Porque estudar e debater teoria marxista
Ilustrações por @_mai.design

Porque estudar e debater teoria marxista

Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário

João Pedro de Paula 23 ago 2021, 16:48

Sempre quando surge o debate sobre o stalinismo diversas posições são colocadas. Para além dos que se reivindicam stalinistas – declarando Stalin como o “Grande Líder” da URSS, há hoje uma posição mais recente, sustentada teoricamente na obra do italiano Domenico Losurdo, que busca reabilitar a figura de Stalin, colocando-o até como o grande responsável pelos avanços da URSS. Algo que ignora todo o processo histórico do período e até a própria classe trabalhadora enquanto sujeito social.

No último debate colocado em nosso site por Júlio Câmara, alguns apontaram que tratar do que foi o stalinismo é irrelevante para a classe trabalhadora. Questionamentos dizendo que criticar Stalin enquanto a extrema-direita está no poder ou índices de desemprego e insegurança alimentar disparam não ajuda em nada na luta pela superação do capitalismo. Isso é uma falsa polêmica colocada por certos setores que buscam fazer uma defesa envergonhada do stalinismo.

Em algumas linhas, dizem até que o debate “Stalin x Trotsky” foi superado e é coisa do passado, numa tentativa de minimizar a batalha das ideias e colocar quem a faz como idealista e desconectado da luta de classes ou da realidade social. O próprio Marx criticava aqueles que apenas faziam o debate teórico, mas não apontando que este seria desnecessário. Mas sim que este deveria estar associado à ação política transformadora. Está aí a célebre frase das “Teses sobre Feuebarch”: Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo (Tese 11).

O materialismo histórico-dialético surge na compreensão de compreender cada aspecto da nossa realidade para buscar a sua transformação. O que envolve apreender desde os elementos mais imediatos e aparentes de uma sociedade, como a fome, o desemprego e os ataques da extrema-direita, aos mais complexos e históricos, como a própria experiência histórica da classe trabalhadora organizada e em movimento para superar a condição de explorada e oprimida.

Por exemplo, para entender o processo de concentração de renda e o crescimento da fome no Brasil, precisamos compreender o processo de acumulação de capital no país, que não se resume apenas a pandemia ou aos últimos 10 anos. É preciso ir além, entender a dinâmica capitalista, com sua lógica de produção e acúmulo constante, além de sua estruturação a partir do racismo. Se nos limitarmos ao imediato, poderíamos encontrar como resposta uma mera redistribuição de renda. O que é necessário e poderia até resolver de forma parcial e temporária mas insuficiente para o problema, sem que fosse levada em conta a necessidade da construção do socialismo – que não surge a partir da idealização de Marx, mas como uma resposta a ser construída na luta buscando atingir a raiz da estrutura que nos coloca na situação em que vivemos hoje.

Portanto, o debate teórico é essencial, desde que este não se encerre em si mesmo. Afinal, não somos um grupo que se reúne simplesmente para estudar marxismo. Buscamos no marxismo a chave para compreender a realidade social em suas contradições e superá-la.  

Assim, é possível organizar um curso sobre o que foi o stalinismo ou uma análise de outro processo revolucionário ao mesmo tempo em que se atua sob o imediato do povo. Como em atividades de agitação, buscando falar pouco para muitos, que nós do Juntos sempre realizamos em panfletagens, colagens de lambe e outras atividades buscando a mobilização e o fortalecimento da luta.

A nossa política é voltada para atingir sob todas as camadas da classe trabalhadora e da juventude, desde a que está mais avançada em um momento na luta e quer cada vez saber mais, até aquela que ainda está na inércia diante dos acontecimentos. A questão é compreender para qual momento e público se destina uma política. Tal como saber que a busca pela construção de uma organização socialista ou determinada mobilização perpassa por ambas em seus mais variados aspectos. Não há contradição entre elas.

É justamente o que construímos no Movimento Esquerda Socialista (MES), corrente interna do PSOL na qual muitos de nós do Juntos militamos. Atuamos sob a juventude, desde aqueles que se encontram nas universidades e escolas aos que estão colocados no mundo do trabalho; na construção da luta através de um feminismo antirracista e anticapitalista pelo Juntas; na organização dos trabalhadores com a TLS Sindical; na luta pela reforma agrária e moradia com a FNL; na difusão de uma educação popular sob territórios com a Rede Emancipa; além de iniciativas teóricas com a Revista Movimento e a Escola Marx.

Dito isso, cabe fazer alguns alertas sobre a tentativa de interditar o debate sobre o stalinismo pelo argumento apresentado no início desse texto. Primeiro, negar a discussão sobre a teoria alegando que há problemas imediatos que impedem esse debate é perigoso. É com esse mesmo argumento que o reformismo se desenvolveu e se sustenta, muitas vezes apontando que não temos no momento alguma perspectiva revolucionária, logo temos que buscar medidas sociais compensatórias no hoje, mesmo que isso implique no abandono de nossa independência política.

É, por exemplo, o que aconteceu com o Partido Social Democrata Alemão, contra o qual Rosa Luxemburgo se levantou e tem boa parte de suas ideias sintetizadas no livro “Reforma Social ou Revolução”. Assim como com o Partido dos Trabalhadores no Brasil, pouco menos de 100 anos depois dessa experiência. No PSOL, essa perspectiva também existe em correntes como a Revolução Solidária, de Guilherme Boulos, e Primavera Socialista, do presidente nacional do Partido, Juliano Medeiros. No abandono da teoria revolucionária sempre se perde também a política revolucionária, como dizia Lênin.

Para além da disputa com o reformismo, a batalha das ideias sobre uma tradição política é também uma batalha sobre o futuro. Compreender as experiências históricas da classe trabalhadora é essencial para buscar a construção de um horizonte estratégico revolucionário. Não há dúvidas de que erros foram e serão cometidos nesse processo, não somos idealistas. Mas cantar “Stalin matou foi pouco” conhecendo a derrota que a burocratização e o stalinismo na URSS trouxeram não só à Revolução Russa, como aos socialistas de todo o mundo, é um erro crasso.

Como construiremos uma organização de massas carregando consigo um grande organizador de derrotas? Ou ainda que isso seja possível, o que claramente não é – até pela forma como o próprio imperialismo se apropria do período stalinista e aponta que isso é o comunismo/socialismo que defendemos, como avançaremos em um processo revolucionário tendo como “guia” o principal responsável por derrotas históricas?

São por essas e outras razões que o texto de Júlio Câmara foi publicado. Não se trata de um debate menor ou irrelevante pela conjuntura. Debater Trotsky e Stalin é sobretudo elaborar sobre o futuro – para superar o que vivemos e construir a luta para onde queremos ir. É claro que o estudo das experiências revolucionárias não se resume apenas a aprender com os erros, mas também com os muitos acertos.

Tal como foi a construção da Primeira Internacional por Marx e Engels – a AIT, na qual buscamos dar continuidade pela Quarta Internacional; como nos ensinaram os franceses na construção da Comuna de Paris com a luta pela derrubada do estado burguês; como nos servem a teoria do movimento desigual e combinado e a teoria da revolução permanente de Trotsky; como foi a lição de Lênin sobre a importância de um partido independente da classe trabalhadora com quadros integralmente dedicados a construção da revolução; como nos ensinaram os Panteras Negras sobre a combinação da luta antirracista com a anticapitalista. Isso apenas para citar apenas algumas das contribuições teóricas e práticas desenvolvidas no curso de lutas fundamentais do povo que podem nos ensinar muito.

No auge dos meus 21 anos, com o pouco que li sobre algumas delas, aprendi muito e foram fundamentais para pensar política, desde a mais concreta e particular, até para refletir sobre processos mais amplos e universais. O que escrevo aqui, por óbvio, não veio simplesmente da minha cabeça, mas dessas elaborações e experiências. Em síntese, o que quero expressar é que não há contradição entre debater teoria, incluindo a mais histórica e complexa, e elaborar política sob os aspectos mais imediatos de nossa realidade. Pelo contrário, essa combinação é essencial e abandoná-la nos traz diversos riscos.


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