A guerra contra as mulheres – um texto em defesa dos nossos direitos!
Nathalie Drummond debate as questões da guerra que estão travando contra as mulheres e a necessidade da defesa dos direitos conquistados e dos que estão por vir.
* Nathalie Drumond
“A barbárie dos estupros coletivos cometidos por um bando no Rio de Janeiro expõe um País em guerra com as mulheres. Em apenas três anos, triplicou o número de casos, o que coloca o Brasil em situação tão inaceitável quanto a da Índia”, assim começava a reportagem da Revista IstoÉ do dia 05 de março. Chamou-me à atenção justamente pelo fato de ela comparar o Brasil à Índia no que diz respeito à violência de gênero. Todos devem se lembrar da jovem que morreu no final do ano passado após ser vítima de um estupro coletivo em um ônibus. Recentemente, no Rio de Janeiro um bando estuprou cerca de 10 mulheres, uma delas foi uma jovem turista norte-americana.
A reportagem ainda nos informa que, em 2012, no Brasil, a cada 24 horas 10 mulheres foram estupradas por desconhecidos. O número de registros de casos deste tipo aumentou 162% entre 2009 e 2012. Sem contar os casos onde o agressor era conhecido da vítima. Em Bangladesh, país vizinho da Índia, 30% das mulheres com vida sexual ativa iniciaram suas relações de forma forçada – dados da mesma reportagem. Aos casos de estupro coletivo noticiados recentemente no Brasil, podemos somar o praticado pela banda baiana New Hit e o das cinco mulheres estupradas numa festa em Queimadas (PB), no qual duas delas foram mortas.
O caso Gerald Thomas e Nicole Bahls
Poucos dias depois da publicação desta reportagem, pipoca pelo Facebook a imagem de Gerald Thomas tentando enfiar a mão por debaixo do vestido da repórter do programa Pânico, Nicole Bahls. Em seguida, outra reportagem muito interessante é publicada “A cultura do estupro gritando – e ninguém ouve” – por Nádia Lapa na Carta Capital – a qual aborda o ocorrido com Nicole e problematiza a cultura de violência à mulher tão presente em nossa sociedade, mas quase imperceptível para a maioria.
O que estas duas reportagens têm a ver? Afinal, para muitos a passada de mão de G. Thomas pode não ter passado de brincadeirinha, muito diferente dos casos de estupro coletivo. Óbvio, há que se reconhecer de antemão, que a gravidade dos atos praticados é absolutamente distinta. Mas será que o argumento que absolve a passadinha de mão, no final das contas, não é o mesmo que autoriza muitos homens a violentarem sexualmente outras mulheres?
Gerald Thomas justifica seu ato em seu blog da seguinte forma:
“Vem uma menina, de (praticamente) bunda de fora, salto alto de “fuck me”, seios a mostra, dentro de um contexto chamado PANICO e eu (que não deixo me intimidar e gosto desse pessoal) entro no jogo e viro as cartas”.
E ainda completa:
“Eu, Gerald Thomas, faço a olho nu, na frente dos fotógrafos, das câmeras, das luzes, o que esse bando de carecas e pseudo moralistas gostaria de estar fazendo atrás de portas fechadas, com as luzes apagadas!”.
O diretor de teatro justifica seu ato, afinal, foi a Nicole que provocou. Ela usava bunda de fora e salto alto do tipo “coma-me”. Como uma mulher que usa roupas curtas e provocantes pode não querer ser apalpada? Sem precisar perguntar, apenas pela roupa que Nicole usava, Thomas pode concluir que a repórter adoraria ter sua vulva tocada por ele. Afinal, os homens tem uma capacidade imensa que se antecipar às vontades das mulheres, é quase um dom divino, não é mesmo? Aqui não se trata de nenhum poder divino, é muito mais simples que isso, Gerald fez o que ELE queria, meter a mão lá. Não importava se ELA consentiria, pois o diretor concluiu que os sapatos e o vestido de Nicole era um aviso de que ele deveria e poderia tocá-la. Estranho? Não há nada de estranho nesta conclusão de Gerald, este tipo de opinião é a mesma que justifica a maioria dos casos de violência sexual. A vontade do homem prevalece sobre a da mulher. O caso exemplifica muito bem o porquê, Nicole é um objeto tanto quanto seus sapatos e seu vestido, pois suas vontades – aparentemente inanimadas – são facilmente confundíveis com a cor e com a quantidade de centímetros de seu vestido. A mulher não passa de um objeto cujo papel é realizar as vontades sexuais dos homens, não importa sua vontade e ponto.
A mulher-samambaia, a mulher-pêra, a mulher peito e bunda: a mulher objeto
O mais comum nos casos de violência sexual é a culpabilização da vítima. Estava sozinha andando na rua, usava roupas provocantes. Ou ainda justifica-se o ato do macho ao naturalizar seus instintos sexuais. É obra da natureza, os homens têm impulsos sexuais incontroláveis. Muitos dos estupradores alegam não terem praticado o estupro não porque o ato sexual não ocorreu, mas porque para eles estavam praticando algo natural, realizando sua vontade sexual, e na maioria das vezes parecia a eles que as mulheres estavam até gostando. Parecia. Mas nunca ninguém perguntou a elas se elas queriam. Não é mesmo, Gerald?
No caso dos estupros ocorridos recentemente no Rio de Janeiro, o caso só começou a ser investigado após a turista norte-americana ter feito a denúncia. Antes dela, outros casos semelhantes haviam sido comunicados à Delegacia da Mulher de Niterói, mas o inquérito não fora aberto. Segundo a reportagem da IstoÉ, apenas 36,4% dos boletins de ocorrência relatando casos de estupro tornam-se inquéritos policiais. É muito comum, nas próprias delegacias de atendimento à mulher, as vítimas serem tratadas como corresponsáveis pelo crime.
O fato de a mulher não ter direito de opinar se tem vontade ou não de praticar tal ato, ou ainda o fato de ser tratada como mero objeto sob comando da ação masculina, tem explicações com raízes muito profundas em nossa sociedade. A principal delas é uma estrutura patriarcal milenar que dita ainda como nossa sociedade se organiza. As relações de poder desiguais entre homens e mulheres são a origem de todo este problema. Atualmente ele se complexifica, multiplica e se reproduz de diversas formas, infinitamente imbricado com o próprio desenvolvimento da sociedade capitalista e funcional a ela. Seja no trabalho, no ambiente doméstico, na rua, dentro dos espaços da militância política, as mulheres matam um leão por dia para serem respeitadas por suas vontades e pela maneira em que elas escolheram para viver.
O machismo muito presente, onde ele aparentemente não poderia existir
Havia decidido escrever um texto sobre ambas as reportagens quando dois fatos reforçaram a ideia e se transformaram em combustível para esta decisão. Colegas militantes do movimento estudantil da UFU e da USP foram agredidas nesta semana por homens de outras organizações políticas em atividades do movimento. Estive à frente do DCE da USP por algumas gestões, não era incomum nos fóruns as mulheres serem desrespeitadas. Assobios e galanteios quando pegavam o microfone para falar, falta de respeito e pouca atenção quando mulheres opinavam nas reuniões, assédio moral, até mesmo agressões físicas. Estranho? Nada de estranho, as relações de poder desiguais entre homens e mulheres também existem dentro dos movimentos sociais e das organizações políticas. O machismo nestas estruturas precisa também ser combatido, através de bons debates e de medidas pedagógicas.
Mas um fato em especial chamou à minha atenção. Uma das organizações, cujo militante agrediu uma de minhas companheiras, tem utilizado da violência de gênero sistematicamente há anos dentro do movimento estudantil da USP. Não é um fato que acomete um ou outro militante de forma isolada, mas uma prática corriqueira utilizada de maneira sistemática e programada há muito tempo.
O PCO, organização da qual eu estou falando, é uma daqueles grupelhos que existem dentro do movimento estudantil. Para alguns pode parecer só um bando de malucos. Em minha opinião não há nada de caótico e espontâneo na ação destes militantes. Acredito que eles têm como método de sua organização aquilo que a esquerda condenou após a derrota do Stalinismo, o método de “os fins justificam os meios”. Assim, para derrotar aqueles que eles elegeram como inimigos políticos eles recorrem a todo tipo de prática. Dessa forma, assim como Stálin e o fascismo mais direitoso, eles agridem, perseguem, caluniam, coagem os militantes que não coadunam com suas opiniões lunáticas e extravagantes.
Felizmente, o movimento da USP tem uma ampla tradição no combate ao machismo e na luta pela afirmação das mulheres como protagonistas políticas. Ano após ano, o movimento forma mulheres dirigentes. São muitas as militantes à frente dos centros acadêmicos, do DCE e da diversidade saudável de organizações políticas. Infelizmente, isso lhes torna alvo da ação do PCO. Acredito que o PCO adote como conduta consciente a violência (em todas as suas formas) contra estas mulheres. Sua tática é derrotar as organizações adversárias, seja numa assembleia, num ato ou num debate, através da coação e até mesmo da agressão a estas militantes e dirigentes.
Imediatamente o caso recordou-me outro acontecimento. Lá pelos idos de 2004 ou 2005 eu acompanhava o desenrolar de mais uma ordem de despejo à ocupação urbana Anita Garibaldi, em Guarulhos. Minha memória lembra vagamente dos detalhes, mas me recordo que as mulheres eram muito bem organizadas nesta ocupação. Uma delas, importante liderança, vinha sofrendo sistematicamente agressões da parte de seu ex-marido e também líder do movimento. Numa certa ocasião, a mulher apanhou a ponto de não conseguir comparecer a uma reunião importante. A decisão do movimento, por considerar que a prática do agressor era prejudicial à mulher e também ao movimento, foi de expulsá-lo da ocupação. A mulher, então, pôde seguir cumprindo seu importante papel na organização desta luta.
As e os militantes, portanto, precisam lutar para extirpar a violência contra a mulher dentro dos movimentos sociais e de suas próprias organizações. Ainda mais quando tal prática é utilizada como método corriqueiro de uma dada organização. Tais práticas impedem que avancemos efetivamente para a conquista de uma sociedade onde todas e todos sejam socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres. E, portanto, estão na contramão das lutas sociais, corroborando para a manutenção da ordem vigente.
De forma nenhuma, esta luta deve ser encarada como uma questão individual. Uma questão entre homem e mulher onde supostamente a subjetividade impera. A violência contra a mulher é um tema onde devemos sim meter a colher. A Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos (Viena, 1993) reconheceu formalmente a violência contra as mulheres como uma violação aos direitos humanos. A violência contra a mulher é considerada pela OEA como uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres que conduziram à dominação e à discriminação contra as mulheres pelos homens e que impedem o pleno avanço das mulheres. Não podemos permitir que os violadores de direitos sigam impunes.
Abaixo a cultura do estupro e toda a forma de violência contra a mulher!
Para terminar indico a leitura de uma crônica de Xico Sá, também publicada esta semana, chamada “O tesão de não tocar a mulher adormecida”. Uma bonita manifestação em defesa de nossos direitos.
* Nathalie Drumond é do Grupo de Trabalho Nacional do Juntos, do Coletivo Nacional de Mulheres do PSOL e faz mestrado em geografia pela UFF