Um pequeno texto em memória de Victor Jara
Divulgação O Globo

Um pequeno texto em memória de Victor Jara

Pequena reflexão sobre a importância do artista e do movimento em que foi expoente.

Fernando Magalhães 15 set 2023, 13:32

É claro, cada país tem a sua peculiaridade! Ainda mais se falando de cultura. Aqui no Brasil temos os nomes de gigantes que transformaram a arte e se moveram politicamente, transformando nosso país e, é claro, a América Latina: Pagu, Carlos Drummond, Gilberto Gil, Gonzaguinha, Anita Malfatti. Eu poderia ficar minutos enumerando os grandes artistas brasileiros. Entretanto, hoje é um dia de… rememoração. Vamos relembrar, sim, contudo, por um só instante, deixaremos um pouquinho de lado os grandiosos brasileiros para falarmos de outro gigante, um que “habla”, de um grande artista latino-americano, mais especificamente chileno.

Mas para falar desse homem e de um tal dia, que inclusive foi sombrio para nós, latinos-americanos, temos que voltar para um evento que desencadeou tudo isso. Todos sabemos que houve um dia 11 de setembro que abalou as estruturas de nossas terras, debaixo da linha do Equador. O golpe militar de Pinochet orquestrado pelo centro imperialista estadunidense vitimou milhares; assassinou não só o corpo como o espírito de chilenos que sonhavam sonhos bem sonhados, buscando a utopia, a tão sonhada transformação social. 

Mas houve um personagem, e este personagem, especialmente hoje, tem que ser lembrado. Lembrado por ajudar a transformar radicalmente um país, até porque não há revolução sem canções! Lógico, a Nueva Canción Chilena não começou com ele… teve seu “prospecto” forjado por folcloristas e artistas como a gigantesca Violeta Parra e a Gabriela Pizarro que estudaram a fundo o folclore chileno, visitando cada canto onde trabalhadores e camponeses produziam o ouro de sua nação: a arte e cultura, documentando-as, juntando-as. Era o esboço do que nas mãos de Rolando Alarcon, Isabel e Ángel Parra, dos grupos Quilapayún, Inti-Illímani, e claro, do personagem desse texto, Victor Jara, se tornaria a Nueva Canción Chilena. 

Mas por que Victor Jara é o personagem desse texto e por que a necessidade de lembrá-lo?

Hoje, dia 16 de setembro de 2023, faz cinquenta anos do brutal assassinato do maior compositor da música rebelde latino-americana. Victor Jara era um artista que revolucionou a cultura de seu país. Com suas canções, que eram mais perigosas do que cem metralhadoras — como dizia um ditado chileno —, Jara foi o principal motor de um movimento que transformou completamente a cultura popular de sua nação. Mas ele não era somente um grandíssimo músico, ele era professor universitário, diretor de teatro, poeta e, não menos importante, militante comunista. Era filiado ao Partido Comunista do Chile e um grandíssimo apoiador da Unidade Popular, movimento que encaminhou Salvador Allende, o primeiro marxista, ao posto de presidente de um país através do voto.

Era uma época em que o “perigo comunista” estava sobrevoando a América Latina. A Revolução Cubana foi uma derrota para o imperialismo estadunidense e para o bloco capitalista. Havia um medo real, por parte dos capitalistas, de acontecer uma nova Cuba na América Latina e o Chile era um país extremamente propício a isso, com todas as suas contradições. Além disso, para todos os sonhadores que vislumbravam um mundo mais justo e igualitário, a Revolução Cubana serviu de inspiração para milhões de socialistas por trazer de volta a luz, a luz para todos os trabalhadores explorados de nosso continente, trazer de volta a luz para a luta pelo socialismo.

Jara nasceu numa família de pequenos lavradores no ano de 1932. Aprendeu a tocar violão sozinho, na década de 50 tornou-se diretor de teatro, na década seguinte integrou o quadro de professores de Teatro da Universidade de Chile. Compôs sua primeira canção, tardiamente, aos 29 anos. Uma canção de amor:

“Paloma quiero contarte que estoy solo, que te quiero

Que la vida se me acaba porque te tengo tan lejos”

Paloma quiero contarte, Vicor Jara.

Mas não foram somente canções amorosas, apesar dele defender que este tema nunca poderia estar ausente do repertório de um cantor popular. Os temas amorosos naturalmente deram lugar ao retrato do que estava acontecendo em seu país. 

“Líbranos de aquel que nos domina en la miseria

Tráenos tu reino de justicia e igualdad

Sopla como el viento la flor de la quebrada

Limpia como el fuego el cañón de mi fusil” 

Plegaria a un labrador, Victor Jara.

“Aprieto firme mi mano y hundo el arado en la tierra

Hace años que llevo en ella. Cómo no estaré agotao?”

El Arado, Victor Jara.

A Nueva Canción Chilena, em que Victor foi grande expoente, foi o motor que impulsionou uma geração de revolucionários no Chile, resgatando as peculiaridades culturais dos trabalhadores e camponeses chilenos e misturando com o folclore e com as necessidades materiais da classe trabalhadora em contraponto ao imperialismo cultural estadunidense. Eles juntaram as referências culturais latinas com a do Chile e exclamavam por um mundo novo, um mundo socialista.

No dia 16 de setembro de 1973, Victor Jara, foi assassinado, não antes de ser humilhado por militares que, aos gritos de “cantor marxista, comunista filho da puta”, o torturaram, incessantemente. Desfiguraram-no. Teve as suas mãos esmagadas para nunca mais poder tocar o seu violão. Soldados apagavam bitucas de cigarro em seu corpo. Contudo, antes de ser assassinado e ter seu corpo largado na periferia de Santiago com mais de 40 disparos de fuzil, Jara compôs o seu último poema:

“Somos cinco mil nesta pequena parte da cidade. Somos cinco mil.

Quantos seremos no total, nas cidades e em todo o país?

Somente aqui, dez mil mãos que semeiam e fazem andar as fábricas.

Quanta humanidade com fome, frio, pânico, dor, pressão moral, terror e loucura!.

Seis de nós se perderam no espaço das estrelas.

Um morto, um espancado como jamais imaginei que se pudesse espancar um ser humano.

Os outros quatro quiseram livrar-se de todos os temores, um saltando no vazio

Outro batendo a cabeça contra o muro, mas todos com o olhar fixo da morte.

Que espanto causa o rosto do fascismo!

Colocam em prática seus planos com precisão maliciosa, sem que nada lhes importe.

O sangue, para eles, são medalhas. A matança é ato de heroísmo.

É este o mundo que criaste, meu Deus? Para isto os teus sete dias de assombro e trabalho?”

Víctor Jara, Estádio de Chile, setembro de 1973, antes de seu assassinato.

Perdoe-me a grande exposição de uma parte do seu último poema. Mas, lembrar de Victor Jara e de seu legado é importantíssimo para nós que queremos, concretamente, uma cultura onde os meios materiais e espirituais estejam ligados à classe trabalhadora, onde a classe operária e a sua luta estejam no centro da discussão. Resgatar a memória de Victor Jara nesse dia de lembrança é essencial. Não é somente lutar para que o que aconteceu com ele, no estádio Chile, hoje Estádio Victor Jara, não caia no esquecimento, mas para que esse fato e o desaparecimento e assassinato de milhares de pessoas, desde o 11 de setembro de 1973, não se repita, em nenhum lugar da América Latina.

Falar sobre Jara e a Nueva Canción Chilena, em uma época em que o imperialismo cultural estadunidense só avança nos países do sul, é trazer de volta o folclore, as lendas, os mistérios, a tradição, enfim, a cultura de nossa classe para o centro do debate cultural. Falar desse movimento e de suas “peñas” universitárias, que fomentou cultura em um país que se tornou cada vez mais rebelde em contraposição ao conservadorismo arraigado que sempre foi presente no Chile, é falar sobre a democratização do acesso à cultura pela classe trabalhadora. É discutir sobre como centros culturais criados pelos próprios trabalhadores borbulhavam a cultura e o folclore operário, denunciando os males do capitalismo e falando sobre o seu modo de viver e sobre um novo modo de se viver: sobre o socialismo. Falar de Jara e entoar as suas canções é trazer de volta a perspectiva de um futuro socialista para a humanidade, até porque todos nós temos o direito de vivermos, trabalharmos, produzirmos a nossa riqueza para nós mesmos, definitivamente, em paz!

Victor Jara Vive hoje e sempre!

Viva a cultura popular!


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