“NOVA RAPOSO, NÃO!”: CONTRA O PROJETO PRIVATISTA, AUTORITÁRIO E TECNOCRÁTICO DO GOVERNO TARCÍSIO
Projeto de concessão de rodovias do Governo do Estado ignora as transformações e os moradores do território em prol de um modelo ultrapassado de cidade e de mobilidade
Em abril, veio à tona por meio da imprensa uma iniciativa do Governo do Estado de concessão de rodovias estaduais à iniciativa privada, denominado “Lote Nova Raposo”. O objeto da concessão são 115,3 km de rodovia, que compreende trechos da Raposo Tavares (SP-270) e da Castelo Branco (SP-280), além da interligação de ambas feita pela SP-029 e o trecho que liga Cotia a Embu das Artes. Essas são rodovias importantes para a Região Metropolitana de São Paulo, que conectam vários municípios entre si e à capital e servem de eixo de transporte diário de milhares de pessoas e produtos. Além disso, nos últimos anos, a Raposo Tavares em especial adquiriu um caráter de “avenida urbana”, com a construção de casas, edifícios habitacionais, comércios e empresas, realidade ignorada pelo projeto, que prevê a implantação de novos pedágios e a duplicação de pistas, construção de viadutos e alças de acesso em locais onde hoje estão vivendo e trabalhando milhares pessoas, assim como sobre vegetação e zonas de proteção ambiental.
Projeto caracterizado pelo atraso avança sem participação e contra os moradores
Entre março e abril foram realizadas duas audiências e uma consulta pública, mas o projeto só ganhou amplo conhecimento após a divulgação pela imprensa, quando o processo de “participação pública” já havia ocorrido. Apesar dos limites da participação nessas instâncias formais, que tem servido mais para validar decisões já tomadas, sobretudo no âmbito de um projeto orientado e estruturado segundo uma lógica previamente estabelecida, sequer esse rito o Governo do Estado seguiu com celeridade, queimando as etapas de participação o mais rápido possível para evitar questionamentos da sociedade. Com o edital de concorrência internacional publicado, o Governo espera realizar o leilão em novembro, mesmo após críticas de moradores, ativistas e especialistas.
A principal justificativa do projeto é a diminuição do trânsito, que quem circula nas rodovias sabe que é cruel, sobretudo no trecho Cotia – São Paulo da Raposo Tavares. A aposta na duplicação de vias e implantação de pedágios, entretanto, segue uma lógica rodoviarista de incentivo aos automóveis em detrimento do transporte público de massas e de formas de mobilidade mais sustentáveis, como a bicicleta. Nesse sentido, vai na contramão do que cidades no mundo inteiro tem feito, de incentivar uma transição para meios de transporte mais ecológicos, que diminuam a emissão de gases do efeito estufa e favoreçam integração intermodal, o que poderia ser feito na RT com a implantação de corredores de ônibus e ciclovias, além da linha de metrô que há anos é prometida à população local. Já esse projeto, se implantado, além de não resolver o problema do trânsito vai piorá-lo ainda mais com o passar do tempo, tornar a circulação mais cara e prejudicar a população local com desapropriações e o meio ambiente com mais emissões de gás carbônico.
Moradores, ativistas, coletivos ambientais e especialistas organizados no movimento “Nova Raposo, Não!”, estimam um impacto de mais de 1 milhão de m² de áreas desapropriadas, tendo em vista que em determinados trechos as obras alcançam mais de 30m para cada lado da Raposo Tavares, impactando parques, comunidades, áreas residenciais regularizadas, além de equipamentos públicos como escolas, creches e CCA’s. A Raposo tornou-se nos últimos anos um dos principais eixos de expansão da urbanização da capital, com novos empreendimentos habitacionais e a implantação de empresas, complexos logísticos, shoppings, comércios, academias e etc, acarretando na emergência de novas micro-centralidades que funcionam para o cotidiano das pessoas que vivem no seu entorno. Esse processo ocorreu ao revés do planejamento estatal, cuja medidas de melhoria na circulação e caminhabilidade nesses locais foram ínfimas, gerando inclusive problemas de segurança pública. No momento em que investimentos deveriam ser feitos nesse sentido, o governo se mostra mais uma vez desatento às necessidades dos moradores e operando em prol de um complexo rodoviarista que lucra na exploração de infraestruturas.
Quais são so reais interesses por trás da concessão?
Apesar do caráter rodoviarista e tecnocrático do projeto, que ressoa o de mais atrasado em termos de planejamento urbano e de transportes, ele se conecta a uma lógica global de privatização e financeirização dos serviços e espaços públicos. Os estudos do projeto foram elaborados com a International Finance Corporation (IFC), braço investidor do setor privado do Banco Mundial, que aplica a cartilha neoliberal sobre os governos de países do mundo todo, impactando direitos e bens sociais como educação e saúde e contribuindo para o desmantelo desses sistemas e sua entrega ao capital – na maioria das vezes estrangeiro.
As concessões de rodovias, entretanto, não são um fato novo na economia neoliberal que tem dominado nos países nas últimas décadas. Elas foram iniciadas nos anos 1990, primeiro a nível federal, em 1993, e depois nos estados, começando em São Paulo em 1997. Fazem parte de uma agenda mais ampla de privatizações iniciada no Governo Fernando Collor e que se amplia no Governo FHC, e continua a ser levada a cabo pelos governos do PT, passando inclusive por processos de modernização, cujo marco é a legislação das Parcerias Público-Privadas.
O lote Nova Raposo corresponde a 5ª fase do Programa de Concessões Rodoviárias de SP e o modelo que estrutura o projeto é totalmente orientado para a rentabilidade da empresa concessionária que, neste caso, obtém o direito de explorar as rodovias por 30 anos. Desde o início, as concessões também são marcadas por um forte caráter monopolista, já que 3 grupos concentram quase 80% dos trechos concedidos no estado: Grupo CCR, Arteris S/A (Espanhol) e AB Concessões (Italiano). Os dois primeiros, vale citar, possuem capital aberto na Bolsa, o que evidencia a atratividade do setor para o grande capital. A implantação de pedágios em todos os trechos das rodovias, inclusive em áreas urbanas e de intenso fluxo cotidiano dos moradores (como o Cotia – São Paulo) é o principal meio da concessionária obter receitas, que devem ser usadas para realizar investimentos na infraestrutura das rodovias e obter lucros para os acionistas.
Mas na realidade, os verdadeiros lucros são obtidos na captura de rendas oriundas do monopólio que essas concessionárias exercem sobre as infraestruturas, o que é feito de maneira cada vez mais sofisticada. Para formalizar a concessão, as empresas criam Sociedades de Propósito Específico (SPE), uma “nova empresa” que é responsável apenas por aquela concessão e que pode ter ações negociadas na bolsa de valores, além de emitir títulos financeiros (debêntures) para captação de recursos no mercado de capitais para financiar os projetos. Em muitos casos, o investidor é o próprio BNDES, que destina recursos públicos a essas empresas privadas pelo caráter essencial das infraestruturas que elas administram, sem que elas sequer precisem pagar impostos sobre os lucros obtidos em algumas modalidades dessas transações. As tarifas dos pedágios (recebíveis da empresa) também podem ser securitizadas e transformadas em produtos financeiros, por meio dos quais os ganhos previstos são negociados e tornam-se disponibilidade imediata de caixa. Em síntese, por meio de todo um terreno regulatório e financeiro sofisticado, preparado pelo Estado sob influência das agências internacionais e do próprio empresariado, infraestruturas públicas essenciais estão sendo financeirizadas pro empresas privadas que drenam, inclusive, os fundos públicos – desmontando argumentos que evocam a economia do Estado ao se isentar da administração direta dessas infraestruturas1.
Esse é um exemplo de como cada vez mais as cidades tem sido “planejadas” de forma fragmentária, por órgãos do poder público responsáveis por privatizações e parcerias público-privadas que ignoram completamente a participação social e as necessidades dos territórios. Esses projetos, que se dão em nome de uma suposta eficiência, são orientados apenas pela lógica de negócios, formulando contratos financeiramente atrativos para as empresas privadas que vão operar serviços e gerir infraestruturas apenas caso consigam lucrar com eles. O ônus recai sobre os cidadãos que contribuem com esse lucro, seja diretamente, pagando tarifas maiores por serviços cada vez piores, ou indiretamente, com a transferência de voluptuosos fundos públicos para essas empresas.
Qual o papel da universidade e dos movimento estudantil?
O movimento “Nova Raposo, Não!”, que surge a partir dos moradores da região tem sido o principal pólo de resistência contra o projeto. O movimento foi ganhando força a partir do abaixo assinado virtual e, em pouco tempo, conseguiu uma primeira audiência com a Deputada Estadual Mônica Seixas. Também conseguiu uma segunda audiência pública na Câmara de Cotia, sobre os impactos para esta cidade, a partir das informações que eles mesmos levantaram, e no mês de Junho fez um ato na Raposo, que reuniu cerca de 300 pessoas, na altura do km 18 da rodovia. Agora, é necessário avançar ainda mais na conscientização das comunidades e mobilização das pessoas para barrar a concessão.
Este é apenas mais um caso particular de políticas neoliberais que mercantilizam o transporte, como fazem em outras esferas da vida. O projeto privatista do governador do Estado de São Paulo não é segredo, muito pelo contrário: recentemente ele também privatizou a SABESP, que há anos fornecia um serviço de qualidade à população e agora tem um futuro incerto com o capital privado. Acoplado a este projeto, está um avanço da violência em diversas camadas, seja com a militarização das escolas ou o ataque pela polícia militar de comunidades periféricas. Desta forma, Tarcísio se estabelece como uma figura de direita autoritária e efetiva em vender a máquina pública e atropelar tanto as vontades quanto as necessidades das pessoas de São Paulo.
Enquanto setor mais dinâmico da universidade, o movimento estudantil deve alavancar os debates e fortalecer às críticas a essas medidas do governo privatista e autoritário de Tarcísio, convocando outros setores da universidade a saírem de sua apatia. A USP continuamente se demonstra silenciosa sobre o avanço do projeto de direita, se manifestando somente quando é afetada diretamente, como quando houve ameaça à verba destinada às universidades estaduais e à FAPESP. Nós enxergamos a totalidade do que está acontecendo e sabemos que um avanço na educação primária ou secundária, nas empresas estatais, nas periferias ou no transporte é somente um prelúdio até que esse mesmo desmonte chegue à universidade.
É por isso que precisamos unificar as lutas, defendendo o ensino público e de qualidade, com condições de garantir permanência a todes, ao mesmo tempo que tornamos a USP uma ferramenta de combate ao Tarcísio e um pólo de resistência às várias medidas da direita que acometem o Brasil. A Raposo Tavares se estende a poucos quilômetros do campus da Cidade Universitária, e diverses alunes vêm das comunidades que utilizam a RT todos os dias. Assim, é necessário que somemos a esta luta que combate diretamente, nos bairros, mais um caso de privatização e atropelamento pelo Governo por meio deste projeto de urbanização desconectado das necessidades dos moradores da região da rodovia e que busca maximizar o lucro de poucos.
O combate do Tarcísio e seu avanço violento e privatista sobre o Estado de São Paulo será, talvez, a maior tarefa do movimento estudantil no próximo período. Para além desta visão máxima, precisamos também estar inseridos profundamente nas diversas batalhas específicas que aparecerão inevitavelmente conforme o interesse do capital é priorizado sobre à população.
CHEGA DA MESMA VELHA POLÍTICA DE PRIVATIZAÇÃO!
“NOVA” RAPOSO NÃO!
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- Sobre as concessões de rodovias federais e estaduais, ver PRADO, João Augusto Pereira do. Usos do território, poder do estado e concessão de rodovias: um estudo da ação da empresa Arteris SA em São Paulo. 2019. E sobre a financeirização das infraestruturas no Brasi, ver RUFINO, Beatriz. Privatização e financeirização de infraestruturas no Brasil: agentes e estratégias rentistas no pós-crise mundial de 2008. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 2021. ↩︎