Lula livre, e agora?
Lula e Bolsonaro

Lula livre, e agora?

A volta dos direitos políticos para alguém com viabilidade eleitoral para derrotar Bolsonaro é um alento. Compreendendo a importância de combater a extrema-direita, somos favoráveis ao uso de todas as peças disponíveis no tabuleiro. Mas não podemos construir ilusões com elas

João Pedro de Paula 9 mar 2021, 13:46

A decisão do ministro Fachin para anular os processos criminais de Lula é uma importante vitória democrática. O ex-presidente foi impedido de participar da eleição de 2018, enquanto principal concorrente de Bolsonaro, por meio de uma intervenção política do aparelho judiciário. O direito, enquanto uma relação social capitalista, é e sempre foi desigual e político na sua essência. Assim como o estado (democrático de direito), tão defendido por alguns, foi erguido no processo de ascensão da burguesia como uma superestrutura ideológica e política para assegurar a dominação, tanto pela força, como pelo consenso. É um estado e um direito que tem lado.

A prisão e os processos de Lula apenas são uma manifestação dessa racionalidade e não representaram uma ruptura na democracia liberal. Não existe um retorno a democracia como apontam, já que ela continua só existindo para alguns. Ainda assim, trata-se de um retrocesso nas liberdades democráticas, pelo papel cumprido em 2018, que agora foi parcialmente reparado com essa decisão.

A euforia demonstrada com a notícia traz importantes reflexões. A volta dos direitos políticos para alguém com viabilidade eleitoral para derrotar Bolsonaro é um alento. Compreendendo a importância de combater a extrema-direita, somos favoráveis ao uso de todas as peças disponíveis no tabuleiro. Mas não podemos construir ilusões com elas, ainda que sejam importantes para a luta política contra o presidente. É sobre isso que quero falar. 

O PT foi um avanço relevante na reabertura democrática, enquanto pólo aglutinador da juventude e da classe trabalhadora. Reuniu ex-guerrilheiros, exilados, a vanguarda do movimento negro e do novo sindicalismo. Elencou como sua estratégia a chegada à presidência da República. Conseguiu e lá esteve por 13 anos, mas quais são os balanços desse processo? 

A carta ao povo brasileiro, escrita durante a eleição de 2002, é uma grande síntese do que foi o petismo no executivo federal. Mesmo sendo escrita antes do partido chegar lá, demonstra o que ele pretendeu fazer e fez para alcançar e manter sua estratégia máxima. Queria destacar alguns trechos dela para refrescar a memória, aliás, estamos há quase 5 anos sem o PT no governo:

“O novo modelo […] será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade. Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. As recentes turbulências do mercado financeiro devem ser compreendidas nesse contexto de fragilidade do atual modelo e de clamor popular pela sua superação. […] Não importa a quem a crise beneficia ou prejudica eleitoralmente, pois ela prejudica o Brasil. […]  As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais.” (Lula, 22/06/2002)

O partido construído como uma coalizão de diversos setores da classe trabalhadora, se colocou como um governo de todos por meio de “uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade”. O programa petista visou a construção de uma unidade nacional, jogando a luta de classes para debaixo do tapete, a partir de uma construção conjunta com a burguesia. 

Apesar de sua composição de classe, o que vingou foi o programa de reforma do capitalismo, que foi caracterizado pelo professor de ciência política da USP e ex-militante do PT, André Singer, como um reformismo fraco: a construção de “um Estado capaz de ajudar os mais pobres sem confrontar a ordem”. André foi porta-voz da presidência da República no primeiro governo Lula. 

O PT atingiu seu objetivo. Conquistou políticas públicas importantes para a classe trabalhadora, sem que fosse preciso confrontar a burguesia, como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida. E também como elemento constituinte do seu programa, deu cabo a reformas que favoreceram o capital. Ambos, caminhavam conjuntamente na carta de 2002: “O povo brasileiro quer mudar pra valer. […] Quer abrir o caminho […] Da reforma previdenciária, da reforma trabalhista e de programas prioritários contra a fome e a insegurança pública”

Com a crise de hegemonia petista que se expressou fortemente em junho de 2013, o partido deixou de ser útil à burguesia. Ao não conseguir mais construir a unidade nacional aparente, com diversos setores da classe trabalhadora expressando sua indignação com o seu projeto, o consenso petista começou a definhar. 

Gramsci define bem esse processo, apontando os elementos para o surgimento da crise de hegemonia:

O processo é diferente em cada país, embora o conteúdo seja o mesmo. E o conteúdo é a crise de hegemonia da classe dirigente, que ocorre ou porque a classe dirigente flui em determinado grande empreendimento político pelo qual pediu ou impôs pela força o consentimento das grandes massas (como a guerra), ou porque amplas massas (especialmente camponeses e de pequenos burgueses intelectuais) passaram de repente da passividade política a certa atividade e apresentaram reivindicações que, no seu complexo desorganizado, constituem uma revolução. Fala-se de ‘crise de autoridade’, mas na realidade, o que se verifica é a crise de hegemonia, ou crise do Estado no seu conjunto.

Assim, surge um descompasso no qual os representados não se vêem mais representados pelo governo. Alvaro Bianchi, professor de ciência política da Unicamp, usa as categorias gramscianas para analisar a crise brasileira:

“Nessas situações de crise os partidos que tentam dirigir a vontade coletiva nacional, por razões diversas, deixam de fazer isso. O caso mais evidente é o do Partido dos Trabalhadores. Estabelece-se um fosso entre o Partido dos Trabalhadores, o governo que esse partido dirige e aqueles que diz representar ou que deveria representar. De acordo com a análise de Gramsci, calcada na leitura que Marx fez da ascensão de Luís Bonaparte ao poder, é justamente nestes períodos de crise de representação que se manifestam as formas mais mórbidas da política, que emergem alternativas diversas, das mais polarizadas e estranhas e o choque entre os diversos partidos e entre as diferentes frações políticas e sociais se manifesta cotidianamente. É aquilo que vemos hoje no dia-dia da política, abrindo inclusive a possibilidade de que indivíduos, partidos ou mesmo instituições estatais até então absolutamente marginais na vida nacional apareçam como a alternativa, ou seja, como aqueles que conseguem galvanizar em certo momento a opinião pública e apresentar-se como a direção possível”.

É, portanto, no processo político de frustração com os rumos do PT que Bolsonaro e a extrema-direita se fortalecem, se postulando como a saída da crise de representação. O PT buscou vantagens momentâneas para a classe trabalhadora por meio de um pacto com a burguesia. Lênin dizia que “em todas as partes onde as direitas e as esquerdas consertam uma aliança, as esquerdas perdem, as direitas ganham… Se faço uma aliança política com um partido que me é hostil por princípio me verei constrangido a adaptar minha tática, quer dizer meus procedimentos de luta, a fim de não romper esta aliança”

O partido deixou de lado a organização e mobilização da classe trabalhadora a troco de pequenas medidas sociais compensatórias. Hoje vemos que perdeu não só o governo, mas também as pequenas vantagens sociais e abriu espaço para o surgimento dos sintomas mórbidos expressados por Bolsonaro. Isso tudo em apenas 5 anos. 

Voltando a realidade que me fez produzir esse texto, a concessão dos direitos políticos de Lula, com a anulação dos processos e das condenações, é uma vitória democrática que move o xadrez político brasileiro e que pode ser comemorada. Lula pode ser uma peça importante para movimentar esse tabuleiro contra o bolsonarismo. Mas nós, socialistas, não podemos fortalecer as ilusões que emergem de um projeto insuficiente para a emancipação da classe trabalhadora.

A euforia com a volta de Lula ao jogo eleitoral demonstra os anseios pela existência de um programa para superar essa crise total que vivemos. Mas a construção dessa saída não se faz a qualquer custo nem a qualquer maneira. Os apelos são justos e esse programa precisa surgir. Mas não por meio da pactuação e dos acordos de cúpula. Como vimos na experiência petista, ainda que possamos ter a melhor das intenções, não será por uma nova carta ao povo brasileiro que iremos resolver os desafios existentes.

Tentar negociar a saída para o povo com a classe dominante é um tiro no pé, pois sacrifica aquilo que temos de mais importante: a nossa capacidade de mobilização enquanto maioria social. Além do mais, qualquer pactuação nesse sentido servirá mais ainda ao capital, como forma de fazer um ajuste das contas públicas e da economia arrasada pela crise, por meio de uma nova unidade nacional que existirá só na aparência. As condições sociais que produziram os primeiros governos do PT não existem mais. As medidas sociais então produzidas não poderão ser reeditadas por meio de acordos.

Um programa para a classe trabalhadora e a juventude só poderá surgir com mobilização social. O feminismo se impôs na medida que construiu diversas lutas no mundo, sobretudo na primavera feminista. O avanço que tivemos recentemente na luta antirracista não decorreu de um acordo com grandes dirigentes políticos e gestores do capital. Mas sim no levante negro que se ergueu nas ruas, numa imposição dos de baixo sobre os de cima para atingir os privilégios da branquitude. Não há saída para nós, se não for na luta pela uma alternativa através da nossa organização para mobilização. São inúmeros os exemplos que a experiência histórica da classe trabalhadora nos demonstra.

Devemos lutar pela construção de uma ampla unidade de ação contra o Bolsonaro, compreendendo os riscos da continuidade de seu projeto autoritário e genocida. Unidade essa que pode ocorrer nas eleições, entre os setores da esquerda e centro-esquerda, cabendo a nós postular a sua existência, mas deixando claro que esse não é e não será o nosso projeto. Tanto que no porvir de uma vitória eleitoral da esquerda tradicional contra Bolsonaro, o PSOL não poderá estar junto no governo, sabendo a quem servirá esse governo, apesar das aparências. A tragédia petista não pode ser repetida como farsa, como apontava Marx, seja por uma nova ilusão com o petismo, seja pela reiteração de suas práticas pelo PSOL. 

Com independência política, lutaremos juntos, mas a nossa marcha é separada. Para além de 2022, a nossa estratégia para o momento é superar o ápice da pandemia, com vacina para todos e um auxílio de verdade, para que façamos como o nosso vizinho Chile, ou até mesmo apesar das condições sanitárias, como no Paraguai. Há muito a se desenvolver entre as múltiplas contradições da realidade. Para isso, o PSOL precisa estar preparado e saber o papel que terá de cumprir. Um partido que não estabelece sua estratégia e seus princípios pode ser seduzido por uma tática e convertê-la em estratégia. Não é isso que queremos. 


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