Natália não nos representa!
A romantização da escravidão é um desserviço para a luta da negritude.
O BBB 22 mal começou e já nos deparamos com a primeira polêmica racial. Em menos de 24 horas de programa, em meio a uma conversa durante a madrugada, Natália Deodato disse que os negros foram escravizados por serem fortes e bons no que faziam. O motivo da escravização de negros africanos teria sido a eficiência destes. Não demorou para que as redes sociais explodissem em críticas.
Pois bem, o que há de errado com a afirmação da Natália?
Antes de tudo, é necessário destacar que essa não é simplesmente uma opinião particular, mas sim a reprodução de um discurso ideológico e legitimador da escravização de negros e negras que remonta aos primórdios da modernidade. O historiador Eric Williams, em seu livro Capitalismo e escravidão, demonstra que o discurso de que negros foram escravizados por serem mais fortes foi usado pelo colonizador pra justificar a escravização de africanos como demonstra a citação abaixo:
Um importante funcionário colonial da Hispaniola insistiu em 1518 que ‘seja dada permissão para trazer negros, raça robusta para o trabalho, em vez dos nativos, tão fracos que só podem ser empregados em tarefas que não exijam resistência, como cuidar dos sítios e dos milharais”. (WILLIAMS, 2012, p.36)
Portanto, é possível afirmar que as raízes desse discurso se encontram no século XVI quando os colonizadores, após terem feito a experiência de utilização da mão de obra de indígenas escravizados passaram a necessitar de uma ampliação e intensificação da exploração do solo nas terras recém dominadas pelos europeus nas Américas.
Porém, ainda de acordo com Williams, antes da utilização em larga escala da mão de obra de negros escravizados nas ilhas do Caribe, ainda se utilizou por muito tempo como principal força de trabalho a mão de obra indígena e a dos chamados “engajados”, brancos pobres, em grande medida camponeses fugindo das relações feudais ou indigentes, ditos vadios, que vinham tentar vida nova. Esses brancos pobres saíam da Europa para as Américas com a promessa de liberdade e prosperidade após um período de prestação de serviços não remunerados nas terras de colonos. Eles, assim como os escravizados, também trabalhavam de sol a sol em condições deploráveis, visto que seus senhores precisavam extrair o máximo possível dessa força de trabalho antes do tempo contratual, depois do qual seriam livres.
Foi somente com a implementação da produção em larga escala do açúcar e do algodão em grandes latifúndios com vistas à exportação que se impôs a necessidade de utilização de uma vasta mão de obra que não era suprida somente pelos indígenas, muitos destes exterminados por doenças e pelo confronto com os colonizadores, e brancos pobres europeus. Foi nesse momento que se intensificou a exploração do continente africano, levando ao boom do tráfico de escravizados negros.
Dessa forma, foi uma necessidade econômica que motivou a escravização de pessoas negras. A mão de obra negra era mais abundante e muito mais barata que a dos brancos pobres. O custo de dez anos de produção de um branco comprava a vida inteira de um negro.
Além disso, as diferenças físicas ajudavam a racionalizar e a justificar a exploração; afinal de contas, não se estava mais explorando os seus semelhantes, mas sim um tipo diferente. Com isso, a desumanização inerente ao escravismo se tornava mais palatável e produtiva.
Com as diferenças raciais ficava mais fácil justificar e racionalizar a escravidão negra, arrancar uma obediência mecânica como um boi de tração ou a um cavalo de carga, exigir aquela resignação e aquela completa sujeição moral e intelectual indispensáveis para a existência do trabalho escravo”. (WILLAMS, 2012, pp. 49-50)
Para Eric Williams, a preexistência da utilização de mão de obra de europeus nas terras de regiões tropicais é a prova cabal contra o argumento da robustez dos negros. Os motivos foram outros, ligados à necessidade de ampliação da mão de obra.
O engajamento de mão de obra branca é de importância fundamental para entendermos o desenvolvimento do Novo Mundo e o lugar do negro nesse processo. Ele destrói o velho mito de que os brancos não aguentariam os rigores do trabalho braçal no clima do Novo Mundo e que por isso, e apenas por isso, que as potências europeias tiveram que recorrer aos africanos. (WILLIAMS, 2012, p. 51)
A exploração da mão de obra escravizada, os lucros oriundos do tráfico negreiro e o processo de proletarização do campesinato na Europa constituíram a base material da Revolução Industrial, Marx denominou este processo como acumulação primitiva de capital. Dessa forma, compreende-se como a escravização de nativos e negros africanos foi fundamental para o surgimento do capitalismo.
O processo de escravização de negros em larga escala, bem como as justificativas e legitimação da crueldade pelos colonizadores deixaram marcas profundas que continuam a ser reproduzidas na sociedade atual. É por isso que esse discurso precisa ser criticado e denunciado, não apenas pelo que representou no passado, mas também pelas consequências no presente.
Agora, podemos voltar ao discurso reproduzido pela Natália no BBB e refletir sobre as consequências, uma vez que já entendemos a origem histórica e ideológica.
O que significa dizer que os negros são mais fortes e robustos para o trabalho? Significa que estes são os mais aptos para o trabalho braçal, para o esforço físico, para os trabalhos menos especializados e que exigem menos da capacidade intelectual. O que sobre para os brancos? O trabalho intelectual e administrativo. É dessa forma que o discurso da robustez e da força física justificou lá atrás a escravização de negros e hoje, mesmo que inconscientemente, justifica que negros e negras estejam nos piores postos de trabalho e dificilmente atinjam lugares de liderança.
É nesse sentido que a fala da Natália representa um desserviço para a luta do povo negro e para a valorização da história negra. Não é romantizando uma história de genocídio, exploração e miséria que contribuiremos para a luta contra as consequências da escravidão na atualidade.