhadores e incorrendo em um grave erro político. Chirino não é o único, uma boa parte da extrema esquerda confunde-se e cai nessa aramadilha, ficam dessa forma como satélites de posições de direita ou, na melhor das hipóteses sem espaço político para suas posições.

Equivocada também seria a posição que embeleza os erros do chavismo e esconde o processo de degeneração buroocrática que o bloco sofre. É evidente que se não houver um impulso do poder popular e sindical desde as organizações populares e um novo ascenso latino-americano dificilmente as tendências do capitalismo de Estado percam a posição dominante. O isolamento internacional é parte fundamental da derrota daquele processo e, por isso mesmo, é tão grave a posição desastrosa de Chávez/Fidel sobre as revoluções do mundo árabe, em especial, com relação a Khadafi.

A disputa sobre o significado das revoluções democráticas e seu caráter permanente é uma batalha que extrapola o campo dos revolucionários. É uma disputa com a burguesia internacional também.  O fato de Khadafi ter sido o primeiro ditador a enfrentar de forma militar as rebeliões populares deu vazão a uma ação concertada de diversos governos autoritários da região para seguirem o mesmo caminho. Arábia Saudita, Síria, Barheim, entre outros, tem reprimido brutalmente as mobilizações.

Dessa forma, não é equivocado definir que o carro-chefe da contrarrevolução, objetivamente, foi Khadafi. Em um raciocínio que divide o mundo em países contra e a favor do imperialismo americano, abstrai as condições essenciais de autodeterminação dos povos e, dessa forma, na prática, apóia a contrarrevolução, abandonando um princípio fundamental dos revolucionários da defesa da democracia e da autodeterminação.

Após a vitória apertada do referendo de 2009 que permite a reeleição de Chávez e todas as dificuldades acima apontadas, as eleições de 2012 serão um capítulo importante da batalha contra a burguesia local e ficar em outro campo que não seja o de Chávez, a primeira vista, nos parece ser uma política de auto-isolamento que em nada contribui para o aprofundamento da revolução no continente. Os resultados das eleições no Peru e o fortalecimento de La Lucha Continua, o desenvolvimento e reconhecimento como organização política e social da FNRP em Honduras, as eleições na Argentina com Pino Solanas, o desenvolvimento e crescimento do Marea Socialista e a construção do PSOL certamente são parte do mesmo processo, com as contradições que ele traz. Aprofundar esses processos é tarefa de todos os revolucionários.

O “decifra-me ou te devoro” parece se impor ao movimento de massas na Venezuela. O enigma será a possibilidade do movimento operário e popular assumir mais protagonismo frente à burocracia e suas relações internacionais, razões de Estado e conservadorismo. Não poderá voltar a engatinhar. Necessariamente deverá largar a bengala e andar por suas próprias pernas, pois o antípoda do suicídio da Esfinge, só pode ser a morte da Revolução.


[1]           Historia de la Revolución Bolivariana, Pequeña Crónica 1948-2004. Luis Bonilla e Haiman El Troudi. Colección Participación Protagónica y Revolución Bolivariana, 2004.

[2]              Idem.

[3]           A História do Tempo Presente Venezuelana: de 1950 ao Século XXI, Rafael Araujo, 2009.

[4] Íris Garcia, entrevista concedida a Pedro Fuentes, Secretário de Relações Internacionais do PSOL durante o referendo de 2007.

[5] Aristóbulo Istúriz é professor, foi prefeito de Caracas, eleito em 1992 pela Causa R, deputado nacional eleito em 1999, Ministro da Educação do governo Chávez de 2001 a 2007. Foi derrotado em sua candidatura à Prefeitura metropolitana de Caracas em 2008 e é deputado nacional desde 2010. Saiu do PPT em 2007, quando da fundação do PSUV, no qual hoje é vice-presidente da região Capital e estado de Vargas. O PPT não compõe mais o bloco chavista.

[6] Constitución de la República Bolivariana de Venezuela, 24 de março de 2000.

[7] La Unidad Latinoamericana, Hugo Chávez, 2006, pp. 108 e 109

[8] La Política Económica Bolivariana, y los dilemas de la transición socialista en Venezuela, 2010, p. 46

[9] Petróleo e Processo Bolivariano: Uma análise da disputa pelo controle do petróleo na Venezuela entre 2001 e 2003, 2009.

[10] Comunas, propiedad y socialismo. Hugo Chávez, agosto de 2010.


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