Caso Kaique: Sinais de que uma sociedade diferente é urgente
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Caso Kaique: Sinais de que uma sociedade diferente é urgente

Na madrugada do último dia 11 de janeiro o adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos de 16 anos foi brutalmente espancado, assassinado e jogado de um viaduto na avenida 9 de julho na região central de São Paulo.

21 jan 2014, 11:26

A escalada da violência contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) no Brasil tem criado uma situação de pânico social intolerável e ganhado, cada vez mais, requintes de crueldade. Na madrugada do último dia 11 de janeiro o adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos de 16 anos foi brutalmente espancado, assassinado e jogado de um viaduto na avenida 9 de julho na região central de São Paulo. Embora o delegado que assinou o boletim de ocorrência tenha registrado o caso como suicídio, essa é uma hipótese difícil de se sustentar, principalmente porque o corpo de Kaique foi encontrado com visíveis sinais de violência como marcas de espancamento, com dentes quebrados e com a perna perfurada.

A homofobia institucional

Kaique não é simplesmente mais uma vítima da nefasta e generalizada violência urbana, a qual todos nós, alguns mais e alguns menos, estamos expostos cotidianamente. A hipótese de suicídio não apenas culpabiliza totalmente a vítima pela sua morte e retira qualquer responsabilidade do poder estatal, como também joga uma cortina de fumaça na real motivação deste crime brutal: a homofobia. Kaique tinha cor, classe social, orientação sexual e estava em uma região notoriamente visada por seus algozes homofóbicos. Desse modo, Kaique passa a integrar o já alarmante número de assassinatos por homofobia que triplicaram em 5 anos (2007 – 2012)[1] e que, de acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, aumentaram em 11% de 2011 para 2012[2]. Vale ainda lembrar que no Brasil mata-se mais LGBT do que em qualquer outro lugar no mundo e que supera países onde a homo e a transexualidade são oficialmente criminalizadas[3].

Para compreendermos melhor a dinâmica social brasileira que revela uma cultura de violência homofóbica é importante atentarmos para o papel que as instituições possuem na ‘produção, reprodução e atualização de todo um conjunto de disposições (discursos, valores, práticas, etc.) por meio das quais a heterossexualidade é instituída e vivenciada como a única possibilidade legítima de expressão sexual e de gênero’ (Warner, 1993). Isso posto, não se pode deixar de notar que o Brasil, desde o governo Fernando Henrique Cardoso, aprovou resoluções favoráveis às LGBT em organizações internacionais, mas sequer fez a lição de casa, ou podemos dizer que o Brasil, seja no governo FHC, Lula ou Dilma, tenha seguido a resolução nº2.653 de 07 de junho de 2001 da Assembleia Geral da OEA, que determina que os Estados-membros adotem “as medidas necessárias para prevenir, punir e erradicar” a discriminação com base em orientação sexual e identidade de gênero?

Os grandes partidos que se revezam no poder, PT e PSDB, ao priorizarem a disputa do aparelho público fazendo concessões e alianças com o pior do setor do atraso e do obscurantismo religioso acabam por jogar na lata do lixo políticas públicas cruciais para a supressão da opressão por orientação sexual e identidade de gênero. Isso quando não são agentes ativos na incrementação da opressão LGBT como vimos no caso do PDC (234/11) da “cura gay” de João Campos (PSDB-GO); na desconfiguração do PLC 122 que criminaliza a homo e transfobia por parte da então senadora Marta Suplicy (PT-SP); no fechamento de espaços públicos e privados de convívio das LGBT nas gestões Serra (PSDB-SP), Kassab (PSD-SP) e Haddad (PT-SP) em São Paulo; no veto, paralisia e sucateamento de campanhas educativas, políticas educacionais e equipamentos públicos que visam a eliminação das relações de opressão LGBT.

Ainda no final de 2013 o movimento LGBT e ativistas dos direitos humanos de todo o país foram surpreendidos com o descaso que o planalto tratou o tema ao orientar sua bancada de senadores a só votar o PLC-122 depois das eleições de 2014, pois essa seria a condição para que grupos evangélicos apoiassem a candidatura à reeleição da presidente Dilma Rousseff[4]. Além disso, no próximo período as LGBT do Rio de Janeiro vão ter uma importante batalha a ser enfrentada, porque as principais candidaturas – Sérgio Cabral (PMDB), Lindbergh Farias (PT), Anthony Garotinho (PR) e Marcelo Crivella (PRB) – a governador do estado são ligadas ao que há de pior do oportunismo religioso e que já desferiram fortes ataques contra as LGBT como o voto contrário ao PLC-122 por parte do petista Lindbergh Farias.

Enquanto LGBT são quase que diariamente mutiladas e assassinadas, as instituições públicas que deveriam existir para garantir a segurança, educação, saúde e qualidade de vida da população, são parasitadas por partidos e políticos corruptos, incapazes e que têm pouco ou nenhum interesse no bem estar da população de modo geral e menos ainda no das LGBT. É por essa razão que cada vez mais as LGBT têm que se apoderar do debate política e desenvolver uma cultura mais ampla de participação política de modo a constranger e inviabilizar ataques de classe e opressores contra o povo.

As LGBT, os rolezinhos e o direito à cidade

Qualquer um que passe pela região do Largo do Arouche, da praça da República, da rua Augusta e Frei Caneca em São Paulo aos finais de semana à noite, logo vai perceber que esses espaços centrais são tomados por várias LGBT e que a imensa maioria delas vêm da vasta periferia de São Paulo e arredores. Todos esses jovens buscam no centro uma oportunidade de lazer, diversão, socialização e de viverem suas identidades de gênero e sexualidades de maneira plena, livre e segura. Contudo, na grande maioria das vezes encontram um espaço público que não foi feito para elas e que não está preparado e nem disposto a protegê-las.

O deslocamento semanal que milhares de LGBT fazem da periferia até o centro é comparável com o recente fenômeno social dos rolezinhos em grandes e luxuosos shoppings da cidade. A motivação principal é a mesma: a busca pelo direito à cidade. As LGBT que não têm dinheiro para pagar semanalmente as caríssimas entradas de baladas, bares e saunas têm que ficar sujeitas a todos os tipos de perigos que a rua as oferece, os quais vão desde a bebida de baixíssima qualidade vendida em isopores até o descaso policial para inibir, impossibilitar e punir ataques homofóbicos. Da mesma forma que Kaique, essas LGBT e a maioria dos jovens, que vão aos shoppings fazer seus “rolês”, são pobres, negros e sofrem na pele as sanções contra aqueles que “não sabem seu lugar”.

Como disse Eliane Brum para versão brasileira do jornal El País, nós vivemos uma violência estatal tão generalizada que “é nesta esquina simbólica, na indagação sobre o território de cada um, que o caso Kaique e os rolezinhos se encontram. Ao se deparar com um jovem negro e homossexual morto, o corpo flagelado, perto de um viaduto, a polícia tem, sem qualquer investigação, a convicção de que não houve um crime. Ao encontrar um grupo de jovens da periferia, a maioria negros, bem vivos dentro de um shopping, a polícia tem a certeza de que, sim, é um crime. Se ainda não cometeram furtos, roubos e arrastões, certamente o farão. Do crime, não são vítimas, mas autores.”

Kaique foi mais um que caiu nessa guerra diária contra todas as formas de preconceito, exploração e opressão, e contra aqueles que extraem privilégios dessas relações. Essa é uma guerra que derrama muito sangue todos os dias de travestis e transexuais que são covarde e cruelmente assassinadas, da juventude negra que é exterminada nas periferias e morros desse país, dos índios que são removidos e silenciados e das mulheres que são violentadas muitas vezes até a morte e que o estado insiste em tratar como crime passional o que é femicídio.

Porém, temos que ter bem claro que só há um jeito de vencer e é através da organização e atuação coletiva. No dia 17 de janeiro mais de mil pessoas marcharam até o viaduto do qual Kaique foi jogado para dizer aos machistas, racistas, homo e transfóbicos que nós não esquecemos e que não seremos assassinados. No último mês milhares de jovens pobres têm profanado os templos de consumo e elegância das classes mais ricas para dizer que estão cansados de tanta desigualdade social e exclusão. Nós, trabalhadores e trabalhadoras, LGBT e héteros, cis e trans, brancxs e negrxs seguiremos ocupando ruas e praças até que sejamos de fato livres e tenhamos o nosso direito à cidade conquistado.

[1] http://noticias.terra.com.br/brasil/assssinatos-de-homossexuais-triplicaram-em-5-anos-no-brasil,2866550d5112c310VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD.html
[2] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/01/secretaria-da-presidencia-manifesta-solidariedade-familia-de-kaique.html
[3] http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u394218.shtml
[4] http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2013-12-13/por-2014-planalto-freia-projeto-que-criminaliza-homofobia.html

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