A REVOLUÇÃO IMAGINADA: DO NEPAL À FICÇÃO, O DESPERTAR POLÍTICO DA GERAÇÃO Z
As histórias que amamos de One Piece á Jogos Vorazes não são só entretenimento. Para a Geração Z no Nepal, elas se tornaram a linguagem da resistência. Símbolos de animes e distopias viraram emblemas de luta contra um futuro bloqueado.
Antes de mudar o mundo, é preciso imaginá-lo diferente. E a ficção nos dá essa coragem.
Que histórias inspiram você?
Em setembro de 2025, as ruas de Katmandu, no Nepal, foram tomadas por uma fúria jovem. O estopim, aparentemente trivial para um observador externo, foi a decisão do governo de proibir 26 das maiores plataformas de mídia social do mundo. Contudo, como detalhado na Revista Movimento, a revolta da Geração Z nepalesa não era sobre aplicativos; era sobre a falência de um futuro. A proibição foi apenas a faísca que incendiou um barril de pólvora de frustrações estruturais: desemprego juvenil massivo, um modelo econômico dependente da exportação de seus próprios cidadãos e a percepção de uma elite política corrupta e indiferente. O levante no Nepal é um microcosmo de um fenômeno global, revelando não apenas a potência política da Geração Z, mas também as fontes surpreendentes de onde sua linguagem de protesto é extraída. Antes de tomar as ruas, a revolução começa na imaginação, e para esta geração, a ficção é uma de suas mais poderosas incubadoras.
O artigo da Revista Movimento descreve um cenário desolador: uma geração criada com a promessa de democracia e mobilidade que se depara com “uma economia e uma ordem política que mantém as portas fechadas para ela”. Com o desemprego juvenil em 20,82% e mais de 800.000 autorizações de trabalho no exterior emitidas em um ano para um país de 30 milhões de habitantes, o modelo de desenvolvimento nepalês se mostra quebrado. A resposta do governo à crescente insatisfação não foi transformar as condições materiais, mas sim “policiar a visibilidade”, tentando silenciar a praça pública digital onde a dignidade e a dissidência ainda podiam ser afirmadas. É precisamente nesse vácuo, quando as narrativas oficiais de progresso se esgotam, que a ficção emerge como um laboratório para futuros alternativos e um arsenal para a resistência.
A Ficção como Gramática da Dissidência
Toda revolução precisa de uma linguagem, de um vocabulário que possa transformar o sofrimento individual em uma consciência coletiva. Historicamente, a literatura cumpriu esse papel. O “Contrato Social” de Rousseau deu base filosófica à Revolução Francesa, enquanto “A Cabana do Pai Tomás” de Harriet Beecher Stowe galvanizou o movimento abolicionista. A Geração Z, como aponta Youth Ki Awaaz, herdou esse legado, mas o opera em uma paisagem radicalmente transformada pela internet.
Para esta geração “nascida digital”, a literatura não se limita ao impresso; ela é difundida, remixada e armazenada em pixels. Clássicos distópicos como “1984” de George Orwell ou “O Conto da Aia” de Margaret Atwood são impulsionados por reviews no TikTok, tornando-se relevantes para debates contemporâneos sobre vigilância e autonomia corporal. A Geração Z não lê passivamente; ela sampleia, transforma em memes e hashtags, criando o que o teórico cultural Stuart Hall chamaria de “novas articulações” de significado. As redes sociais, que o governo nepalês tentou banir, não são apenas “ferramentas de organização”, mas o próprio terreno onde a imaginação política coletiva é forjada e compartilhada.
Essa transformação de ficção em ação política se manifesta de diversas formas. A saga Jogos Vorazes, com sua narrativa de luta contra um regime opressor e desigualdade extrema, fornece um roteiro para a rebelião juvenil contra elites indiferentes e a espetacularização da violência. O mangá One Piece, ao apresentar o desafio a um governo mundial corrupto em busca de liberdade, viu seu símbolo a bandeira pirata tornar-se um emblema global de desafio e solidariedade nas ruas de diversos países. Clássicos como 1984 e O Conto da Aia, com seus temas de vigilância estatal, autoritarismo e controle corporal, oferecem a linguagem necessária para criticar a erosão das liberdades civis e digitais. Até mesmo a máscara do Coringa, símbolo de raiva contra a corrupção e a desigualdade sistêmica, tornou-se um ícone visual de anarquia e descontentamento com a ordem estabelecida em protestos ao redor do mundo.
Da Bandeira Pirata à Realidade Nepalesa
Nenhum exemplo ilustra melhor essa dinâmica do que a apropriação da bandeira pirata do mangá One Piece. Conforme relatado pela revista Fortune, o emblema da tripulação de Monkey D. Luffy, que na ficção desafia um corrupto Governo Mundial, tornou-se um símbolo de resistência para jovens em protestos na Indonésia, Filipinas, França e, crucialmente, no Nepal.
“Quando manifestantes adotam esta bandeira, eles não estão simplesmente importando uma estética da cultura pop, mas estão se baseando em uma narrativa já legível para milhões. A busca inabalável de Luffy pela liberdade contra probabilidades impossíveis ressoa com os jovens que navegam em ambientes políticos marcados por corrupção, desigualdade e excesso autoritário.”
O poder do símbolo reside em sua ambiguidade e alcance global. Ele não pertence a um partido político, o que o torna difícil de reprimir. Para um jovem em Katmandu, ver a mesma bandeira sendo usada por um manifestante em Jacarta cria um senso de solidariedade instantânea, forjada não em ideologia compartilhada, mas em uma referência cultural comum. No Nepal, a bandeira foi combinada com slogans como “A Geração Z não ficará em silêncio” e “Nosso futuro não está à venda”, adaptando um símbolo global à sua luta local e específica contra o desemprego e a precariedade.
Essa fusão entre o imaginário ficcional e a ação política direta é a marca registrada do ativismo da Geração Z. As distopias que consumiram na adolescência, como Jogos Vorazes e Divergente, não foram mero escapismo. Foram, como sugere um estudo de Utah State University, uma forma de “motivar a Geração Z a se preocupar com o meio ambiente, a segurança das pessoas e o bem-estar de todo o planeta”. Essas histórias forneceram um ensaio geral, um espaço seguro para praticar a resistência e reconhecer os padrões de opressão no mundo real.
A Revolução Precisa de Histórias
O levante da Geração Z no Nepal é um poderoso lembrete de que as revoluções materiais são, muitas vezes, precedidas por revoluções da imaginação. Ao tentar desligar a internet, o governo nepalês não atacou apenas uma tecnologia, mas o espaço vital onde uma geração sem futuro em casa estava aprendendo a imaginar e a exigir um outro mundo. As ruas de Katmandu se tornaram a arena de responsabilização, como conclui o artigo da Revista Movimento, porque a praça pública digital já fervilhava com uma gramática de dissidência extraída de animes, mangás, romances distópicos e memes.
Para entender os movimentos que definirão esta era, não basta analisar os indicadores econômicos e as manobras políticas. É preciso olhar para as histórias que a Geração Z consome, compartilha e reinventa. A ficção, em suas mais variadas formas, oferece a essa juventude o que seus governos lhes negam: a centelha da possibilidade, a crença de que um modelo quebrado pode ser substituído e a coragem para lutar por um futuro que, por enquanto, só existe nas páginas de uma história ou nos frames de uma animação. A revolução deles será televisionada, tuitada e, acima de tudo, imaginada.