Violência em Gaza ou no Rio de Janeiro: pelo que é mais importante lutar?
Disputar sobre qual opressão é mais ou menos importante, só favorece o lado de lá
Nos últimos dias, surgiu um debate nas redes sociais questionando a comoção pelo que acontece entre Israel e Palestina. Por que levantar a bandeira de solidariedade ao povo palestino, sendo que no próprio Rio também acontece uma guerra? Essa pergunta não é nova e sempre surge em momentos em que há um movimento de solidariedade internacional ao mesmo tempo em que ocorre alguma tragédia ou situação de violência no Brasil. A dúvida muitas vezes é sincera. E queria dialogar com ela através deste texto.
Escrevo na posição de alguém que vive no Rio e nasceu em uma de suas várias favelas, tendo a guerra às drogas afetado a minha vida e família em diversos sentidos. E também na posição de alguém que encontrou através da luta o marxismo como a chave para compreender a sociedade.
O marxismo, para além de seu conteúdo essencial de transformação da realidade, também nos ensina uma forma de ver o mundo. Em regra, somos ensinados a pensar na lógica formal, que tem sua importância em diversas áreas do conhecimento, mas que é insuficiente para pensar a realidade enquanto um todo. Nessa perspectiva, a contradição é tida como um defeito no pensamento. Se algo é A, logo não pode ser B. Assim como se é B, não pode ser A. Então, não há neste sentido algo que possa ser A e B ao mesmo tempo.
Trazendo isso para o debate em questão, se estamos falando da Palestina, não podemos falar do genocídio da juventude negra e favelada (e vice-versa). Lutamos por uma coisa ou por outra. É justamente por isso que a lógica formal, na opinião do marxismo, é incapaz de entender o todo, já que sempre se prende a uma parte dele. Impossibilita inclusive compreender as conexões que existem entre suas partes.
A situação no Rio de Janeiro é gravíssima. Vivemos por décadas uma guerra às drogas que serve só pra trazer opressão ao povo através de operações policiais. Uma situação que agora atinge outro patamar, com o fortalecimento e expansão das milícias pelo Estado, que vai além do controle territorial, sendo também político, cultural, econômico e social. A demonstração de sua capacidade nesta semana, com incêndio de 35 ônibus e um trem, é um exemplo do quão profundo é o problema em que estamos.
Tal qual aqui, o genocídio do povo palestino também é grave. Estão há mais de 70 anos perdendo seu território, cultura, direitos dos mais mínimos, para um Estado criado após a 2ª Guerra Mundial e apoiado pelo imperialismo. São ignorados pela grande mídia e colocados todos como terroristas, ao ponto de um hospital com mais de 500 pessoas ser bombardeado e entendido como uma “resposta” ao “ataque terrorista” que fazem. Para quem não conhece, Gaza tem uma das maiores densidades populacionais do mundo, sendo composta por cerca de 1,7 milhões de refugiados (75% de sua população). Crianças e adolescentes são cerca de 50% dos habitantes.
A realidade de Gaza é semelhante à do Rio de Janeiro em diversos aspectos. A opressão praticada pelas Forças de Defesa de Israel ao povo palestino é vista como um exemplo para os órgãos de segurança pública brasileiros, que realizam diversos treinamentos em conjunto. Israel é um dos principais fornecedores de equipamentos militares ao Brasil. No Rio, blindados israelenses são utilizados desde a ocupação das favelas para implantação das UPPs. Até no dia do ataque das milícias ao transporte público, Lula comentou que o Rio parecia a própria Faixa de Gaza.
Mais do que definir sobre qual luta é mais importante, devemos debater como organizamos em conjunto a luta para superar o que vivemos, seja no Rio, seja na Palestina. O marxismo nos ensina a superar uma compreensão parcial dos fenômenos que vivemos. Não só para entender como eles são mais complexos e conectados com outros elementos do que geralmente aparentam ser, mas também para trazer um caminho em comum para nossos desafios.
Ser internacionalista, no sentido de construir uma luta em comum entre os povos, é fundamental. É assim que não só dizemos aqui que há um povo que sofre em outro país, mas que também se mobiliza; e que sua luta precisa do nosso apoio porque é comum a nossa; e que ela sendo fortalecida lá, nos da esperança para avançar aqui. É a velha lição de que se o capitalismo, o racismo, o machismo, ou qualquer opressão que seja, tenha um caráter internacional, implica em entender que nossa luta também precisa ser internacional.
Ainda que tenhamos uma tendência a pensar apenas em uma parte, inclusive porque ela pode ser mais aparente e concreta para nós, precisamos ir além. Nossa luta é por todos aqueles que são explorados e oprimidos, seja qual for sua nacionalidade. Disputar sobre qual opressão é mais ou menos importante, só favorece o lado de lá, que ganha com a nossa divisão e dispersão. A questão é como encontramos uma unidade nas diversidades da luta.