ESPECIAL GREVE DOS GARIS: Caetano Manenti sobre a mobilização que marcou o Carnaval do Rio
O jornalista Caetano Manenti relata a histórica greve dos garis do Rio, em pleno Carnaval. A greve contada pelos próprios protagonistas.
Alienação?
DEPOIS DE POLITIZAR O CARNAVAL CARIOCA, GARIS MANTÊM GREVE
Profissionais do lixo usaram ‘o maior espetáculo da Terra’ para ganhar apoio da população do Rio – de madames a foliões embriagados
Será impossível encontrar o cidadão que pela primeira vez avaliou o carnaval como uma festa promovida pelas elites interessadas em alienar o povo, oprimido durante os outros 360 dias do ano. De velho, ele já está morto, decerto. No coração do carnaval brasileiro, o mito, que ultrapassava gerações, foi esmagado por uma montanha de lixo no especial ano de 2014.
A terça-feira gorda amanheceu obesa com o peso de incontáveis toneladas de “resíduos sólidos” abandonadas, pela maioria dos garis da cidade, em bueiros, ruas, parques e – mais simbólico impossível – no sambódromo construído sobre a rua Marquês de Sapucaí. De norte a sul, do oeste à zona portuária do Rio de Janeiro, era difícil calcular o montante de sujeira. Para comparação, o carnaval de rua de 2013 gerou 1.120 toneladas de lixo, segundo a Companhia de Limpeza Urbana da cidade do Rio de Janeiro, a Comlurb. Para entender o quadro do fedor, melhor que esses números só a dúvida que a apocalíptica cena trazia à cabeça de cariocas e turistas logo pela manhã: seria possível sair de casa e enfrentar tamanha sujeira para uma corridinha no Aterro do Flamengo, por exemplo?
A 8 quilômetros dali, na entrada principal da Central do Brasil, estavam os “irresponsáveis pelo fato”, na desamável designação do presidente da Comlurb, Vinícius Roriz. Em entrevista ao programa CBN Rio naquela manhã, o ex-executivo da Ambev e da IMX Esportes e Entretenimento mostrou toda a sua impaciência com “o pequeno grupo que faz chantagem com a sociedade, que não cuida da nossa cidade como ela merece”. Para Roriz, o “pequeno grupo” somava apenas 300 inconsequentes de um total de quase 15 mil funcionários que trabalham diretamente na limpeza da cidade administrada por Eduardo Paes. Como é costumeiro nestes casos, a estimativa logo se mostraria subtraída. Só na aglomeração da Central havia, pelo menos, 550 pessoas, contadas uma a uma por este repórter. Somando a esta contabilidade, as imagens de ruas imundas na Lapa, no Centro, na Glória, em Campo Grande, em São Cristóvão e em outra centena de bairros Rio afora davam a garantia de que 300 vassouras paradas não seriam capazes de estrago tão grande na imagem da cidade mais linda do Brasil.
A primeira pitada estrambólica deste atípico dia na terra de São Sebastião veio do outro lado da avenida Presidente Vargas: os carros alegóricos da Portela e da Imperatriz Leopoldinense voltavam do desfile para os barracões. Sobre os veículos, os funcionários das escolas de samba inauguraram uma jornada que seria repleta de acenos e aplausos para os garis. A relação fraternal entre duas categorias tão basilares da pirâmide social parece que serviu de alerta para os grevistas. Eram 11 horas da manhã quando o grupo de garis percebeu que, ali na Central, não havia nem pressão, nem simbolismos envolvidos. Houve uma discussão. Parte do grupo queria rumar para a vizinha avenida Rio Branco, de onde chegaram relatos de garis trabalhando sob escolta do Batalhão de Choque da PM.
– Não vamos lá, não. Vai dar confusão com os polícia! – alertou um comedido.
– Bora para o Piranhão! Lá! É lá é o nosso foco! – bradou com força um engajado.
E lá foram em direção à sede da Prefeitura do Rio – ou ao ‘Piranhão’, apelido dado ao prédio construído na antiquíssima zona de prostituição da cidade. A caminhada começou com força nas pernas. Era tanta velocidade que a primeira ordem a surgir foi “ninguém anda à frente da faixa”. Nela, estava escrito: “O prefeito quer fazer a Copa. Os Garis querem fazer as compras”. A central de rimas também começou afiada. A preferida do dia parodiava a quinquagenária marchinha ‘Índio quer apito’.
“Êeeee-ê-ê-ê, nesse carnaval o prefeito vai varrer! (Sozinho!)”
Havia também certa herança dos Levantes de Junho:
“Ôooooo, o gari acordôôôôô, o gari acordôôôôô, o gari acordôôôôô-ôôôô!”
Quem acordou por tabela foram os mendigos do Centro, que deitados nesta manhã, tristemente, se camuflavam ainda mais com tanto lixo ao redor. O trânsito da Presidente Vargas parou, orientado por uma dezena de guardas municipais. Muitos da barulhenta multidão vestiam peças dos uniformes da Comlurb, o que pintava a avenida com o indefectível laranja-gari. Não havia bandeira de partido ou sindicato. A única bandeira que tremulava sobre as cabeças, majoritariamente negras e mulatas, era a bandeira do Brasil.
O hino nacional foi cantado e seguido por uma nova paródia criativa:
“Eeeeu sou brasileiroooo, com muito orguuuulhooo, mas sem valoooo-ooooor”
A ‘grande mídia’ não seguia a manifestação. Não se viu ninguém identificado da Bandeirantes, nem da Globo ou SBT. Sem repórter, um cinegrafista da Record fez uma aparição relâmpago. Foi apenas mais demorado que o repórter da GloboNews, que, durante os dois minutos em que pôde ser visto, se manteve a, pelo menos, 50 metros dos manifestantes. De cima de uma passarela, usou um celular para, provavelmente, transmitir o evento noticioso mais importante do dia, aquele que gerava uma cidade completamente imunda. A única equipe de jornalismo que circulava despreocupadamente entre os garis era formada por um barbudo descamisado e por um iPhone sempre em punho: a Mídia Ninja transmitia os acontecimentos ao vivo pela internet.
Cinco jovens e uma bandeira improvisada representavam o ausente movimento estudantil. Uma jovem adulta segurava um cartaz que a identificava como professora da rede estadual. Ela apoiava os grevistas e, por isso, foi aplaudida pela massa. Cerca de 50 PM’s acompanhavam cordialmente a manifestação. Menos tensos do que em manifestações recheadas de ‘Black Blocs’, alguns policiais até mesmo sugeriam aos fotógrafos os melhores ângulos. Quando uma montanha de lixo encobria um painel publicitário que exaltava o carnaval carioca, um deles aconselhou o repórter:
– Aquela foto é a boa, “Maior Espetáculo da Terra” embaixo do lixo. Hahahaha!
A única desarmonia entre garis e PM se deu já na avenida Francisco Bicalho. Um dos policiais chamou um dos manifestantes e pediu para ele convencer o grande grupo a liberar uma das três faixas da avenida.
– É para os ônibus passarem e a população não ficar contra vocês.
– Nada disso! A população está fechada com a gente. Tá todo mundo nos aplaudindo na rua. Vamos seguir impedindo o trânsito.
E não se falou mais nisso. 2,5 km e uma hora depois da partida, o destino havia chegado. Imaginava-se um desembarque em blitz, que ameaçasse o portão da Prefeitura e pressionasse algum desafortunado plantonista a negociar com o grupo! Que nada! O reforço policial não precisou mover um passo do cuturno sequer. O aparecimento de um megafone marcou o início de um longo período de articulações e debates, fundamentais para entender a complexidade da crise do lixo no Rio de Janeiro.
Vamos do começo: a greve no Carnaval, época mais suja da cidade, não se trata apenas de casuísmo dos funcionários da limpeza do município. Acontece que, historicamente, o dissídio da categoria é debatido justamente no mês de março. Neste ano, a negociação entre o sindicato e os diretores da Comlurb insatisfez severamente um grande grupo de garis – nome genérico do profissional que varre, capina, recolhe o lixo e – o que deve ser pior – recheia os fétidos caminhões com todo o tipo de resíduo.
Com contracheques frequentemente inferiores a mil reais(!), os profissionais da Comlurb racharam de vez com o sindicato da categoria, que leva o pomposo nome de Sindicato dos Empregados de Empresas de Asseio e Conservação do Munícipio do Rio de Janeiro. Em uma demorada busca na internet, é possível encontrar documentos deste sindicato, em 2001, já assinados pelo então presidente Luciano David de Araújo. 13 anos depois, ainda é dele a principal caneta da entidade. Neste dia caótico, a sede do sindicato, no bairro da Tijuca, esteve às moscas. O telefone informado no desatualizado site da SEEACMRJ também não atendeu. Assim, David de Araújo não foi encontrado para responder uma dúvida crucial: por que nenhum dos quase 600 garis que estiveram na manifestação lembram de terem sido chamados uma única vez para alguma eleição?
Uma das líderes dos grevistas, Maria Paes, contou que a mobilização deste 2014 começou no Facebook:
– É que o sindicato nunca trabalhou a nosso favor. O sindicato já deveria ter feito uma assembleia com os garis há muito tempo. Eles deixaram os garis chegarem a esse ponto para fazer um acordo, mas esse acordo nós não aceitamos.
Antes de explicar este acordo, celebrado na segunda-feira de carnaval, é preciso retornar à sexta-feira, dia 28 de fevereiro. Após uma reunião com garis inconformados, o sindicato assinou um documento que comunicava a Comlurb de uma greve de 24 horas, a partir do primeiro minuto do sábado de carnaval, aniversário da cidade. Já na manhã de sábado, o lixo se acumulou. Atrapalhada, a direção do sindicato, por entender como ilegal os procedimentos grevistas recém assinados, voltou atrás, temendo uma negativa da justiça, prontamente acionada pela Comlurb. E ela logo veio. Ainda na manhã de sábado, a desembargadora Rosana Salim Villela Travesedo, do Tribunal Regional do Trabalho do Rio, declarou a greve inconstitucional. Para ela, era preciso “a abstenção de qualquer paralisação sem a prévia comunicação num prazo legal de 72 horas. (..) (Os trabalhadores) surpreenderam a população carioca na madrugada de hoje – em plena festividade de Carnaval e data comemorativa do aniversário da cidade, período em que o município alberga quantidade expressiva de turistas”. No final da decisão, a desembargadora fixou em R$25 mil a multa diária para o sindicato caso houvesse greve.
Ainda no sábado, foi registrado o momento mais tenso até então. Após o furo dos dirigentes da Comlurb que não compareceram à reunião que debateria a crise ao meio-dia, cerca de 500 garis marchavam em direção ao sambódromo quando foram impedidos pelo Choque. Houve confronto com bombas de gás lacrimogênio, mas sem feridos.
Após o primeiro dia intenso de blocos de carnaval por toda a cidade, o domingo amanheceu no caos. Alguns garis foram vistos sem uniforme limpando o lixo sob proteção da PM. Já no fim de semana, o presidente da Comlurb, Vinícius Roriz, denunciava que o grupo mobilizado estava intimidando trabalhadores que queriam ir às ruas. Em nota, a Companhia desdenhou da envergadura da greve: “Alguns pontos da cidade sofreram interferência de membros de um grupo de grevistas sem representatividade nem ligação com sindicato reconhecido da categoria e com movimento considerado ilegal pela Justiça do Trabalho, o que dificultou e atrasou a realização dos serviços nestes locais”. O sindicato, seja por medo da multa, seja por estreitamento com a direção patronal, emitiu uma nota no mesmo tom: “O Sindicato vem a público informar que não há qualquer movimento de paralisação ou greve na cidade do Rio. Os rumores de uma ameaça de paralisação vêm sendo alardeados por um grupo sem representatividade junto à categoria”. A cidade estava imunda pelo segundo dia seguido e o caso ainda era tratado como rumor.
A tarde da segunda-feira trouxe alguma esperança para a querela. Uma reunião no prédio da Prefeitura confrontou Comlurb, sindicato e dez líderes grevistas autônomos. Comlurb e sindicato fecharam acordo. Os grevistas negaram o proposto: aumento de 9% nos salário-base (de R$802 para R$874 – com o adicional de 40% de insalubridade, o piso ficaria em R$1.224).
Estava claro que o grupo mobilizado queria bem mais:
– salário-base de R$1.200 (o que significaria um aumento de quase 50% nos atuais rendimentos).
– aumento do tíquete-refeição diário dos atuais R$12 para R$20 (a Comlurb ofereceu R$16).
– plano odontológico para todos os funcionários.
– meia-entrada em cinemas e em centros culturais do município.
A baixinha líder grevista Maria Paes encontrava ainda mais motivos para lutar:
– Os gerentes não respeitam ninguém. É assédio o tempo todo, ameaças. A gente não tem luva. Protetor solar, neste sol, eles não dão. A nossa gerência não tem água. A gente tem que beber água da bica. Quando a gente pede água a eles, eles mandam a gente comprar.
A diretoria da Comlurb foi à imprensa para anunciar o fim da greve e emendou com uma ameaça, que também constava no acordo assinado pelo sindicato. Quem não retornasse ao trabalho até às 19h desta segunda seria demitido. Simples assim.
Era esse o principal assunto nos intensos debates em frente à Prefeitura na quente tarde da terça-feira gorda. A ameaça de demissão parecia boato até que chegou a primeira carta. O destinatário era um dos dez líderes que sentaram à mesa na tarde passada. Ele fez questão de levar o documento para todos lerem. Alguém relatou em voz alta que ele estava convocado a comparecer na quinta-feira para assinar sua demissão. Pela imprensa, o grupo ficou sabendo que 300 já haviam recebido um documento igualzinho.
Sem qualquer contato com representantes da Prefeitura desta vez, restou o megafone. Célio Viana dominava o aparelho.
– O gari, na cabeça dos governantes, é um escravo. Um escravo! E o sindicato é o capitão-do-mato. Hoje temos o Lixo Zero (operação lançada em agosto passado que multa em R$157 quem joga lixo no chão). Para onde vai o dinheiro do Lixo Zero? Eu não sei! Não vai para nós! Vai para alguém…
Discurso inflamado após discurso inflamado, chegava-se à conclusão de que não adiantaria mais ficar ali, apenas com a plateia dos policiais militares. O relógio já estava na 15° hora do dia e era preciso fazer barulho. Barulho? Na terça de carnaval? O grupo, então, decidiu rumar para a zona sul. Todos com o cartão do Bilhete Único em mãos aproveitaram a proximidade com a Estação Cidade Nova para decidir pelo metrô para a “jornada história”, nas palavras de Célio.
Ainda antes da roleta, um imbróglio fotografou esta manifestação no seu tempo e espaço. Aquela professora estadual, aplaudida horas antes, havia se reforçado de outra radical para defender o salto sobre a roleta ou mesmo a quebradeira delas. Foi duramente rechaçada pelo mais articulado líder grevista, o jovem Juan Carlos, de 32 anos. Ele fez questão de dizer que pagou seis passagens com seu próprio ‘Rio Card’, bradou que o movimento era pacífico e ainda pediu reforço da segurança para inibir o vandalismo. Ao descer para plataforma, procurou o megafone e relatou para todo o imenso grupo o que havia passado minutos antes.
– Havia uns Black Blocs inflitrados querendo quebrar as roletas. Não pode! Nós somos um movimento pacífico.
Foi a senha para novos confrontos. Uma mulher se dizendo ‘advogada do povo’ se aproximou de Juan e o criticou.
– Black Bloc não é um grupo é uma tática. E vocês ainda não a conhecem.
Por detrás, surgiu uma nova radical, auxiliado por um jovem que usava um boné da Liga dos Camponeses Pobres. O pequeno grupo apoiava “as táticas Black Blocs”. A contemporaníssima discussão seguiu por alguns minutos: quebrar ou não quebrar? Para os garis, a questão era fácil de responder: não quebrar, não pular a roleta, pagar a passagem como todo o trabalhador deve fazer. Bastava olhar no fundo dos olhos de cada um para perceber que o ato de passar adequadamente na roleta, para um gari, não significava uma exploração; era uma conquista de quem não quer jogar o sistema de pernas para o ar. É uma conquista de quem quer “apenas” entrar neste próprio sistema.
Batucando e rimando novas músicas, agora misturados a diabinhas, anjinhos, Flintstones e toda a sorte de foliões, os garis ocuparam dois vagões inteiros rumo “ao coração da cidade”, como lembrava o som metálico do megafone. O desembarque na pomposa estação General Osório, em Ipanema, foi espetacular! Carnavalizados pelo ambiente repleto de turistas bêbados e empolgados, o grupo bloqueou rapidamente a principal avenida do comércio do bairro, a Visconde de Pirajá. Um único gari mais exaltado revirou dois latões de lixo, emporcalhando ainda mais a rua já imunda. A fotógrafa d’O Globo, verdade seja dita, mostrou o espírito do seu jornal e soltou o dedo clicando a cena adoidadamente. Não era surpreendente que o sujão fosse duramente reprimido pelas autoridades em limpeza da cidade. Durante o dia, foram poucos os manifestantes que esqueceram as latas e jogaram lixo no chão.
A partir da marcha em direção a praia de Ipanema, os garis viveriam ali, nos bairros mais nobres do Rio de Janeiro, algumas das horas mais inesquecíveis de suas carreiras, certamente. Anônimos durante o dia a dia (‘anônimos’ para não dizer ‘invisíveis’), os garis receberiam a reverência de grã-finos acomodados em restaurantes grã-finos com suas caipirinhas a R$22 e os aplausos de grã-finos vestidos de chambre em hotéis grã-finos com suas diárias a R$790,00.
Os foliões, assim como o imenso batalhão de vendedores ambulantes, também reverenciavam a cada nova marchinha cantada. Claro que não seria fácil alguém enfrentar, talvez com impropérios higienistas, um grupo como aquele, mas o que se via a olho nu era um apoio irrestrito da população e dos turistas do Rio de Janeiro.
Toda a orla de Ipanema foi percorrida. No meio-fio do Jardim de Alah, o canal que separa o bairro do Leblon, os garis sentaram exaustos. Já eram 17h e eles já estavam há 7 horas mobilizados. Como presente divino, chegaram algumas quentinhas recheadas até a boca; devoradas rapidamente. Um dos grevistas que engolia uma das refeições com o auxílio das mãos foi recomendado, por um outro colega, a se afastar da entrada do hotel onde estavam. Ficou furioso. Achou uma discriminação. Alimentados, agora podiam decidir as últimas missões do dia. Entrariam numa sub-gerência e numa gerência da Comlurb na região para comoveram mais garis para a mobilização.
Antes, no entanto, Juan deu um show. Pegou o megafone, juntou as duas centenas de trabalhadores que ainda aguentavam a peregrinação, pediu desculpas e começou a evangelizar. Segurando fortemente o megafone, lembrou que os “corruptos” estavam mentindo que o movimento reunia apenas 300 pessoas. Ligeiro no pensamento, aproveitou o número exato e citou o filme ‘300’. Comparou que, na obra de Hollywood, apenas 300 guerreiros resistiram à invasão do exército persa. Citou passagens da bíblia, pediu proteção divina para a luta política daqueles dias, se emocionou e foi aplaudido por todos. Morador de Realengo, na zona oeste, Juan se converteu há 13 anos e disse que evangeliza também dentro da Comlurb.
A sub-gerência já estava próxima. Entraram todos, fazendo muito barulho e assustando quem estava por lá. Como quem tem esperança que a miséria acabe quando exposta no jornal, os garis pediam para quem estivesse com câmera em mãos registrasse o pão sem manteiga, os armários vazios de comida, os banheiros entupidos, os carrinhos de mão sem condições de uso. Os policiais ficaram do lado de fora e não apareceu nenhum dirigente para debater a situação. O gerente deixou o posto acompanhado de um homem alto e gordo de camisa listrada. A equipe da TV Brasil, que recém tinham chegado, confundiu os dois e abordou o homem errado para a entrevista, o alto e gordo.
– Você, como gerente, pode me dizer quantos trabalhadores estão parados nesta gerência neste momento?
Com um olhar ameaçador, ele respondeu debochando, levantando a blusa e mostrando a cintura.
– Você acha que gerente trabalha armado? Vá se informar melhor! Ah vá..
O revólver ficou nítido em frente à câmera. Ficou claro também, embora não para eles, com quem os garis estão mexendo.
A nova longa caminhada até uma nova gerência não deu em nada. Não havia nenhum gari ou chefe por lá. Era hora de voltar pela orla até Copacabana para a consagração final. Perto do mítico Posto 9, o grupo cada vez mais minguado deu de frente com a Banda de Ipanema, um dos mais antigos e tradicionais blocos do Rio. Espremidos pela multidão, os peregrinos da vassoura abriram espaço, passaram em fila indiana pelo carnaval de rua e foram aplaudidos repetidas vezes.
Segundo os grevistas, 70% da categoria está parada. Talvez isso seja o menos importante. Os garis precisaram de apenas uma terça-feira gorda para provar que carnavalização não precisa rimar com alienação.
Na quarta-feira, cinzas, cigarros, papelões, vidros, sacos, quase tudo (exceto latinhas) podia ser encontrado nas ruas de todas as regiões do Rio. Até mesmo as praias da orla da zona sul estavam sujas, embora a Antarctica, espécie de concessionária do carnaval de rua da cidade, tenha intensificado sua coleta particular em locais críticos na noite anterior.
Os grevistas marcaram encontro para o meio-dia na sede da Comlurb, no bairro da Tijuca, bem pertinho do Maracanã. Era dia de pressionar a direção da entidade para um acordo. Surpresa nenhuma, o prédio estava quase vazio. Quarta-feira de cinzas era ponto facultativo para os diretores da companhia. Para o gari, claro que não.
No início da tarde, em mais um dia de sindicato inacessível, surgiram mais evidências da profundidade da crise do lixo na cidade do Rio. Em vez dos empregadores – Prefeitura ou Comlurb – quem sentou à mesa com a comissão grevista foi o defensor público geral do Estado, Nilson Bruno Filho. Em contato telefônico com o prefeito Eduardo Paes, Bruno Filho trouxe uma ameaça e uma proposta antiameaça. A ameaça era a demissão não mais de 300, mas de 1.100 funcionários que haviam faltado ao trabalho nos últimos dias. A proposta antiameaça era a de salvar o emprego de todos eles ao retomar os trabalhos.
Três horas de reunião depois, havia 200 garis no portão do prédio, protegido pelo Choque, à espera esperançosa da saída dos 7 colegas. Todos cruzaram a entrada com cara abatida. O primeiro a pegar o microfone defendeu a proteção dos empregos.
– Não há o amparo jurídico para a gente fazer essa negociação sem o sindicato. E o sindicato já fez a besteira. Nós já mostramos para a sociedade a nossa força. Nos próximos dissídios, se a gente falar que a gente vai parar, eles vão acreditar.
Foi vaiado.
O segundo a sugerir um plano, Célio Viana, tinha um olhar ainda mais consternado. Identificou-se e, sob agitação de todos, deu o seu voto:
– Eu, particularmente, acho que a nossa luta é por sa-lár-rio. Por mim, Célio, a greve permanece.
Não precisou de votação. Célio foi erguido aos ombros de seus colegas e a greve estava mantida.
“Não tem arrego”, gritava a massa, que se misturou com torcedores da Unidos da Tijuca, tradicional escola de samba do bairro, que, naquele mesmíssimo momento, comemoravam o título do carnaval 2014 do outro lado da rua.
Sem experiência de luta sindical, Célio, profissional da vassoura há 12 anos, voltou para a casa como líder absoluto de uma greve capaz de provocar, pelo nariz, a ojeriza do prefeito e do governador, no mínimo. Provavelmente na sua primeira entrevista coletiva da vida, o gari de 48 anos resumiu a penosa realidade de quem é pobre e briga por seus direitos num país violento como o Brasil.
– Nós estamos pleiteando R$1.200, que também não é bom! Ainda não podemos curtir um cinema, um centro cultural. A nossa vida é trabalhar, dormir, trabalhar, dormir. Foram 30 anos para essa categoria se organizar. Eu achava que isso era uma utopia, mas hoje eu vejo que é uma realidade. Eu venho sofrendo ameaça. Dentro do movimento, quando eu passo, pessoas que eu nem conheço falam para mim ‘ó, cuidado, tu vai morrer. Tu tá marcado. Abre seus olhos, você não sabe com quem tá mexendo’. Quando fala dessa forma, é complicado. Eu sou ser humano, eu tenho medo, tenho coragem, eu tenho essa preocupação.
*Caetano Manenti é jornalista.
Publicado originalmente hoje, 5 de março, às 10h19 em https://www.facebook.com/caetano.manenti/posts/660534757326887?stream_ref=10.