Um balanço sobre a greve da educação: lutar vale a pena?
Reprodução: Igarapé NEWS

Um balanço sobre a greve da educação: lutar vale a pena?

Com a derrota eleitoral de Bolsonaro, houve uma expectativa de mudança no cenário da educação pública brasileira. Mas ao contrário, o primeiro ano do governo Lula representou uma continuidade em parte do que foram os governos anteriores. A educação respondeu com a construção de uma greve nas universidades e institutos federais, que agora começa a se encerrar. Neste texto, queremos fazer uma reflexão inicial sobre o que representou este processo de luta.

João Pedro de Paula e Renata Moara 2 jul 2024, 15:18

A crise nas universidades federais

Desde o segundo governo Dilma, tivemos o início de um período em que a principal diretiva econômica seria a aplicação de um ajuste fiscal, mas que já se apresentava desde 2013, como resposta à crise econômica. Uma notícia do El Pais de 2015 explica bem o que isso significa: 

“Ajuste fiscal é o nome dado ao esforço para equilibrar as contas do Estado brasileiro e voltar a fechar no azul, após anos de gestão econômica criticada. A meta é chegar a um superávit primário de 1,1% do PIB no Governo Federal: trata-se de receita menos despesa, excluído o gasto do Governo com o pagamento de juros da dívida pública. O argumento é que o Governo, depois de anos de política expansiva e aumento de despesas, e principalmente do déficit de 0,63% do ano passado, não pode gastar mais do que arrecada.”

Desde então, todo esse vocabulário passou a ser rotina no noticiário. Por essa razão, as universidades hoje têm um orçamento que é inferior ao início da década passada, mesmo com um crescimento no número de instituições e consequentemente de alunos. Isso sem falar no processo que mudou a cara das federais a partir de 2013, com a instituição da política de cotas, que demandou um fortalecimento da assistência estudantil.

O exemplo mais simbólico dessa crise é o caso da UFRJ, a maior federal do país. Em 2018, vimos o incêndio do Museu Nacional, que faz parte do patrimônio da universidade. A cena se repete ano após ano na instituição, ainda que em proporções e formas diferentes. 

Para além dos gastos com os servidores (as despesas obrigatórias), o orçamento das universidades pode ser dividido em dois: as verbas para custeio, que dizem respeito aos recursos para funcionamento básico (pagamento de contas, contratos e auxílios), e as verbas para investimento em infraestrutura e patrimônio, que incluem obras e expansões. No caso da UFRJ, ela pode encerrar o ano de 2024 com um déficit orçamentário acumulado de R$ 380 milhões para funcionamento e com uma demanda de quase R$ 800 milhões para obras de reparo em metade de seus prédios.

Isso é apenas um exemplo da crise que vive o conjunto das universidades federais. A ANDIFES, associação que agrega os reitores das instituições, apontou que precisamos de uma recomposição de R$2,5 bilhões para chegarmos ao orçamento de 2017, que já era marcado por cortes.  Roberto Leher, ex-reitor da UFRJ e referência na pesquisa sobre educação, aponta que os “recursos reivindicados na greve para as universidades estabelecidos pela pauta da Andifes são de irrisórios R$ 2,5 bilhões, o que denota uma pauta muito rebaixada, pois, a rigor, apenas mantêm ligados os aparelhos para a respiração artificial das universidades”.

Leher argumenta com razão. As verbas de custeio que já chegaram à cifra de R$9,5 bilhões, hoje representam apenas R$6 bilhões. A situação nos recursos de investimentos é pior ainda, proporcionalmente, visto que já atingiram cerca de R$1,5 bilhão e em 2022 totalizavam R$200 milhões. Este valor, ainda no ápice, já era tido como insuficiente, sendo incapaz de suprir as necessidades das diversas universidades federais, pois as mais novas precisavam de recursos para erguer seus novos prédios e campis, enquanto outras possuíam demandas específicas para seus patrimônios mais que centenários.

A retomada da greve como instrumento de luta

O ano de 2024 iniciou com um espírito de greve no funcionalismo público federal, com anúncios de paralisações já nos primeiros dias do ano. A educação pública, encabeçada pelo SINASEFE, ANDES e FASUBRA, concentrou a maior parte dos servidores em greve, que lutavam e lutam por recomposição salarial, orçamentária, plano de carreira e revogação de retrocessos que ocorreram nos últimos anos. 

Nós do Juntos! defendemos desde o início não só um apoio aos grevistas, mas a necessidade do movimento estudantil também se somar nesse processo de luta. O mote “a greve também é estudantil” expressou bem essa política. Para nós, as greves que ocorreram na USP e na Unicamp em 2023 foram um exemplo de mobilizações amplas, unitárias e que puderam fazer uma disputa contra o projeto neoliberal de educação. 

Ainda que seguindo o exemplo dessas lutas, há diferenças nítidas. Diferente do que costuma acontecer, dessa vez os estudantes não foram a vanguarda do processo – o setor que estava à frente da luta. Quem deu o pontapé foram os trabalhadores da educação, mais especificamente os servidores técnico-administrativos que entraram em greve em março. 

Isso representou uma necessidade inicial de disputar na base estudantil não só um apoio aos trabalhadores, mas que também deveríamos ser parte ativa da luta. A pandemia gerou uma descontinuidade nas tradições do movimento estudantil, fragilizando principalmente as entidades de base, que dão vida ao dia a dia da política estudantil. Para além da ruptura geracional, chegamos a quase 10 anos sem ter greves nas federais. O conjunto desse cenário trouxe muitas dúvidas e receios sobre o que significa uma paralisação e até mesmo de como os estudantes podem lutar. 

Nos localizamos na disputa contra duas posições equivocadas no movimento: de um lado, de quem discordava da luta por que queria blindar o governo de qualquer crítica (o desvio oportunista); de outro, daqueles que achavam que construir luta é um processo formal, e bastava decretar uma greve com apenas os setores mais mobilizados, de cima para baixo, sem construir uma mobilização ampliada e coletiva (o desvio esquerdista).

As greves conseguiram obter um apoio de maioria social. Em abril, O Globo noticiou uma pesquisa que demonstrava que 78% da população brasileira considerava justa as greves nas federais. Em abril, dezenas de universidades começaram a aprovar greves, paralisações e outras formas de mobilização estudantil, buscando que os estudantes também defendessem suas próprias pautas. 

O Juntos! foi um dos movimentos mais decididos pela mobilização estudantil. A defesa das mobilizações não foi e nem é um consenso no movimento. A União Nacional dos Estudantes (UNE) chegou a publicar apenas uma nota sobre o tema, de forma formal e deslocada do processo real de luta. A ausência da principal entidade estudantil do país foi resultado de uma política de sua direção majoritária, que na base estudantil atuou através de suas juventudes (UJS e juventudes do PT) para fortalecer o movimento antigreve. 

Levando essa posição às últimas consequências, esses setores no fundo defendem que as universidades públicas fechem suas portas por falta de orçamento ou assumam o fim da já limitada autonomia universitária com a captação de recursos privados.

A greve como um respiro e a formação de uma nova geração

Pelas contradições da luta, como a ruptura geracional do pós-pandemia, e até a própria ausência de uma atuação nacionalizada através da UNE, o movimento estudantil teve limitações na greve, de forma que não chegamos a uma massificação da luta, ainda que houvesse um apoio de maioria social. Apesar disso, há duas vitórias que são fundamentais e que demonstram a importância da aposta na luta.

O governo Lula atuou de forma a descredibilizar os setores em greve, até mesmo utilizando de uma entidade que sequer poderia representar os grevistas, como a Proifes, para tentar acabar com a greve. Ainda assim, foi forçado a ceder. Os trabalhadores em greve obtiveram diversas conquistas, que não queremos destrinchá-las aqui. E os estudantes e a educação como um todo também. 

Conseguimos uma recomposição orçamentária limitada, mas que trás um pequeno respiro às universidades. Além do anúncio do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que prevê cerca de R$5,5 bilhões em investimentos nas universidades federais. O projeto retoma um orçamento para obras que já não víamos há anos, superando o orçamento para investimentos dos anos de 2015 a 2024. Mas que merece suas críticas, porque retira a capacidade das universidades de escolherem como utilizarão seu orçamento, já que as obras foram definidas pelo governo federal, sem qualquer debate entre a comunidade universitária, ainda que contemplem demandas importantes, como moradias estudantis e restaurantes universitários.

Há também o tema das conquistas locais de cada instituição, como é o caso da UFF, onde os estudantes obtiveram a previsão de implementação das cotas trans na graduação e na pós e do vestibular indígena e quilombola, além de GTs para elaborar coletivamente a política de assistência estudantil. 

Mas não só. Todo processo de luta tem a capacidade de formar uma nova geração para o movimento estudantil, através de diversos ativistas que começaram a se mobilizar em 2024. Uma leva de novos militantes começa a surgir, fazendo uma experiência pela primeira vez com uma greve e as disputas à quente do movimento. Trata-se de algo muito importante, considerando a necessidade de fortalecer na base a luta estudantil após a pandemia. Agora, cabe a nós disputarmos que é preciso seguir construindo o movimento e suas entidades, trazendo a experiência acumulada para termos melhores condições de enfrentar as próximas batalhas.

Os próximos passos

Apesar das vitórias da luta, é preciso reconhecer suas limitações. O arcabouço fiscal segue vigente, limitando estruturalmente o crescimento dos gastos públicos. E agora, Haddad busca apresentar uma proposta que pretende acabar com o piso mínimo de investimentos para saúde e educação, que existe na Constituição para garantir a aplicação de recursos nessas áreas como uma política de Estado. O governo apresenta que o piso é incompatível com o novo teto de gastos, o que no fundo é verdade. David Deccache, assessor econômico do PSOL na Câmara, explica isso com uma metáfora:

“Acontece que o Novo Teto de Gastos, conforme o governo reconhece, tem um limite global que cresce acompanhando 70% das receitas [ou seja, do que o governo arrecada]. Contudo, lá na Constituição, tá mandando crescer saúde e educação com 100% das receitas. Imagine o problema que isso dá! É como se o teto geral fosse um caminhão correndo a 70 km/h, fechando toda a estrada do orçamento. Atrás está vindo dois carros voando, o da saúde e educação, a 100 km/h. O que vai acontecer? Não precisa ser um gênio da física para acertar! Vão bater no caminhão. Enquanto não batem, os carros vão atropelando as demais despesas que estão pelo caminho e sem um piso pra proteger, como saneamento básico, ciência e tecnologia moradia, obras e afins. Ou seja, a saúde e educação viraram as vilãs do orçamento pq o novo teto de gastos que é um caminhão lento, grande e pesado que está fechando a estrada da (re)construção do país. E ele foi colocado lá de propósito! A ideia era forçar a redução do crescimento dos pisos da saúde e educação! Querem reduzir de 100km/h para apenas 70km/h!”

Ou seja, tentam colocar os pisos constitucionais como o problema, mas ele é um problema apenas para os ricaços que querem reduzir os gastos sociais e retirar os direitos do povo e da juventude. Para nós, o problema está justamente no arcabouço fiscal, que precisa ser derrotado para conseguirmos ter um orçamento público que sirva ao povo e não aos banqueiros que recebem quase metade de todo o orçamento com o pagamento da dívida pública e seus juros. 

A crise na educação pública e nas universidades federais segue e tem o risco de se aprofundar com a continuidade da política neoliberal. A greve nas federais mais uma vez mostrou o caminho. O movimento estudantil precisa seguir apostando na capacidade de mobilização e auto organização dos estudantes, o retorno às universidades deve significar a continuidade das mobilizações em defesa da educação, pela recomposição orçamentária, e demais pautas estudantis, fortalecendo as entidades de base e colocando os estudantes em movimento. As nossas vitórias são frutos de nossa capacidade de mobilização. Lutar vale a pena!


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