Sobre deuses, titãs e homens
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Sobre deuses, titãs e homens

A famosa hospitalidade grega tem-me chamado a atenção permanentemente. Mesmo em tempos de crise, as pessoas não hesitam em conversar, tocar, dispor de alguns minutos de sua atenção e gentileza. Os gregos são um povo definitivamente receptivo. E nisso se parecem muito com os latino-americanos. Mas as semelhanças não ficam aí.

Thiago Aguiar 23 fev 2012, 22:19

A famosa hospitalidade grega tem-me chamado a atenção permanentemente. Mesmo em tempos de crise, as pessoas não hesitam em conversar, tocar, dispor de alguns minutos de sua atenção e gentileza. Os gregos são um povo definitivamente receptivo. E nisso se parecem muito com os latino-americanos. Mas as semelhanças não ficam aí.

Convidado para um almoço por um companheiro grego, tenho a oportunidade de desfrutar de uma típica refeição do país. Como carne de cabra com batatas, acompanhado de azeite e vinho do Mediterrâneo. As agradáveis surpresas gastronômicas da tarde terminam com o garçom, notando que sou estrangeiro, deixando em nossa mesa sem cobrar uma sobremesa de nozes, conhaque e mel.

O tempero da tarde, no entanto, foi uma interessante conversa sobre os rumos do movimento na Grécia. Com uma inspiração helênica, o camarada pretende me explicar o que está passando no país: “na mitologia, houve uma época de grande conflito entre os deuses e titãs. Os titãs eram odiados porque comiam os seus filhos caso eles pudessem tornar-se alguma ameaça aos pais. Os deuses, quando venceram o conflito, prometeram que nunca comeriam seus filhos, os homens. Mas eles, contudo, não disseram que iriam controlá-los. Para mim, os titãs são essa face demoníaca do capitalismo, que agora assistimos ao FMI praticar em nosso país. Mas a diferença disso para o deus capitalismo é muito pequena, apenas de grau. Nós precisamos que os homens se libertem. Precisamos do socialismo!”

Os primeiros dias

É impossível chegar à Grécia sem notar a crise econômica. Ela é um fantasma que intermitentemente persegue essa sociedade. Nos noticiários, a crise está presente em quase todas as reportagens. Quando não se trata de números ou de política, as mençōes são de outra natureza: um psiquiatra trata dos números explosivos de casos de suicídios no país e da irracionalidade da política. Aposentados ocupam um edifício público de uma cidade do interior e apelam auxílio às autoridades municipais para que não permitam o encolhimento de suas aposentadorias em 40%. No centro de uma pequena cidade, agricultores decidem entregar 3 quilos de batatas para quem os peça — e são muitos o fazem –, já que não vale a pena vender a produção pelos atuais preços. Fome é uma palavra que aos poucos volta ao vocabulário do país.

A imprensa, na verdade, parece estimular um clima de desespero na população. Irmão siamês da conservação, o desespero do povo parece ser um dos últimos aliados do regime. O outrora poderoso PASOK (partido social-democrata, que governou o país até novembro de 2011 e que agora apóia o governo títere de Papademos), no período posterior à ditadura dos coronéis, havia vencido 5 eleiçōes, passando cerca de 23 anos no poder. Em 2009, foi eleito com 45% dos votos. Porém, após ter sido parte da implementação dos planos de ajuste que abriram espaço para as privatizaçōes, o fim dos subsídios à saúde, o corte das aposentadorias em quase 50% e do salário mínimo de 800 para 489 euros (os jovens receberão ainda menos, cerca de 300 euros), o partido foi à falência. Nas pesquisas de intenção de voto para as próximas eleiçōes, somente 8% dos entrevistados dizem apoiá-lo.

A Troika (FMI, BCE e UE) também decidiu fazer o serviço por sua própria conta. Chutou Papandreus, ex-primeiro-ministro do PASOK, e impôs — sem nenhuma eleição e ilegalmente — Lucas Papademos, um obscuro banqueiro sem nenhuma participação na política até então. O novo primeiro-ministro é o homem de confiança na implementação do segundo plano de ajuste aprovado no último dia 12 com os votos do PASOK e dos partidos conservadores. Nas intençōes de voto, também chama a atenção o fato de um partido neonazista estar perto da barreira de 3% que permite eleger deputados. Parece já ser possível colher algo do que planta o desespero.

No entanto, o que caracteriza esse período é a forte resistência popular e a referência crescente adquirida pelos partidos de esquerda. No mesmo dia 12, enquanto os deputados gregos pretendiam com uma canetada sepultar o destino de geraçōes de gregos, cerca de 1 milhão de pessoas entravam em um forte conflito com a polícia exigindo a queda do governo e o fim dos planos de ajuste. Nas pesquisas de intenção de voto, a coalizão da esquerda radical Syriza aparece com 14% e o Partido Comunista com 13%.

Uma Grécia latino-americana?

O que está acontecendo na Grécia é uma espécie de laboratório europeu sobre como lidar com a crise que assola o continente. A saída que a Troika aponta é simplesmente mais do mesmo: aprofundamento brutal das políticas neoliberais e uma reestruturação econômica, produtiva, social e geográfica que permita o retorno da acumulação de capitais e da competitividade do imperialismo franco-alemão. Para isso, é necessário transformar a periferia da Eurozona num deserto, submetendo-a politicamente, achatando na marra os salários, destruindo direitos historicamente conquistados e aumentando a competição entre os trabalhadores. Ao Estado, cabe desmontar os serviços públicos e concentrar as energias governamentais numa “disciplina fiscal” que permita pagar religiosamente os credores estrangeiros.

Em seu momento, esse tipo de pressão também foi semelhante à que se adotou — e muito se segue adotando — na América Latina durante os últimos 30 anos. O empobrecimento acelerado e a olhos vistos, a pilhagem pura e simples das empresas estatais e a submissão política de uma nação orgulhosa de suas batalhas pela independência e soberania ao longo da história fazem com que os gregos sintam que, cada vez mais, não apenas culturalmente, se aproximam da América Latina. Se por um lado é possível ver semelhanças desse ponto de vista, também é possível comparar a luta dos gregos com a série de lutas que os latino-americanos protagonizaram em resistência ao neoliberalismo. A diferença é que os gregos, agora, estão nos centro dos acontecimentos de uma nova situação mundial, em que os tempos se concentram e horas talvez decidam o percurso dos acontecimentos por muitos anos. Nesse pequeno país de 11 milhōes de habitantes, nos últimos tempos, está o centro da luta de classes mundial. Pela trajetória de luta dos gregos, a Troika sabe que vencer aqui é um passo fundamental para vencer em Portugal, na Itália, na Espanha ou na Irlanda. Passos semelhantes, nestes países, vêm sendo dados.

A ditadura dos mercados no país da ágora

Um dos aspectos mais chocantes da política da Troika para a Grécia é a completa submissão política que impōe ao país. “Somos uma colônia!”, afirmava em letras garrafais a capa de um jornal ateniense. Após a renúncia de Papandreus em novembro, eleiçōes deveriam ter sido convocadas. Mas não foram. Impôs-se, de Bruxelas, um novo chefe de governo, responsável por um dos mais brutais ataques ao nível de vida de um povo, de maneira ilegal e ilegítima. O deus vai aparecendo claramente como titã.

Na Grécia, então, antes de qualquer coisa, as pessoas têm exigido democracia e a queda do governo ilegal. E a primeira coisa que associam à democracia são eleiçōes. Ocorre que a democracia burguesa já se choca a tal ponto com os interesses do capital financeiro internacional que não é possível tolerá-lá. Quando da posse ilegal de Papademos, um acordo previa eleiçōes para 19 de fevereiro. Estas, no entanto, vêm sendo constantemente adiadas. A nova data fixada é o fim de abril, mas ninguém sabe ao certo se acontecerão.

As perspectivas de um forte crescimento da esquerda e de decadência dos velhos partidos fazem com que os banqueiros europeus pensem mil vezes antes de aceitar qualquer eleição. Circula entre a esquerda a notícia de que os conservadores e a Troika pretendem, caso ocorram as eleiçōes, anunciar a incapacidade do país para pagar os aposentados e dizer que só com um novo empréstimo tal seria possível, algo que somente os conservadores — e não a esquerda — poderiam negociar com o FMI. Lançando dúvidas e apostando na confusão e no desespero, a direita pretende agarrar-se ao poder e salvar o regime de uma bancarrota já inevitável.

Os homens e seu tempo: reconstruir a ágora para libertar-se do Olimpo capitalista

A situação a que chegou a Grécia demonstra a necessidade premente de uma democracia real, construída pelo povo para reorganizar a economia, criar novas instituiçōes para o país e salvar as novas geraçōes de gregos da ruína. Para isso, fortalecer um pólo robusto da esquerda, uma real alternativa socialista, que construa o movimento e ajude a canalizar suas demandas e, ao mesmo tempo, exija eleiçōes polarizando-as é a grande tarefa que os lutadores gregos têm pela frente. É necessário formular uma plataforma transitória que permita satisfazer as necessidades imediatas da população ao mesmo tempo em que pressione o sistema financeiro internacional.

A necessidade disso é tão grande quanto urgente. O movimento, que deu mostras de vigor, pode desgastar-se com o desespero de uma situação que piora a cada dia e com um conflito no qual não é possível perceber uma saída política. Para dar passos nesse sentido, a esquerda radical Syriza tem insistentemente apelado à criação de uma frente no movimento e na eleição com o Partido Comunista a partir de algumas tarefas necessárias para fazer frente à ditadura dos mercados e aos planos de ajuste. Não apenas as forças políticas, mas muita gente com quem se conversa por aqui fala da necessidade de um enfrentamento único à Troika e ao governo de Papademos. O PC grego, por sua vez, tem adotado uma postura autocentrada, rechaçando até o momento a construção de uma frente desse tipo. Infelizmente, no entanto, numa situação como a que se vive aqui o tempo pode não ser um aliado.

A luta dos gregos tem demonstrado que o povo que transmitiu à humanidade uma parte fundamental de seu pensamento político pode mais uma vez nos ensinar. Seu legado, dessa vez, pode ser a afirmação de uma democracia real, construída pelos de baixo e que reorganize uma sociedade em crise — agora devorada por titãs neoliberais e deuses financeiros — para satisfazer às necessidades e possibilidades de sua gente. Construir outro futuro já não se trata de especulação ou de um tempo mítico. Trata-se dos homens, do hoje e do agora.

* Thiago Aguiar é militante do Juntos! SP e diretor da UNE pela Oposição de Esquerda. Ele está na Grécia acompanhando a situação de luta no país e representando o Juntos!


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