Entre a barbárie e o sonho
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Entre a barbárie e o sonho

É nosso dever lutar incansavelmente contra todas as formas de opressão. Não podemos estar ao lado da barbárie e do desrespeito aos direitos humanos fundamentais.

Felipe Aveiro 16 fev 2014, 23:24

*Felipe Aveiro

O que era pra ser apenas uma partida da Copa Libertadores da América mostrou-se sintoma de um problema muito maior. Durante uma partida realizada no Peru na última quarta-feira (12), torcedores do Real Garcilaso hostilizavam Tinga, meio-campista do Cruzeiro. Toda vez que ele tocava a bola, a torcida urrava e imitava gestos de macaco, fazendo alusão à sua cor negra, em uma tentativa de desumanizar o atleta que desabafou: “Eu trocaria todos os meus títulos pelo fim do preconceito. Trocaria por um mundo de igualdade entre todas as raças e classes” ¹.

Se no incidente envolvendo o jogador a violência se deu apenas no plano simbólico, o recente caso do adolescente negro, acusado de pequenos furtos, que foi torturado, despido e preso a um poste por um grupo de “justiceiros” no Rio de Janeiro é a materialização desse racismo arraigado em nossa sociedade.

“Direitos humanos para humanos direitos”

A polêmica foi acesa quando internautas começaram a compartilhar pelas redes sociais a foto de um jovem negro de 15 anos preso com uma tranca de bicicleta pelo pescoço a um poste no Flamengo, bairro nobre do Rio de Janeiro. O rapaz foi agredido por um grupo de jovens brancos de classe média e chegou a ter parte da orelha decepada por aqueles que supostamente estariam fazendo “justiça” e trazendo “segurança” ao bairro.

Fazendo coro aos que bradam que “bandido bom é bandido morto”, a âncora do SBT Raquel Sheherazade (um dos maiores exemplos de discurso intolerante na TV brasileira) causou polêmica ao defender o linchamento do menor afirmando que os “cidadãos de bem” não teriam alternativa se não “fazer justiça com as próprias mãos”. Esqueceu que fazendo isso, estava fazendo apologia ao crime, violando os direitos humanos e o Estatuto da Criança e do Adolescente; violando ainda o Código de Ética da categoria que proíbe “usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime” ².

Não só a jornalista cometeu um crime como alguns suspeitos dentre os 14 “paladinos da moralidade” que covardemente atacaram o jovem naquela noite têm antecedentes criminais como ameaças, furtos e até mesmo estupro.

“A mais triste nação, na época mais podre, compõem-se de possíveis grupos de linchadores.”

Em artigo publicado na Folha de São Paulo, Vladimir Safatle, professor de Filosofia da USP, reflete sobre a semelhança entre esses atos de “justiça” e o período de ascensão do regime nazista em que a retórica política se centrava no cansaço com a insegurança dos ditos “cidadãos de bem”. Argumenta ainda que…

“As pessoas que amarraram o jovem negro no Rio de Janeiro não apareceram do nada. Seus pais já apoiavam, com lágrimas de felicidade nos olhos, os assassinatos perpetrados pelo esquadrão da morte. Seus avós louvaram as virtudes do golpe militar de 1964, que colocaria de vez a ordem no lugar da baderna. Seus bisavós gostavam de ver a polícia da República Velha atirando contra grevistas com aquele horrível sotaque italiano. Seus tataravós costumavam ver cenas de negros amarrados a postes com um certo prazer incontido. Afinal, já se dizia à época, alguém tinha que pôr ordem em um país tão violento.” (Folha de São Paulo, 11/02/2014) ³

Contudo, contrastando com o discurso reacionário, pesquisa recente realizada pelo Datafolha4 revela que 79% dos cariocas são contra esse tipo de ação. 17% dos entrevistados disseram apoiar esse tipo de atitude, índice que sobre para 24% entre os mais abastados, com renda superior a dez salários mínimos. Dentre os brancos entrevistados, mais de um quinto afirma concordar com a ação dos “justiceiros”.

“Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”
Assim como os nazistas desumanizavam os judeus a fim de justificar seu extermínio, os africanos eram considerados bichos pelos europeus brancos que utilizaram sua mão de obra escrava nas colônias em toda a América. Um documento editado pelo Vaticano escrito pelo próprio Papa naquela época afirmava que negros não teriam alma, o que legitimaria sua condição de mercadoria.

Já se passaram 125 anos desde o fim da escravidão no Brasil, mas a imagem de um jovem negro preso pelo pescoço traz à tona nosso passado escravocrata, além de jogar um balde de água fria no mito de uma suposta “democracia racial”. O menino foi abandonado nu, preso ao “pau-de-arara”, feito um bicho. E o que pode parecer natural para alguns, foi repudiado por todos aqueles que defendem o estado democrático de direito e que lembram que “o bicho, meu deus, era um homem”.

Até hoje permanece a situação de maior vulnerabilidade da população negra e parda em nosso país. Só como exemplo, é muito maior as chances de um jovem morrer por homicídio no estado do Rio de Janeiro caso ele seja negro 5.

Tanto o rapaz preso pelos “justiceiros” quanto Tinga que sofreu discriminação racial são sintomáticos de uma sociedade intolerante que não garante plena cidadania a toda população de forma equânime. Os crimes de ódio começam pela desumanização do outro (sendo negro, judeu ou LGBT, por exemplo) e em situações extremas chegam ao linchamento de outro ser humano pelas mãos dos autointitulados “cidadãos de bem”, que não coincidentemente era o nome do jornal da Ku Klux Klan, organização racista estadunidense que pregava a supremacia branca e linchava negros, principalmente no Sul dos EUA.

É nosso dever lutar incansavelmente contra todas as formas de opressão. Não podemos estar ao lado da barbárie e do desrespeito aos direitos humanos fundamentais. Só através da luta coletiva poderemos nos aproximar cada vez mais do mundo idealizado pelo jogador do Cruzeiro. Uma luta pedagógica para fazer com que um mundo em que haja “igualdade entre todas as raças e classes” não seja apenas um sonho.

1 – https://juntos.org.br/2014/02/eu-trocaria-todos-os-meus-titulos-pelo-fim-do-preconceito/

2 – http://jornalistas.org.br/index.php/nota-de-repudio-do-sindicato-e-da-comissao-de-etica-contra-declaracoes-da-jornalista-rachel-sheherazade/

3 – http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2014/02/1410292-a-barbarie-de-sempre.shtml

4 – http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/02/1412865-acao-de-justiceiros-e-reprovada-por-79-no-rio.shtml

5 – http://incid.org.br/pdf/INCID_Painel%201_Situa%E7%E3o%20de%20desigualdade%20racial%20no%20acesso%20%C0%20vida%20segura.pdf

*Felipe Aveiro é jornalista e militante do Juntos RJ


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