Forasteiros de dentro
Notas de repúdios aos montes e tweets com palavrórios e treinamentos para oratória não servem para barrar um possível fechamento do regime, apenas a mobilização e organização da classe trabalhadora e da juventude tem essa capacidade.
A claque bolsonarista é o próprio golpe, muito embora tentem se afastar do discurso de Silveira. Ao adentrarem o Congresso Nacional eles corroem a estrutura que sustenta a democracia burguesa. Jair Bolsonaro, Bia Kicis e Daniel Silveira, para não estender este período com outros fascitóides semelhantes, são quase que uma tríade predecessora do terraplanismo político do qual este país está refém.
Esse extremismo é aquiescido pelo Planalto. Bolsonaro possui relação direta com esse discurso autoritário e saudosista do Ato Institucional nº 5, que recrudesceu a tortura, cassou mandatos e fechou o Congresso em 1968. Quando ainda frequentava manifestações que defendiam o fechamento do Congresso e do STF, Jair Bolsonaro trabalhou para proteger os golpistas de seu grupo político. Em abril do ano passado, ele indicou que era preciso mudar o comando da Polícia Federal para frear uma investigação contra deputados que atacavam outros Poderes. A tentativa de blindagem foi registrada numa mensagem enviada pelo presidente ao então ministro Sérgio Moro. Agora preso, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) era um integrante daquele time.
Neste caso excepcional, a fauna do Planalto não emitiu ruído algum. E por mais que Bolsonaro tenha fabricado uma suposta trégua com a Suprema Corte e comprado ‘parças’ no Congresso, a máquina golpista continua a funcionar. O presidente pode disfarçar, recusar convites para protestos ou mandar para o exílio Abraham Weintraub que deixou escapar seus desejos autoritários, mas sua imagem nunca se dissocia dos facínoras que abarca nas suas relações sociais e políticas.
Já a ex-Procuradora Bia Kicis (PSL-DF) não se distancia deste campo. Ao contrário, ela é uma das integrantes deste séquito de preferências ditadoras, e com um discurso muito mais incisivo. Professora da escola de ódio na qual o parlamentar agora preso foi formado, se manteve em silêncio perante o circo em chamas. Nem mesmo compareceu ao enterro do colega, justamente porque ambiciona assumir a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, o colegiado mais importante da Câmara Federal. Figura carimbada pelo STF, Bia já gravou vídeo em que ofende o ministro Celso de Melo, além de já ter incitado seu curral eleitoral a atacar demais magistrados da Corte.
A Câmara de Deputados encerrou há pouco o escrutínio que decidiria se manteria ou relaxaria a prisão do deputado. Por 364 a 130 votos, a detenção foi mantida. Uma derrota não apenas para o bolsonarismo raiz e também para o parlamentar que, hora ou outra, se verá abandonado por quem o ajudou a sair do esgoto em que habitara. No discurso de defesa feito no início da sessão, Silveira pediu desculpas tentando arrefecer o coração dos seus pares. “Quem nunca fez isso?”, questionou o deputado de olhos fundos e fala amansada. Ele ainda fez questão de reafirmar que não é um risco à democracia, que a decisão do STF é inconstitucional e ainda se desculpou pelo que ele chamou de “fala muito dura”.
Mesmo mantendo a prisão do deputado Daniel Silveira, a Câmara permanece apequenada por não ter reagido à altura aos ataques de parlamentares que se sustentam com dinheiro público e possuem assento fixo na Casa. Se este parlamento fosse fiel às liberdades democráticas que supõe sua existência, teria execrado em público Jair Bolsonaro, à época deputado, viúvo da ditadura e admirador dos atos infames de Brilhante Ustra – militar que impunha ratos vivos na genitália de mulheres.
De qualquer modo, Daniel e Bia servem ao presidente como cortina de fumaça para a crise de ingerência que se instala no país desde o início da pandemia. O diversionismo que o episódio dessa semana oferece ao governo não poderia ser melhor. Vacinas acabando, troca na presidência da Petrobras, recrudescimento no número de contaminados e de óbitos pela covid-19, denúncias de negligência perante oferta e compra de imunizantes. Não nos enganemos: é esse um projeto de poder.
A reação da Câmara é eloquente, ainda que tardia. Daniel terá de responder às denúncias da PGR, além de enfrentar um processo no Conselho de Ética que talvez lhe custe o mandato. Fascistas devem ser punidos com os rigores da lei que eles tanto zombam. Como disse o ministro Alexandre de Moraes na decisão que autorizou a prisão de Silveira, é preciso de ações mais enérgicas para defender as liberdades democráticas. Sabemos que não podemos depender de ações da institucionalidade burguesa para derrotar os fascistas, mas não deixaremos de comemorá-las se assim for feito. Notas de repúdios aos montes e tweets com palavrórios e treinamentos para oratória não servem para barrar um possível fechamento do regime, apenas a mobilização e organização da classe trabalhadora e da juventude tem essa capacidade.