A Revolta dos Malês 190 anos depois: lições da rebelião escrava no Brasil
A Revolta dos Malês foi uma importante rebelião liderada por escravizados de origem africana. Organizados e bem preparados, os rebeldes planejaram um levante silencioso para se aliar a outros escravizados e atacar pontos estratégicos, visando desestabilizar o sistema escravista. A revolta é hoje reconhecida como um exemplo significativo de resistência contra a escravidão, sendo parte essencial da história da luta da classe trabalhadora no Brasil
Há 190 anos, em 24 de janeiro de 1835, correu pelas ruas de Salvador um burburinho de que um grupo de negros esravizados preparava um levante na capital. Negros libertos, leais aos seus aintigos senhores, entregaram os planos, relatando o que ouviam. Rapidamente as notícias chegaram ao Presidente da Província, Francisco de Souza Martins, e às autoridades municipais. Na mesma noite, por volta das 23h, Martins mandou ao Juíz de paz que reforçasse a segurança, redobrando a ronda. Movidos por denúncias, chegaram à casa de Domingos Marinho de Sá, africano liberto. Lá, estavam reunidos cerca de sessenta africanos, com vestes brancas e armados de espadas, faziam os últimos retoques no seu plano insurgente. Ao invadiram o subsolo da casa, local onde acontecia a reunião, o juiz de paz e a guarda municipal são recebidos com gritos de “morte aos soldados!”. Tinha início a maior rebelião escrava do Brasil imperial: a Revolta dos Malês.
Malês era como se classificava africanos de origem nagô que haviam se convertido ao islamismo, em sua terra. Na virada do século XVIII para o XIX, a Bahia recebeu um grande fluxo de africanos escravizados, principalmente da África Ocidental, atual Nigéria, o chamado Sudão Central. Por volta dessa época, o islamismo havia se tornado importante força política na região. Em 1804, um líder e pregador muçulmano de origem fulani, Usuman Dan Fodio, iniciou uma jihad, que se expandiu, submetendo diversos reinos ou Estados Haussás. Em 1809, esses reinos foram unificados sob o Califado de Sokoto, que seguiu avançando, levando a guerra até Borno, Nupe e Òyó. Alguns anos depois, em 1817, eclode outro conflito com importante participação muçulmana: a revolta de escravos de Òyó. Estes e outros conflitos, obviamente, geraram um grande número de prisioneiros de guerras. Uma parte destes, seria escravizada no próprio território africacano, mas um grande contingente seria comercializado nos portos africanos com traficantes baianos, ou correspondentes destes no tráfico Transatlântico.
Dessa forma, entende-se que boa parte dos escravizados de origem africana que desembarcaram na Bahia nas primeiras décadas de 1835 havia participado de inúmeras campanhas militares em território africano. Eram ágeis na utilização de arco e flecha e montaria, como os haussás, membros da famosa cavalaria do reino de Òyó. Além disso, os muçulmanos eram letrados, muitas vezes bilíngues, dominando o árabe como língua sagrada do islamismo. Os cadernos malês, escritos encontrados pelas autoridades que traçaram os planos da revolta, estavam escritos em árabe. Para traduzi-los, muitas vezes apelava-se para escravizados ou libertos de origem haussá. Obviamente, estes guerreiros letrados, não aceitariam de forma pacífica a escravização em solo brasileiro. A bahia, na época, tinham uma maioria populacional formada por negros: livres, libertos e escravizados. A classe dominante, porém, era formada pela minoria branca ligada ao tráfico negreiro e aos engenhos de açúcar, ou a ambos.
Segundo um dos cadernos encontrados, chamado pelas autoridades de papel árabe, dizia que o plano dos rebeldes era agitar a cidade (Salvador) e depois partir em direção à zona rural, o Recôncavo, coração do escravismo baiano, principal zona de produção da cana-de-açúcar. Para isso, reservaram a data de 25 de janeiro de 1835, dia da Festa de Nossa Senhora do Guia. Segundo o historiador João José Reis, diferente dos protesto modernos de trabalhadores, que elegem dias de semana para parar a produção, as revoltas escravas aconteciam em momentos de lazer, quando a vigilância sobre o trabalho era menos rígida. Os rebeldes pretendiam abordar os escravizados que saíam às 4 ou 5 horas da madrugada para buscar água, ganhando-os para a rebelião. Por isso, deveriam permanecer em silêncio, agindo sorrateiramente até esse horário.
Quando, ainda na madrugada, os sessenta africanos foram encontrados pelo juiz de paz e pelos guardas na casa de Domingos, parece ser esse horário que esperavam. Porém, as denúncias alertaram as autoridades e frustraram o elemento surpresa da revolta. Depois de enfrentarem os guardas que os surpreenderam em reunião, esse grupo de rebeldes saiu pelas ruas de Salvador batendo às portas e ganhando mais rebeldes ao longo da madrugada. Ao longo de três horas, tentaram assaltar a cadeia da cidade, localizada no subsolo da Câmara Municipal. Pretendiam, com isso, libertar Pacífico Licutan, mestre Muçulmano. Além disso, atacaram os quarteis do Largo da Lapa e São Bento e enfrentaram-se com as tropas policiais no Forte de São Pedro e no Quartel da Cavalaria. João José Reis estima que o conflito tenha durado de 3 a 4 quatro horas, mobilizando em torno de 600 escravizados, em sua maioria de origem africana, de origem haussá e nagô. Poucos crioulos participaram da revolta.
Conhecer a Revolta dos Malês é fundamental para os revolucionários de hoje. Trata-se, afinal, da maior rebelião escrava do Brasil imperial. Sendo assim, deve ser reivindicada como parte da tradição de luta da classe trabalhadora brasileira. Tendemos a estudar e nos basear na tradição de luta de classes considerando apenas a “classe operária”, típica do final do século XIX e início do século XX, no Brasil. Nesse sentido, as formas de luta e resistência dos escravizados são vistas como formas de luta e resistência dos negros e não como parte fundante da classe trabalhadora brasileira. Nesse sentido, por muito tempo, a Revolta dos Malês foi vista pela sociologia e pela historiografia brasileiras como um conflito religioso entre católicos e muçulmanos. Essa interpretação se explica pela abordagem etnocêntrica de muitos intelectuais, julgando que africanos não poderiam planejar e executar uma rebelião contra a exploração escravista. Em outras palavras, que não seriam capazes de ter consciência de classe. Felizmente, essa interpretação, embora ainda persistente, tem cada vez mais perdido seu poder explicativo. Por isso, conhecer Malês é, também, conhecer a história de luta da classe trabalhadora, para além da influência europeia. Passo imprescindível para se conhecer o Brasil e elaborar métodos de luta que levem em consideração a história da resistência escrava.