Sobre a recente onda de ataques transfóbicos no movimento estudantil potiguar
O movimento estudantil tem de servir como referência às, aos e aes demais estudantes na luta contra a transfobia, e não reproduzir violências que expulsam corpos trans e travestis.
Hoje, o movimento estudantil potiguar passa por uma enorme mudança de perfil, com um aumento notório na quantidade de pessoas trans e travestis ocupando espaço nos DCEs do estado e inclusive na presidência da nova gestão da UEE/RN.
No caso da UFRN, por exemplo, foi apenas nas últimas gestões do DCE que enfim garantiu-se a presença de mulheres negras e indígenas nas coordenações gerais. E foi apenas em 2020 que o Diretório viu pela primeira vez uma travesti negra e de periferia ocupar uma cadeira da entidade, sendo uma militante do movimento Juntos! na cadeira de diversidade sexual e de gênero.
Daí em diante, as duas gestões da Oposição de Esquerda no DCE da UFRN (Juntos!, Correnteza e UJC, e em segundo momento apenas Juntos! e Correnteza) viram o protagonismo de pessoas trans e travestis se impor, com destaque para a apresentação do pleito por cotas para essa comunidade na graduação e pós-graduação frente à reitoria e para o apoio à fundação do coletivo de pessoas trans e travestis da UFRN, tendo a última gestão contado com ao menos 5 pessoas trans/travestis ocupando cadeiras na entidade em diferentes momentos.
Todavia, com o aumento na representação desse setor nas lutas do movimento estudantil potiguar, também cresceu a violência transfóbica perpetrada, em especial contra militantes da oposição de esquerda e no período de disputas eleitorais. Uma das estudantes que foi e segue sendo alvo desses constantes ataques é a Enzy, ex-coordenadora do DCE da UFRN e militante do movimento Juntos! no Rio Grande do Norte, que soma quase uma dezenas de denúncias de transfobia contra militantes do campo majoritário da UNE (Juventudes do PT, do PCdoB e militantes do Levante Popular da Juventude), sem ver qualquer tipo de medida tomada num movimento estudantil cada dia mais nocivo a pessoa trans e travestis.
Desde a reorganização das lutas em defesa do transporte público pós-pandemia, durante o qual os setores da majoritária voltaram a ter alguma atuação na UFRN, no início de 2022, vivencia-se uma rotina de violência direcionada às militantes trans e travestis da universidade. Nesse período, a ex-coordenadora do DCE foi atacada diretamente por uma militante do Levante Popular da Juventude durante uma reunião transmitida pelo youtube, sem qualquer justificativa. Pessoalmente, em momento posterior, o Levante se desculpou ao Juntos! pelo ocorrido.
Já na metade de 2022, a mesma militante do Juntos! participou do Encontro Nacional dos Estudantes de Direito (ENED), em Niterói, onde colocou em todos os espaços quais eram seu nome e pronomes, os quais foram insistentemente desrespeitados pela organização do evento e por militantes do PDT e das tendências internas do PT presentes, sem qualquer tipo de retratação. O evento sobretudo foi marcado pelo capacitismo e transfobia em sua organização, tendo ocorrido diversas cenas de violência contra as Pessoas Com Deficiência que estavam na delegação do Juntos!.
Sequencialmente, nos últimos meses de 2022, durante as eleições da UFRN para o CONUEE/RN, a mesma militante teve mais uma vez seus pronomes e nome desrespeitados incansavelmente, em especial por militantes da UJS girades de outros estados para a eleição, causando uma situação tão violenta que obrigou ela a realizar, durante uma reunião da comissão eleitoral do CONUEE/RN, um pleito público às organizações da majoritária para que centralizassem sua militância e respeitassem minimamente sua dignidade. Ainda assim, após a reunião, seguiu-se o desrespeito à sua transgeneridade, ao seu nome e a seus pronomes por es mesmes militantes que o haviam feito anteriormente, ainda que avisades diversas vezes acerca da situação.
Poucas semanas depois, durante o próprio CONUEE, o qual ocorreu em Mossoró no fim de 2022, mais uma vez foi colocado pela militante em todas os espaços que ela ocupou, com falas extensas e apontamentos caso a caso acerca do que tinha ocorrido, que ela não mais toleraria desrespeito aos seus pronomes, ao seu nome e à sua transgeneridade, nem desrespeito às suas companheiras. Durante o Congresso, todavia, ocorreram mais casos de transfobia des militantes da majoritária, assim como de racismo e misoginia, em especial vindos de um militante específico da UJS, que até o momento não foi afastado.
Após o relatado, na primeira metade de 2023, durante as eleições do DCE da UFRN, mais uma vez, a ex-coordenadora do DCE sofreu com a violência transfóbica da majoritária, quando uma militante do ParaTodos, durante um debate público entre as chapas, desrespeitou seus pronomes, ao que seguiu se justificando e mentiu, afirmando que não a conhecia e por isso havia errado seus pronomes, já que eles não teriam sido colocados no início do debate. A militante em questão esteve presente no Congresso da UEE/RN e ouviu cada um dos pleitos da Enzy, já tendo participado de mesas com ela e a tendo cumprimentado nos dias anteriores. Após o ocorrido, uma militante do Levante Popular da Juventude prestou solidariedade pessoalmente à Enzy, enquanto a chapa da majoritária teve uma reunião individual com o Juntos!, afirmando que soltaria uma nota pública de retratação.
Dias após o ocorrido e sem nenhuma retratação feita, a militante do Juntos! decidiu denunciar o ocorrido nas redes e sofreu mais uma vez ataques de uma outra militante do ParaTodos, com tuítes desrespeitando seus pronomes deliberadamente e acusando-a de uma série de violências que ela não havia cometido. Desde então, os tuítes não foram excluídos, não houve retratação da ParaTodos, a militante não foi afastada e a chapa da majoritária soltou uma nota que não citava em nenhum momento o ocorrido, falando apenas de forma abstrata sobre transfobia em seus stories do instagram.
Além desses casos, também durante a eleição do DCE da UFRN, um militante da UJS foi visto organizando campanha contra a chapa da oposição de esquerda, junto a estudantes que declaravam abertamente suas transfobias: “os eli/dili além de burros são inúteis”, “estão nos chamando de transfóbicos. Parece que incomodei a chapa” e “foda alguém ousar falar que a chapa que fala todes é melhor em alguma coisa”.
Semanas depois do ocorrido, durante a participação da Enzy nas eleições para o CONUNE na UNP, ela sofreu um novo ataque por duas militantes da UJS, uma das quais é dirigente da organização. Após ter seus pronomes mais uma vez desrespeitados e apontar que já havia pedido por respeito incontáveis vezes, a militante foi acusada covardemente de estar sendo agressiva e descabida por reclamar de algo apontado como de menor importância, o qual não daria justificativa para que ela cobrasse algum posicionamento político da organização. Em seguida, a militante foi confrontada diretamente por uma dirigente da UJS, a qual tentou silenciar sua denúncia partindo para cima dela e encostando o nariz em seu rosto, afirmando que ela estaria errada. Assim que cessou o embate, a presidenta da UEE/RN e militante da Kizomba, prestou pessoalmente solidariedade à Enzy e tentou dialogar com a dirigente da UJS sobre o ocorrido.
Nos dias seguintes, mais uma vez foram oferecidas conversas pessoais para resolver a situação com o Juntos!, enquanto nas redes sociais o coordenador de pós-graduação do DCE/UFRN e militante do Fora da Ordem soltava deboches da situação, acusando a Enzy de estar almejando “ganhos pessoais” e acusando suas denúncias de serem puro oportunismo. No grupo do DCE/UFRN com os Centros e Diretórios Acadêmicos, todas as denúncias sobre o caso, realizadas por diversos militantes da oposição de esquerda foram rapidamente sobrepostas por novas mensagens avulsas da gestão do DCE, com a ausência de qualquer tipo de resposta e até mesmo com mais deboche por parte do já citado coordenador do DCE/UFRN.
É importante frisar que esse tipo de prática, de atacar militantes trans e travestis, negres, mulheres, levando-es à flor da pele com ataques pessoais de cunho racista, misógino e transfóbico, não é novidade no movimento estudantil.
Tanto não é novidade que, durante os mesmos dias em que ocorreram esses casos de transfobia, uma militante da regional paulista do Juntos! foi alvo de racismo e misoginia por parte de militantes da UJS na ESALQ (campus da USP em Piracicaba), também durante as eleições para o CONUNE. Esse caso tem o agravante de ocorrer em um campus com histórico de atuação de grupos reacionários, no qual a majoritária buscou se aproximar de discursos da extrema-direita para obter vantagem política. Esse tipo denúncia tem sido registrada por todo o país não porque o cometimento de casos de transfobia, racismo e misoginia são coincidências ou culpa somente de militantes individuais, mas porque representam uma parcela orgânica do modo de atuação de certas organizações, que operam na base de um “vale tudo” pra ganhar delegades e se manter hegemônicas na UNE.
O trabalho do Juntos! Potiguar, por exemplo, é tocado no movimento universitário e secundarista por duas dirigentes negras e não faltam casos de ataques pessoais direcionados a ambas, citando-as nominalmente inclusive, associando-as a estereótipos de agressividade e “mau temperamento”, inclusive tendo ambas sido vítimas de agressões como essas durante as disputas acima mencionadas.
Não à toa, uma das militantes do ParaTodos que foi transfóbica com a Enzy na disputa do DCE da UFRN chegou a afirmar em momento anterior que o Juntos! estava formando uma dirigente secundarista agressiva, uma mulher negra, pois ela estava aprendendo com outra dirigente agressiva, também uma mulher negra.
De fato o movimento Juntos! tem formado nacionalmente dirigentes negras, trans e travestis que não abrem mão de serem respeitadas nos espaços políticos, ainda que sejam constantemente agredidas de forma misógina, racista e transfóbica por militantes da majoritária.
Infelizmente, es protagonistas desses episódios de transfobia, racismo e misoginia seguem nos mesmos espaços do movimento estudantil que suas vítimas, sendo protegides num espaço que, ao invés de livre de opressões, tem sido livre de qualquer constrangimento direcionado aes opressores.
Como resposta, o campo majoritário tem afirmado que a oposição de esquerda, ao fazer denúncias contra transfobia, misoginia e racismo, não sabe lidar com as “opressões estruturais” da sociedade.
Típicos da extrema-direita, essa rotina de episódios transfóbicos tem demonstrado a total incapacidade de certas organizações do campo majoritário em lidar com as violências sofridas pela população trans e travesti e, das demais, em sair da inércia para encaminhar denúncias nos casos em que essas denúncias são contra organizações com quem compartilham entidades. Será que pela unidade de campo vale tudo, a ponto de deixar que denúncias de transfobia caiam no esvaziamento?
Em especial nesse momento, de ascensão das lutas por cotas para pessoas trans e travestis no Rio Grande do Norte, com campanhas reivindicatórias já em curso na UFRN, pela oposição de esquerda, e na UERN, pela Kizomba, o movimento estudantil potiguar deve sobretudo fortalecer suas lideranças transvestigêneres, e não miná-las.
É urgente mudar a forma como esse setor é tratado no ME por todo o país. Não é apenas no RN que estouram denúncias de transfobia, mas pode ser esse estado, o qual elegeu pela primeira vez uma UEE presidida por uma travesti, aquele a transformar o ME em um espaço seguro para pessoas trans e travestis, contanto que intensifique desde já o combate a práticas transfóbicas que têm se disseminado no estado e apenas empobrecem a disputa política.
Nesse sentido, propõe-se ao movimento estudantil potiguar as seguintes recomendações, no intuito de garantir o combate à transfobia, que infelizmente cresce dentro de suas fileiras e se expressa intensamente em seus espaços de disputa:
- Fomentar a criação de coletivos de pessoas trans e travestis em cada universidade em que há atuação do movimento estudantil. Nossa ferramenta principal é, sobretudo, a auto-organização.
- Fomentar a luta pela implementação de cotas para pessoas trans e travestis em todas as universidades públicas do estado, tanto na graduação como na pós-graduação, seguindo o exemplo da UFBA, UFSB e UFABC na graduação e UFRN, UFMT, UFRGS, UNB, UFPR, UFSC, UFF, UFRJ e tantas outras na pós-graduação. Para que sejamos cada vez mais de nós ocupando esses espaços.
- Estabelecer outras formas de identificação das pessoas trans e travestis na disposição de atestados de matrícula, formações de chapa, credenciamentos e votações no movimento estudantil, extinguindo a necessidade de que sejam apresentados documentos com nome morto. O nome social é direito e já passou da hora de acabar com esse momento vexatório.
- Efetivar a apuração e responsabilização das denúncias de transfobia, com participação do movimento trans em sua tomada de decisões, para que possa ser encaminhado o afastamento de militantes que sejam reincidentes em desrespeitar corpos trans e travestis, assim como a penalização de chapas concorrentes que cometam, durante o período de disputas eleitorais estudantis, atos transfóbicos. Não podemos aceitar que vítimas sejam forçadas a conviver com es autores de suas agressões e tampouco que a transfobia seja utilizada como ferramenta eleitoral no movimento estudantil.
- Garantir, nos congressos estudantis (CONUEE, CONEUF, etc), banheiros neutros, assim como banheiros específicos para as pessoas trans e travestis que queiram utilizá-los, e também espaços seguros e confortáveis para que homens trans e pessoas transmasculinas possam retirar seus binders para descansar ao longo do dia. Nossos corpos também demandam acolhimento.
- Garantir cada vez mais iniciativas como a Lista T ou alguma outra forma de isenção de taxas para pessoas trans e travestis nos eventos do movimento estudantil, como política de incentivo para que nossa comunidade ocupe mais e mais esse espaço. A nossa realidade é atravessada por diversos marcadores sociais e, via de regra, por aqueles que mais dificultam nossa sobrevivência.
- Fortalecer campanhas para que as residências estudantis das universidades do estado tenham uma política de permanência que abranja corpos trans, tendo as suas portas abertas à população LGBTQIA+ expulsa de casa. No país que mais mata pessoas trans, é impensável que a universidade não providencie moradia a sues estudantes LGBTQIA+.
- Garantir que existam guarda-roupas solidários nos espaços de congresso e DCEs do movimento estudantil, para que todas as pessoas trans tenham acesso, durante a atividade, a roupas com as quais se sintam confortáveis e possam expressar suas identidades. Se sentir confortável na própria roupa não deveria ser um privilégio.
- Não deixar que a pauta dos direitos trans seja debatida somente por pessoas trans. É preciso que haja mais espaços de conscientização e que a luta por cotas trans seja uma pauta central no movimento estudantil, e não só no movimento trans. Pessoas trans não debatem somente a transgeneridade, e pessoas cis não podem deixar de debatê-la.
- Incluir pronomes nos crachás utilizados, inclusive os de pessoas cis, em espaços de congresso e de eleições, para que todes possam ser respeitades em seus pronomes e para que não se possa usar o suposto desconhecimento como justificativa para cometer repetidos atos de transfobia. Pela normalização da declaração de pronomes, em especial para es noves militantes trans e travestis no movimento estudantil!