Averiguação de cotas para pretos e pardos por bancas virtuais é um retrocesso em curso na UNICAMP!
Intervenção em defesa das cotas raciais na Unicamp

Averiguação de cotas para pretos e pardos por bancas virtuais é um retrocesso em curso na UNICAMP!

Contra as fraudes e pela afirmação de uma identidade negra brasileira, devemos reconstituir as bancas presenciais já!

Juntos Unicamp 13 jul 2022, 17:21

A conquista das políticas afirmativas étnico-raciais está sendo um enorme avanço para a transformação do perfil social e racial dos estudantes nas Universidades Públicas do país, com estudantes negros, indígenas, pobres e periféricos, ingressando pela primeira vez nessas instituições de ensino superior e de produção científica de qualidade. Esta conquista foi possível após décadas de mobilizações e greves, protagonizadas pelos movimentos negros e estudantis com uma ampla adesão de trabalhadores e da sociedade. 

Na UNICAMP não foi diferente, durante o ano de 2016, a Universidade foi atravessada pela maior greve da história em defesa da aprovação das cotas raciais. A proposta foi aprovada pelo CONSU (Conselho Universitário da UNICAMP) em 30/05/2017, sendo o primeiro vestibular indígena e com reservas de vagas para negros em 2019, e a primeira banca de averiguação em 2020, coordenada pela CADER (Comissão Assessora de Diversidade Étnico-Racial).

Os últimos dois anos foram marcados pela pandemia, que aprofundou a crise multidimensional em todo o mundo, com a maioria da população, que no Brasil é negra, submetida aos regimes mais precários de trabalho, à miséria e à fome, que vem atingindo milhões de pessoas. As universidades passaram dois anos em atividades remotas, retornando em 2022 tendo o desafio de receber três anos de estudantes que não tiveram contato com os campi antes, sendo que na UNICAMP entre eles está praticamente a totalidade dos estudantes ingressantes por políticas afirmativas. Durante este período, as bancas de heteroidentificação étnico-raciais, essenciais para combater as fraudes e para reafirmação da identidade negra brasileira, passaram a ocorrer virtualmente pelas limitações do risco sanitário.

Atualmente, a COMVEST (Comissão permanente do Vestibular da UNICAMP) e a DEDH (Diretoria Executiva de Direitos Humanos) estão trabalhando para tornar esse método de banca permanente, pretende introduzir uma etapa de averiguação por fotos tiradas na segunda fase do vestibular de todos os estudantes que optarem pelas cotas raciais, e tratar em seguida os casos indeferidos nesta análise prévia pelo encontro com as bancas de averiguação via Google Meet.

Contudo, é preciso levar em conta que há em nosso país um grande nível de desigualdade social e econômica que reflete em uma dificuldade de acesso à internet e a equipamentos eletrônicos de qualidade, como vimos nos últimos anos durante as aulas remotas. E na própria averiguação das cotas, quando, ainda que poucos, estudantes que tinham direito à reserva de vaga foram negados por não conseguir comprovar sua identidade racial nas bancas virtuais. Tornar as bancas de averiguação mais eficientes e organizadas, como argumentam os representantes da Reitoria de Tom Zé, não pode ser conflitante com fazê-las humanizadas, democráticas e de qualidade para todes estudantes que precisarem enfrentá-las.

As bancas de heteroidentificação possuem um papel determinante na consolidação de uma identidade negra brasileira, dado que de legado da escravidão e do processo de miscigenação, ficou um profundo apagamento da negritude, tornando o processo de identificação racial em nosso país um grande dilema para todes que não se identificam como brancos. As bancas presenciais cumpriram com um papel significativo no acolhimento dos estudantes pretos e pardos da UNICAMP, e por isso o desenvolvimentos dessas, que foi interrompido com a pandemia, poderia fomentar um ambiente de pertencimento que a maioria dos negros na universidade ainda relatam não encontrar. A presença dos movimentos na construção deste processo, principalmente no presencial, democratiza e enriquece o fomento do debate antirracista e a auto-organização da negritude na universidade.
Nós do Juntos gostaríamos de defender com esse texto que com o retorno presencial das atividades na universidade, e sem o agravamento da crise sanitária, não existem justificativas para as bancas ocorrerem de forma virtual – se não orçamentárias, que em última instância são políticas. Não podemos nos conformar diante de um desmonte do modelo presencial de bancas de averiguação. Um modelo constituído historicamente conectado ao legado combativo da greve de 2016, e que é referência para outras instituições do país. Que foi pensado a partir do acúmulo de inúmeros debates entre movimentos negros, nos quais é preciso se inspirar, não desconstruir. A maneira antidemocrática como foi encaminhado pela reitoria de Knobel, sem qualquer debate amplo com a comunidade, a nova proposta de bancas de heteroidentificação virtuais foi um retrocesso nesse sentido.

Necessitamos do movimento vivo para seguir construindo as políticas afirmativas, uma conquista recente, que nada impede que não sofra com retrocessos pela pressão do racismo institucional e estrutural. Este ano será marcado por uma intensa polarização política, especialmente nas eleições, mas que terá sua expressão também na disputa da narrativa racial e sobre a política das cotas. 

O governo Bolsonaro, que teve marcas racistas e genocidas muito presentes, cumpriu com um papel desastroso para os direitos historicamente conquistados pelos movimentos sociais e é o principal responsável pelo agravamento das condições de vida do povo. Nos próximos meses, a lei federal de cotas, que está completando 10 anos, será revisada pelo Congresso Nacional em meio a este governo reacionário, cuja base é contrária à política. É urgente defender o legado da conquista das cotas, como um processo desenvolvido a partir da mobilização popular e que necessita dela para seguir adiante, como um dos muitos embates que precisaremos dar para reafirmar o projeto sociedade mais igualitária e democrática que defendemos contra a extrema-direita.

O Brasil, neste momento, ocupa o 5º lugar no ranking mundial da fome organizado pela ONU, enquanto 42 novos bilionários brasileiros surgiram na lista da Forbes do ano de 2021. Esses são indícios de que a desigualdade social, inclusive o perfil embranquecido e elitizado de estudantes nas Universidades Públicas, especialmente nas estaduais de São Paulo, não é mais que um sintoma do processo histórico e de um projeto de país conduzido por uma elite que, principalmente no Brasil, é branca e tem sua história conectada diretamente com heranças econômicas, políticas e sociais do período escravagista. Uma política que gerou exclusão em todas as dimensões da nossa sociedade, contra pretos, pardos e indígenas, que foram e ainda são submetidos à violência constante e ao genocídio de seus corpos e culturas, durante séculos.

Neste momento de ataque a todos os avanços e direitos alcançados desde o fim da Ditadura Militar, como os cortes orçamentários na educação, crescimento do discurso e violência neofascistas e, mais recentemente, a tentativa de dar andamento a PEC que prevê pagamento de mensalidade em universidades públicas. Isso tudo alimenta o sucateamento do ensino rumo aos primeiros passos em direção à privatização dessas instituições. É uma disputa contra o processo de popularização que avançou nos últimos anos.A transferência da banca de averiguação da UNICAMP para o ambiente virtual contribuirá com isso, utilizando uma plataforma privada – o Google Meet – que pode deteriorar a qualidade do processo, e prejudicar pessoas sem condições ideais de acesso, colocando em dúvida a capacidade do sistema de cotas de garantir que estas sejam destinadas às pessoas corretas, sem fraudes e com igualdade na validação.
Por isso, reforçamos que é preciso defender as bancas de averiguação presenciais na UNICAMP como continuidade do projeto das cotas raciais e sociais. A chance de retrocessos é real, e já vem se articulando por dentro das instituições e entre as forças da extrema-direita. Isso se vê na condução das bancas para o ambiente virtual, mas tem outras demonstrações muito mais graves, como a tentativa do MBL de “palestrar” no campus contra as cotas raciais. O racismo estrutural e a branquitude não recuarão a menos que a luta antirracista se organize de forma permanente. Precisamos construir a nossa resposta, defendendo e dando seguimento ao legado do movimento que construiu as cotas raciais e diputando o sentido das universidades públicas para serem gratuitas, de qualidade e com a cara do povo — um povo que é majoritariamente negro.


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