O que esperar de “A Garota Dinamarquesa”?
A Garota Dinamarquesa: com suas limitações, a visibilidade trans e travesti começa a tomar espaço nas telas de cinema
O atual momento político, marcado pelas lutas de combate às diversas formas de discriminação, entrou com tudo para o mundo das artes. Não é mera coincidência que nos últimos meses, marcados pela primavera feminista e pelas lutas do movimento negro, por exemplo, tenhamos nos deparado com As Sufragistas nas telas de cinema e com o espetáculo de Beyoncé e sua nova música, Formation, nas telas do maior programa televisivo dos EUA e do mundo.
Com um caráter menos explicitamente político, o ano passado também terminou com a estreia do seguimento de um dos maiores blockbusters já existentes, o sétimo episódio de Star Wars, no qual um negro e uma mulher dividiram o protagonismo. E neste início de 2016, é a vez da visibilidade trans e travesti invadir as telas dos cinemas com A Garota Dinamarquesa.
Um filme sobre mulheres reais
Não, A Garota Dinamarquesa não é um filme necessariamente produzido para o consumo de uma vanguarda militante. Não tem, também, o objetivo de documentar historicamente a transexualidade ou esgotar as dúvidas de pessoas leigas sobre o tema. Isso não significa, porém, que o filme não contribua para esses propósitos. Nada disso significa que a produção desse filme não tenha influência dos movimentos sociais. Este filme só existe hoje pela repercussão mundial da luta de pessoas trans e travestis.
A dor da descoberta e necessidade de apoio; a quebra da noção de que a transexualidade e a travestilidade se dão da mesma forma para qualquer sujeito; a distinção entre homossexualidade (orientação sexual) e transexualidade (identidade de gênero), ainda tão confundidas pelas/os leigas/os, que consideram a segunda como um estágio mais avançado da primeira. O perigo de uma intervenção médica patologizante, hegemônica até os dias de hoje – apesar de avanços em relação à década de 1920 –, também é retratado. O filme contribui para a percepção de todos esses aspectos, tendo um importante potencial de gerar empatia em suas/seus espectadoras/es.
A Lili real, que viveu sua transição entre a década de 1920 e o ano de 1931 (quando faleceu), reproduziu alguns dos papeis destinados ao “ser mulher”, como pode ocorrer com qualquer mulher, cis ou trans, sem que tal postura possa ser tratada de forma individualizante, como um “desvio ético”. O filme mostrará como ela deixará de lado sua carreira profissional, tendo como horizonte o casamento e a maternidade. Inclusive, na realidade, o falecimento de Lili decorreu de um transplante de útero mal sucedido.
Por outro lado, Gerda Weigener, esposa de Lili, não pode ser considerada mera coadjuvante nem no filme, muito menos na história real. Gerda foi uma pintora promissora, uma mulher firme, que tomava a dianteira sem esperar que um homem lhe desse licença. Se Lili, designada como homem ao nascer, não correspondia aos papéis de gênero que lhe foram impostos, não se pode dizer o contrário de Gerda Weigener, uma mulher à frente de seu tempo – e quiçá do nosso.
Um filme de potencial progressivo, com limitações
Assim como aconteceu com a interpretação de Jared Leto em Clube de Compras Dallas, filme de 2013, novamente um ator cisgênero foi escalado para representar uma pessoa trans e, com isso, surgiram críticas a essa invisibilização e verdadeira falta de consideração com atrizes trans ou travestis que poderiam muito bem ter representado esses papéis. Ou, para evitar o reforço da ideia de que mulheres trans e travestis sejam “homens vestidos de mulheres”, seria melhor que fosse uma atriz cisgênero a interpretar Lili Elbe. Essas alternativas seriam ainda mais coerentes quando estamos falando de um filme que coloca a transexualidade como tema principal: o filme pode gerar empatia ao tema, mas parece que o diretor não teve tanta assim.
Contraditoriamente, por menos panfletário e político que seja, o filme tem um impacto progressivo na consciência de quem o assiste, isto é, não tem o objetivo de tratar pessoas trans e travestis de forma a inferiorizá-las, humilhá-las, ridicularizá-las. Pelo contrário, o filme, como dito, tem um potencial de gerar empatia. Considerando isso, não se pode comparar a representação destes atores cis com o “black face”, como se tem visto numa parcela do ativismo, sem que se caia numa banalização desta expressão de racismo. Para quem ainda não sabe, black face é uma prática racista que se dá quando uma pessoa branca se pinta com tinta preta, com o objetivo de produzir uma caritura de pessoa negra, obviamente ridicularizando a negritude.
O filme poderia ser melhor, também, sob o ponto de vista político e histórico. Poderia, por exemplo, ter retratado que durante sua busca por uma explicação do que lhe ocorria, a Lili real, antes de conhecer o Dr. Warnekros, foi paciente do Dr. Magnus Hirschfeld, médico e sexólogo alemão que lutava para vetar o parágrafo 175 da legislação de seu país, que criminalizava a homossexualidade, e que fez vários estudos sobre sexualidade humana em sua época, antes de fugir do golpe nazista na década de 1930 e ter a biblioteca de seu instituto incendiada e completamente destruída. Poderia ter retratado que, após as primeiras cirurgias de Lili, ela teve seu nome reconhecido legalmente e recebeu novos documentos com o nome retificado. Além disso, o rei da Dinamarca anulou seu casamento com Gerda, antes mesmo da aprovação do divórcio no país. Esses são fatos históricos importantes.
Não é, portanto, sob vários aspectos, um filme perfeito, mas, de forma alguma, deve deixar de ser visto como um produto vitorioso da luta do movimento trans e travesti. Vamos lembrar que, tratando-se da massa leiga, não é qualquer coisa que ela se emocione por conta da vida de uma mulher transexual.
*cisgênero é o nome que se usa como referência para pessoas que se identificam com o mesmo gênero que lhes foi atribuído pela sociedade, ou seja, são pessoas que não são trans ou travestis.