O colonialismo se assentando na metrópole: o que está ocorrendo em Israel?
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O colonialismo se assentando na metrópole: o que está ocorrendo em Israel?

O crescimento da extrema direita israelense e do colonialismo sionista aprofundam os ataques ao povo na palestino

André Massabki 28 mar 2023, 11:51

Uma verdadeira convulsão social, política e jurídica tem acometido toda a região de Israel/Palestina nas últimas semanas e despertado preocupação na comunidade internacional de conjunto: no dia 4 de janeiro, pouco após a eleição de Benjamin Netanyahu como primeiro-ministro numa coalizão com partidos de extrema-direita fundamentalista, seu ministro da Justiça anuncia um plano de reforma judicial que, entre outros pontos, reserva ao governo em vigor uma larga maioria dentro do comitê que nomeia os juízes da Suprema Corte, bem como permite ao congresso derrubar decisões judiciais por maioria simples. Desde então, milhares de pessoas vêm tomando as ruas em uma série de atos espontâneos, sem uma liderança centralizada, em oposição a tais medidas reacionárias, fruto da influência mais que direta de setores ultraortodoxos que diariamente atacam direitos civis de grupos oprimidos, bem como expressam ojeriza ao povo palestino, ampliando a ocupação ilegal por colonos sionistas em Gaza e Cisjordânia.

Para se ter uma noção do grau de tensão interna, tais atos antirreforma, que têm mobilizado centenas de milhares de pessoas em Israel numa frequência de duas vezes por semana aproximadamente, vêm recebendo apoio dos mais variados setores sociais, de juristas e políticos progressistas a reservistas das Forças Armadas. Tamanha é a pressão para cima do novo governo Netanyahu que o presidente Isaac Herzog, histórico opositor seu, realizou um pronunciamento oficial na última quarta-feira (15), afirmando que o país “está agonizando em uma profunda crise. Qualquer um que pense que uma verdadeira guerra civil (…) não está no horizonte está enganado. O abismo está a uma curta distância”1. As duras palavras de Herzog, cujo cargo que ocupa é no geral meramente protocolar, foram seguidas de uma contraproposta à reforma judicial que ele intitulou como a “diretiva popular”, na qual o comitê de seleção para a Suprema Corte inclua seu presidente, dois juízes, três ministros (entre eles o da Justiça) e dois servidores públicos (a serem acordados entre as demais partes).

Alguns apontamentos acerca da conjuntura israelense necessitam ser feitos, seja pelas causas dessa reforma impopular e democrática, seja pelas disputas políticas que se têm acirrado por ela: primeiro, a formação do novo mandato de Netanyahu se dá poucos anos depois dos escândalos de corrupção envolvendo seu nome em 2019, que impactaram diretamente sua gestão, levando a uma série de novas eleições entre maiorias parlamentares inviabilizadas e um governo formado por opositores a “Bibi”, de distintos matizes ideológicos, que rapidamente se desfez. É nesse contexto de fragilidade política e moral diante da opinião pública e de uma crescente rejeição em Israel às colônias em territórios palestinos que Netanyahu, em condições de formar maioria plena no Knesset, se aproxima do sionismo de extrema-direita para formar uma coalizão que agradasse posições mais incisivas em apoio às ocupações, além de remoralizar a figura do premiê mais linha dura desde Ariel Sharon. Ademais, há uma pressão do lobby sionista como um todo para legitimar o expansionismo sobre a Palestina, inclusive nas instâncias deliberativas da ONU, vide as seguidas abstenções da Espanha quanto às resoluções da Corte Internacional de Justiça a favor da autodeterminação árabe nesses territórios ocupados – um verdadeiro giro diplomático na posição espanhola historicamente convergente com os Acordos de Oslo de 1993.2

Voltando-se as atenções aos atos contra a reforma judicial, percebe-se uma dinâmica intensa de embate entre o governo Netanyahu e uma maioria social – apoiada por diversos partidos opositores, dos representantes dos árabes aos de centro-direita secular – indignada com a possibilidade de fechamento de regime posta. Em janeiro, primeiro mês de mobilização, Tel Aviv, Jerusalém e Haifa já contava com manifestações multitudinárias (chegando a 100 mil pessoas) aos sábados, e nas duas semanas seguintes ações iam se espalhando a cidades menores; não demorou muito para a frequência em shabatót ser quebrada, porém. No dia 13 de fevereiro, a Comissão de Constituição, Lei e Justiça do Knesset votou favorável à reforma – nove votos a sete –, em meio a um novo ato massivo em Tel Aviv e à paralisação de médicos e trabalhadores do setor de tecnologia.

Tal votação, em vez de arrefecer o movimento, só motivou uma expansão maior a ele, por um lado ampliando o número de pessoas nas ruas de várias cidades e por outro com pautas específicas ganhando destaque ao longo do tempo. Os ataques aos direitos das mulheres, postulados pela ala ultraortodoxa da coalizão governante, têm sido o alvo de várias intervenções feitas pela organização feminista Bonot Alternativa (“construindo uma alternativa” em hebraico), com suas integrantes se vestindo como as aias da série The Handmaid’s Tale, denunciando a tentativa de controle legal sobre corpos femininos por parte da extrema-direita. E chamou a atenção também uma enorme faixa estendida em Tel Aviv com as fotos dos ministros Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, a frase “Huwwara ontem, Israel amanhã” e imagens das ruínas do mesmo povoado palestino na Cisjordânia, após a pilhagem perpetrada por colonos judeus em 26 de fevereiro, que resultou no assassinato de um aldeão e em centenas de outros feridos, com conivência das forças de segurança. Smotrich, líder do Partido Sionista Religioso, prega a anexação da Cisjordânia e a expulsão dos árabes de Israel, além de se opor frontalmente aos direitos LGBT e femininos, expressando um programa abertamente fundamentalista, supremacista judaico e antiárabe; em relação ao ataque a Huwwara, o ministro chegou a dizer que o vilarejo devia ser “varrido” e “não há palestinos porque não há palestino”, gerando repúdio tanto da comunidade internacional quanto de seus pares locais, com muitos o acusando (e com razão) de incitar verdadeiros pogroms contra palestinos, bem como disseminar negacionismo histórico quanto à presença milenar de árabes naquele território3.

Estamos diante de um fenômeno inédito em Israel: a chamada “única democracia no Oriente Médio” vive uma inflexão na qual Netanyahu, seu governante mais longevo, pactuava com o que há de mais atrasado politicamente para manter sua linha dura sobre os territórios palestinos e limpar sua imagem abalada nos últimos anos, ao mesmo tempo que abre espaço para que fascistas ditem a justiça no país rumo a uma teocracia xenofóbica, LGBTfóbica e misógina. Em resposta a isso, um sem número de israelenses, em sua maioria jovens e com forte protagonismo das mulheres, vão às ruas para barrar o desmonte de direitos básicos por trás da reforma judicial, mobilizando setores até então alheios ao debate político e unificando organizações no geral adversárias numa espécie de frente única. E à medida que as tensões se agudizam, fica cada vez mais evidente a uma parte significativa da população israelense o caráter racista dos assentamentos empreendidos por colonos ultraortodoxos, ferindo diariamente a autodeterminação palestina em suas terras de direito, o que pode levar ao princípio de uma rachadura no regime de apartheid, ele mesmo a base para a constituição do Estado de Israel.

É necessário e urgente que os partidos e tendências revolucionários acompanhemos e demos suporte aos atos antirreforma, numa clara demonstração de combate às seitas neofascistas que hoje ocupam o gabinete governamental de Israel e vociferam contra as trabalhadoras e os trabalhadores de lá. Isso, por óbvio, não pode ser feito sem também frisar a igualmente necessária e urgente tarefa de afirmar que figuras como Smotrich e os saques a Huwwara e outras localidades não são raios no céu azul no reino de Davi; eles são, aliás, a face mais vil e sanguinolenta do sionismo, cada vez mais reduzido a uma ideologia colonialista, etnocêntrico e racista responsável por repetidas violações aos direitos do povo palestino, o que torna ainda mais reais as palavras de Frantz Fanon: “o que é o fascismo se não o colonialismo quando enraizado num país tradicionalmente colonialista?”. Para além dos Acordos de Oslo, que garantiram a autonomia de Gaza e Cisjordânia, nós socialistas revolucionários precisamos defender enfaticamente uma Palestina livre, soberana e laica, onde todos os povos e credos nela presentes convivam fraternamente, sem o jugo do colonialismo e do imperialismo! Que esta seja a fagulha para que a classe trabalhadora árabe e judia se una contra fascismo e o neoliberalismo e derrube o Muro da Vergonha de uma vez por todas!

1 Em inglês: “Israel is in the throes of a profound crisis. Anyone who thinks that a real civil war (…) is a line that we will not reach has no idea. The abyss is within touching distance.”. Extraído de: https://www.theguardian.com/world/2023/mar/15/israeli-president-civil-war-is-within-touching-distance (acessado em 17/03/2023).

2 Conforme artigo de Santiago González Vallejo ao portal espanhol Viento Sur, no dia 30 de dezembro de 2022, foi aprovada a resolução A/RES/77/247 da CIJ da ONU, que classifica as práticas e atividades israelenses de assentamento como coloniais, afetando os direitos humanos do povo palestino e outros habitantes árabes dos territórios ocupados, descritos como tal pelo documento A/77/400, de mesma data. Esta resolução teve ao todo 87 votos favoráveis, 26 contrários e 53 abstenções, entre elas a da Espanha. González salienta que o primeiro-ministro socialdemocrata Pedro Sánchez tem cada vez mais se aliado aos Estados Unidos geopoliticamente, assumindo cada vez mais uma posição “em que se perdem os valores universais da justiça e da defesa do direito internacional por uma realpolitik ocidentalista” (tradução livre do autor). O militante, ativo na causa palestina, ainda denuncia a tentativa de sanção que o governo do PSOE vem tentando impor a prefeita de Barcelona, Ada Colau, por suspender a irmandade com Tel Aviv em rechaço às ocupações israelenses na Cisjordânia, bem como a visita de uma delegação formada por parlamentares desse partido com outros do PP e do VOX (respectivamente a centro-direita e a extrema-direita na Espanha) a uma fábrica de armas em Israel, testadas em civis palestinos. Extraído de: https://vientosur.info/una-abstencion-complice-cambio-de-rumbo-de-espana-frente-a-la-ocupacion-israeli/ (acessado em 19/03/2023).

3 https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/03/nao-existe-isso-de-povo-palestino-afirma-ministro-israelense-acusado-de-racismo.ghtml (acessado em 21/03/2023).


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