Existe organização perfeita?
Domínio Público

Existe organização perfeita?

Reflexões sobre a tarefa de organizar e construir uma organização revolucionária

André Doz 25 abr 2023, 16:43

Talvez seja impossível para a militância mais orgânica, ou até mesmo para uma vanguarda que se utiliza prioritariamente da internet, não ter tido contato com as reflexões e denúncias produzidas por militantes de Goiânia que anunciavam sua saída da Unidade Popular e demais coletivos/organizações irmãs. Do importante documento produzido por esses militantes, se faz necessário não só que a organização que estes deixam de fazer parte produza processos de reflexão, mas, frente aos acúmulos postos, toda a esquerda deve produzir reflexões a níveis organizativos e teóricos que possam dar conta da complexidade do desafio de organizar a juventude brasileira na atualidade. 

Por isso, esse texto tem como objetivo refletir algumas tarefas gerais da organização e dialogar com os debates que estão em voga principalmente nesse meio da internet, onde, por mais de uma vez, outros companheiros de minha organização têm apontado para o desvio na forma do identitarismo marxista e a performance puramente estética de revolucionários. Em última instância, a raiz para os problemas organizativos e teóricos que têm se apresentado dialogam, em essência, com o mesmo problema de tal identitarismo: o apego por uma tradição e forma que se diz marxista, mas atua e se organiza em torno de velhos fantasmas burocráticos que contaminaram e deturparam a busca pelo socialismo, legando às novas gerações práticas conservadoras, masculinistas, excessivamente centralizadas e até o esgotamento pessoal na forma da redução do indivíduo ao mero executor de tarefas. 

Se organizar, por quê? 

Quando começamos a nos aproximar dos coletivos e movimentos que fazemos parte, é muito comum que as primeiras reflexões sobre o porquê se organizar apareçam em torno das necessidades políticas de realizar determinada tarefa, comparecer a determinado ato ou construir alguma atividade. Para além do convencimento político, a necessidade de uma reflexão sobre a atuação coletiva aparece como um sintoma de um mundo que nos exige ser capazes de responder às necessidades da vida cotidiana e às contradições que ela apresenta no nível individual – como se as relações com o mundo e com os indivíduos fossem uma questão de permanentes escolhas pessoais. Assim, quando começamos a nos movimentar em coletividade para atuar em problemas que não possuem raízes no nível individual, mas que se manifestam em nossas vidas, as imensas contradições entre pessoal e coletivo surgem como uma bala que atravessa a carne de um sistema de pensamentos e comportamentos pré-estabelecidos que guiam nossa conduta social. 

Dessa forma, cabe à organização estabelecer com sua militância em aproximação diálogos extensos e reflexivos sobre as necessidades políticas de organização e suas estruturas, as relações que estas geram e os limites de atuação da mesma. Não é um debate, assim, nada fácil. No cotidiano da atuação enfrentamos diariamente as dificuldades de articular as teorias organizativas com essa dinâmica dialética da vida de cada um de nós e das necessidades políticas de movimento. De imediato, o mais comum é se voltar às tradições de que remontam nossas organizações. 

Assim, Lenin surge, para muitos, quase como uma bíblia de como montar um agrupamento preocupado com a superação revolucionária do capital. Citar “O que fazer?” já é quase clichê e não é raro encontrar militantes que saibam de cor os capítulos e as discussões. O problema está justamente em ler os revolucionários como “guias geniais” do trabalho militante. Buscar nas linhas e entrelinhas a perfeição teórica prática para replicar no mundo de hoje. Assim, a discussão se torna sobre qual é a organização que de fato é leninista ou não; qual tem centralismo democratico (como se esse pudesse ser pensado em meios de aplicação ou não aplicação); quem tem as bases teóricas de centralismo corretas; se é centralismo teórico ou não; se a partir do momento que não possui Comitê Central, bureau político, jornal, etc é ou não é mais leninista; e por aí vai uma coleção de formas que parecem ser necessárias de copiar dos bolcheviques para ter validade organizativa. 

Claro que isso acontece não por culpa de quem está ingressando na organização! Como dito anteriormente, a reflexão teórica organizativa surge a todo o momento da militância, a questão é como a organização escolhe lidar com ela de conjunto. Ler os marxistas como fontes mágicas de conhecimento surge da falta de aprofundamento da própria organização nos reais problemas que estão a todo o momento sendo colocados para o conjunto da militância e na prática política cotidiana e a longo prazo. 

Centralismo democrático e princípios leninistas

Permitam-me, portanto, esse parênteses. Como quem escreve esse texto é um convicto trotskista, sei que o que acabo de escrever vai ser utilizado para demonstrar a falácia de que somos antileninistas. É exatamente o contrário. 

A questão que está posta é que hoje, por incentivo das próprias organizações que vêm sofrendo com problemas internos de organização, o estado do debate sobre organização se resume a quem possui o maior purismo teórico pautado nas teses leninistas. Ao nos depararmos, portanto, com o debate dessa forma, também encontramos escondido uma síntese do pensamento de Lênin acerca da organização e do que deve ser um agrupamento revolucionário.

A grande virada teórica e prática que permitiu ao partido Bolchevique ser o fio condutor da revolução de outubro na Rússia não foi um apanhado de princípios imutáveis de organização que estabeleceram a mais perfeita forma de hierarquia. Foi antes, por esforços de Lenin e seus companheiros, a leitura e a atuação na realidade específica que existia na Rússia e combiná-la ao cenário do imperialismo mundial. Assim, quando se formula as bases do centralismo democrático, é necessário que compreendamos seu contexto histórico e a quais necessidades respondia. 

A dicotomia do que é universal e o que é específico inevitavelmente aparece. A inovação do centralismo democrático reside, nesse quadro, na sua própria contradição, que o torna capaz de se adaptar aos cenários específicos. Antes de ser qualquer estrutura partidária pré-determinada, o centralismo democrático como princípio organizativo permite que pensemos as estruturas, e não o contrário, para que estas tenham real capacidade de responder às demandas do tempo presente. Combinando a contradição entre as necessidades de centralizar a atuação e as decisões; e a democracia e o exercício constante de debater o contraditório como forma de conexão com a base, o centralismo democrático é também ele mesmo flexível. 

Há momentos em que será necessário que a direção atue de forma mais centralizada, ou seja, tome decisões rápidas, centralize a atuação política de conjunto e mantenha a unidade de ação. Mas há momentos em que o conjunto da militância deverá debater a fundo questões complexas, compreender suas diferenças e colocar a público as polêmicas presentes na organização. Digo isso pois a famosa frase “Diversidade de pensamento e unidade de atuação” é demasiadamente sintética para explicitar a natureza do que significa organizar-se em torno de centralismo democrático. Em última instância, é entender que na contraditoriedade dos tempos políticos, é necessário certo grau de  democracia e de centralismo, ajustando-se a medida da necessidade e dos balanços que apenas podem ser feitos em coletivo, tal como uma balança que mantenha tanto as necessidades de atuação unitária como de democracia interna e capacidade de sínteses. Equilíbrio na contradição para lidar com a contradição: um exercício dialético para atuação organizada. 

Percebam que isso pouco tem a ver com a existência de determinadas estruturas idênticas ao partido bolchevique! Antes de ler “O que fazer” e buscar replicar cada aspecto do partido de 1917, é necessário fazer as reflexões gerais tal qual fazia Lenin e seus camaradas: analisar as estruturas políticas vigentes, o grau de organização da classe, o grau de organização do movimento socialista, as perspectivas de atuação legalizada ou não, a possibilidade de organizar núcleos que avancem para além da política local e da luta econômica, etc. O exercício que leva ao brilhantismo do centralismo democrático como princípio organizativo é o da análise concreta da situação concreta. 

Dessa mesma reflexão, tal qual fazia Lenin, mas também Marx, Engels, Rosa, Trotsky, e tantos outros revolucionários chegamos ao ponto central: a organização dos comunistas, em sua forma de partido ou coletivos, existe não como um princípio esotérico que se preenche para ganhar a “carteirinha de comunista”. A organização e o passo que se dá ao se organizar reflete justamente o exercício reflexivo de que apenas é possível derrotar as forças do capital e suas estruturas com trabalho coletivo. Portanto, a organização em si também não pode ser um princípio deslocado da realidade, ela existe por uma razão que surge da realidade materialmente determinada e dialeticamente analisada. Nos organizamos porque queremos superar o capital. Para isso existe a organização e sobre isso devemos refletir. 

A busca da perfeição

O grande problema que está em voga é que na busca pela diferenciação das organizações, pelo menos no quesito organizativo, o debate passou a ser qual a organização que está mais perto da perfeição, da idealização de um agrupamento revolucionário. Se separa a questão organizativa do resto dos problemas postos pela realidade para se discutir qual de fato é a organização que mais possui as raízes fincadas em uma suposta estrutura universal de organização comunista. Como disse antes, isso não é gerado por uma confusão dos que estão ingressando nas organizações, mas sim, das próprias organizações que na disputa cotidiana, no ato de autoafirmação permanente, debatem dessa maneira. 

As consequências dessa forma de debater a organização são muitas. A primeira é que ao partirem do princípio de que há um modelo universal a ser seguido, a flexibilidade organizativa é praticamente inexistente e se volta quase que exclusivamente à questão de que pessoas vão ou não ocupar quais graus na hierarquia organizativa. Mais grave ainda, as organizações enfrentam de forma geral, ou seja, em todas as partes, a quase impossibilidade de lidar com casos de assédio, esgotamento físico e mental da militância, ridicularização e rebaixamento pessoal daqueles que ousam apresentar linhas de pensamento divergente, mesmo que dentro das instâncias organizativas. Voltaremos a isso mais a frente.

A origem para esse tipo de debate não é simples. Assim como havia dito, a reflexão organizacional surge quase que de forma natural ao entender que é necessário se organizar. A questão que está presente é a forma como esse debate é colocado pelas próprias organizações que seguem uma tradição teórica muito específica e definida historicamente e tem estado em evidência na juventude que busca uma identidade a qual se filiar. Não tem como dourar a pílula aqui, a tradição que se reivindica como “marxista-leninista” possui em seu DNA problemas históricos para serem resolvidos, problemas que são impossíveis de serem resolvidos a partir dos erros procedimentais de análise dialética que reduz a teoria à mero aparelho de validação das escolhas partidárias. Nessa lógica, a teoria não serve para refletir e guiar a atuação se não validar e disciplinar a ação geral escolhida pela direção. 

Tal tradição, herdeira do partido comunista da URSS profundamente modificado pela burocracia que sustentava Stalin como seu comandante, se fundou nessa prática organizativa. Apenas dessa forma pode “justificar” em termos teóricos ações como a recriminalização do aborto, da vida das pessoas LGBTs, a volta de uma política familiar pautada no patriarcado, para não falar os “vai e vens” da política internacional da III Internacional. Aqui, é importante  perceber que essa tradição teórica seguiu replicando tais problemas ao longo da história pois seguiu replicando o que para ela dava seu status de leninista: um partido/organização extremamente centralizado, auto afirmado em si e em sua direção como únicos donos da verdade e da “ciência imortal do proletariado”, inflexível e formalmente monolítico. Dessa forma, como princípio perfeito, a crítica e autocrítica interna só são possíveis de serem feitas por velhos quadros, estes que já estão tão vinculados à tradição e a defesa irremediável de suas convicções teóricas que impossibilita qualquer exercício reflexivo mais aprofundado com base na realidade que muda e está em movimento. 

 O resultado é a incapacidade dessas organizações conseguirem lidar com uma realidade que cada vez mais se dinamiza e apresenta novas e mais complexas contradições. O machismo, a LGBTfobia, o racismo, a violência interna como prática de “combate a desvios”, tudo se torna extremamente comum. Depois, se naturalizam essas práticas com um ideal de militante esteticamente orientado, performático, como demonstrou Misa em um texto recente publicado em nossa página. 

Assim, a busca da perfeição militante e organizativa transforma o ato de se organizar no ato de ser um servo de uma tradição que é incapaz de produzir novas sínteses. De uma tradição que abandonou o exercício dialético da análise da realidade concreta para abraçar o etapismo cristalizado em fórmulas, quase como leis naturais de desenvolvimento. Em poucas palavras, a miséria de um marxismo tosco criado pela burocracia para justificar suas ações é a razão teórica para uma prática igualmente tosca e inflexível. 

Qual a saída? 

A escala do problema que estamos analisando certamente não é local. Como vimos, parte também de uma série de deturpações do método marxista de organização que levam a sérios desvios organizativos que acabam por quebrar militante atrás de militante. Superar a lógica principista, perfeccionista e performática é então uma tarefa constante de toda  organização que pretende agremiar a juventude para a missão de intervir contra o Capital. 

Assim, antes de buscar auto afirmar-se em todas as oportunidades como a organização que possui as respostas corretas para as contradições do nosso tempo, o essencial é reconhecer que o processo de militância também é recheado de contradições. O que de fato, hoje por hoje, difere no quesito organizativo – para além de questões teóricas, táticas, estratégicas, etc – as organizações políticas é em que grau estão dispostas a enfrentar as contradições sabendo que novas aparecerão no processo coletivo de atuação. 

Não é possível que, para ser militante, uma pessoa deva abdicar de sua vida, pois a única forma de se livrar das contradições de forma imediata é essa! Na busca insana pela performance perfeita, exige-se do militante não a disciplina revolucionária, mas a disciplina absoluta, onde todos os aspectos da vida passam a ser guiados pela organização ou estão vinculados a ela. Ser militante não pode significar condicionar suas relações pessoais, relações amorosas, projetos de vida, aspirações pessoais, expressões da sexualidade, da arte, da cultura e até mesmo da totalidade em que nos relacionamos em sociedade à performance total militante.

A juventude que hoje ingressa no movimento estudantil é uma juventude que grita pelos seus direitos mais básicos de existência e subsistência. Somos a geração que guia a luta pelos direitos das mulheres, das LGBTs, da negritude, das populações marginalizadas; somos a juventude que ingressa na universidade sabendo que para nos mantermos lá teremos que praticar de 3 a 4 jornadas diárias de trabalho; uma juventude que luta pelo acesso à cidade e ao pleno direito à expressão cultural e social. Em suma, somos de uma geração que há anos presencia uma crise econômica e política que não encontra ecos de resolução senão pela necessidade de superar o atual sistema político social e econômico vigente. Exatamente por isso, não nos pode servir uma velharia burocrática que pretende resgatar uma performática bolchevique! 

Necessitamos de organizações com graus de flexibilidade organizacionais que permitam que a dinâmica de movimento contagie e anime sua militância. Se a existência da organização responde-se pela análise da realidade material em que vivemos, também a estrutura pela qual irão se organizar os militantes deve estar a disposição de ser modificada ao interesse dos novos desafios. Nenhuma direção deve se considerar eterna nem dona da verdade, assim como a base não pode ser tratada eternamente como ovelhas carentes de orientação. O exercício do centralismo democrático deve estar precisamente na dialética entre confiança em uma direção que põe às claras as razões de sua existência e a possibilidade constante de fazer acúmulos, balanços e críticas de escolhas em diferentes instâncias com o passar dos acontecimentos e decisões. Em poucas palavras, nenhum militante deve ser acusado de “desvio” por estar questionando e tirando qualquer dúvida! O exercício de ser dirigente não é o constante exercício descer orientações, mas o de buscar a melhor forma de se conectar profundamente com a base ao ponto de, coletivamente, poder ordenar em sínteses as contradições que vão surgindo e abertamente tratar sobre as contradições em coletividade

Encarar as contradições também deve significar que a organização deve reconhecer que a ela nem tudo diz respeito. Uma organização não pode pretender ditar todas as normas de conduta social de um militante, nem pode querer preencher todas as necessidades que a vida apresenta à sua militância. A confusão de que isso é não só possível mas desejável pela busca da perfeição é o que muitas vezes leva a organização querer entrar em instâncias da vida das quais não consegue lidar por completo, como são os casos de assédio, abusos e outras violências. Obviamente, a organização não pode lavar suas mãos e se abster de buscar mecanismos de combate permanentemente em suas fileiras de todos os tipos de opressão que estão presentes na nossa sociedade – por si só manter na organização alguém reconhecidamente abusador é, para não dizer outra coisa, absurdo – mas não cabe à organização a pretensão de ser a fonte de justiça ou de resolução de todos os problemas. Lutar contra o masculinismo, o machismo, a LGBTfobia, o racismo e todas as demais formas de violência que existem na nossa sociedade deve começar antes por reconhecer que a organização não é um espaço livre per si desses problemas! Deve ser um exercício constante de buscar compreender, atuar e reconhecer as contradições, possibilidades e limites que se apresentam. 

A saída que temos, portanto, é abandonar qualquer pretensão à perfeição organizativa e performática! Não somos as estátuas pintadas com toques de inverdade dos velhos bolcheviques, não somos nenhuma idealização de heróis revolucionários. Somos, como todas as pessoas que decidem dedicar à vida à superação do Capital, contraditórios, temos nossas confusões, nossas dificuldades, em especial, necessidades de se formar, de buscar melhorar as condições de nossas vidas, de combater com as medidas que temos as violências que sofremos. Antes de tudo, militar deve ser a nível individual o complemento coletivo – a ferramenta – que nos permita buscar o melhor da vida, não o contrário.  

Assim, a organização deve ter sempre consciência de seu status de ferramenta. Deve ser consciente de sua tarefa localizada na realidade material. E sobretudo deve ter espaços constantes de reflexão, sínteses e reconhecimentos das contradições que se apresentam. A melhor forma de organização não é aquela que tem o mais perto de uma pretensa perfeição, mas sim aquela que não tem medo de reconhecer as contradições e limitações e busca resolvê-las em coletividade, sem exigir a completa abnegação de seus militantes. 


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