Juntas na Luta contra o Estatuto do Nascituro
Essa é a história de Maria. Ela tem 14 anos. Ela é Maria, mas poderia ser Janaína, Roberta ou Priscila. Ela poderia ser sua irmã, sua mãe, sua melhor amiga. Poderia ser até mesmo você. Maria foi estuprada.
* Raquel Matos
Essa é a história de Maria. Ela tem 14 anos. Ela é Maria, mas poderia ser Janaína, Roberta ou Priscila. Ela poderia ser sua irmã, sua mãe, sua melhor amiga. Poderia ser até mesmo você. Maria foi estuprada. O agressor era seu conhecido. A violência gerou uma gravidez. Ela ficou desesperada. Procurou ajuda. Descobriu que nada poderia ser feito. Maria foi obrigada a ter um filho. A gestação foi de risco, ela era jovem demais. Sua mãe disse ao doutor: por favor, salve minha filha. Mas o médico opção não tinha. “Desculpe senhora, é a lei. Em uma situação como essa, sou obrigado a salvar o bebê”. E o filho gerado pelo estupro valeu mais que a vida de Maria. O estuprador virou pai. Paga pensão alimentícia e agora está na justiça requerendo a guarda da filha. Deu até seu sobrenome.
Maria não existe. Ou talvez não existia. Se aprovado, o projeto de lei conhecido como Estatuto do Nascituro será responsável por incontáveis casos como o da nossa Maria. Proposto em 2005, este projeto dá ao feto – ou embrião – mais direitos que a um ser humano nascido. Isso tudo porque a redação do projeto deixa a mulher sempre em segundo plano, diante de uma “potencial” nova vida, que ninguém garante que assim será. Algumas situações para ilustrar: no caso de um parto com riscos, por exemplo, naquelas tristes situações em que hoje a família escolhe entre salvar a vida da mulher ou da criança, esta opção não mais existirá e o médico não poderá sequer cogitar optar por salvar a mãe. Outra situação absurda que poderá se tornar real com a aprovação do projeto: se você, por exemplo, esbarrar acidentalmente em uma mulher grávida, se ela cair e, se em decorrência desta queda ela perder o feto, você e a mulher poderão ser presas! A lei ainda tem muitas outras nuances perversas. Mulheres doentes, por exemplo, que precisam fazer tratamento com alguma medicação que possa salvar sua vida, mas que afete a gestação, serão privadas do tratamento, mesmo correndo risco de morte. Estes são apenas alguns exemplos do verdadeiro absurdo que querem nos impor com este projeto, contrariando direitos adquiridos e convenções internacionais.
Além disso, o estatuto também representará uma ameaça ao direito aos nossos corpos. O uso do DIU ou da pílula do dia seguinte poderão ser proibidos, o que é uma afronta a nossos direitos reprodutivos. Se hoje o aborto em casos de estupro, risco à gestante ou feto anencéfalo é permitido (como resultado de muita luta!), nem isso será mais. Até mesmo pesquisas com células-tronco embrionárias, que representam um avanço na medicina moderna, estão correndo o risco de proibição.
Mas o pior dos absurdos é no caso de estupro. E não falamos apenas da impossibilidade de abortar, o que já é descabido, por obrigar a mulher que engravidar em decorrência de um estupro a gerar o filho da sua violência. O projeto propõe ainda a “Bolsa Estupro”, que na prática significa que o agressor, quando identificado, será obrigado a pagar uma pensão alimentícia até os 18 anos da criança. Ora, uma vez que ele terá obrigações de pai, não terá direitos também? Não poderá solicitar visitas ou até mesmo a guarda da criança? Não seria tudo isso um caso de violência tripla contra a mulher? O abuso, a gravidez indesejada e, ainda por cima, a obrigação de conviver com o estuprador. Tudo isso imposto pelo Estado.
Infelizmente os governantes parecem que não entenderam o clamor das ruas. Mesmo em um momento histórico como esse que acabamos de viver, onde dois milhões de pessoas foram às ruas para exigir mudanças reais na sociedade, seguem na contramão dos anseios populares. O Estado, que é laico, permite que sua bancada religiosa e fundamentalista siga atacando nossos direitos, com projetos como a Cura Gay, por exemplo. Com a eleição da primeira presidente mulher, acreditamos que avançaríamos. Na campanha da então candidata à presidente, o tema do aborto foi muito recorrente. Mas aí já tivemos um sinal de como seria o seu governo. Dilma, reunida com os evangélicos, prometeu que não tocaria neste tema durante o seu mandato. E assim o fez. Negociou com os religiosos este e outros direitos nossos em troca de uma pretensa “governabilidade”.
Junho nos deixou uma importante lição. A luta muda a vida. E juntos somos mais fortes. Talvez o Estatuto do Nascituro seja tão absurdo que nem seja aprovado. Talvez. Mas a pressão conservadora é muito grande. Precisamos estar unidas e atentas para barrar este absurdo. Além disso, essa é também uma grande oportunidade para nós, feministas, estarmos juntas, nos reconhecermos enquanto movimento de mulheres, dialogarmos pra além de nós mesmas. Por isso, fazemos um chamado a todas as lutadoras, independe de coletivos, cores e organizações. Vamos aproveitar a luta contra o Estatuto do Nascituro para avançarmos em outras lutas. Vamos aproveitar para trazer à tona novamente o debate sobre o direito aos nossos corpos e abrir o diálogo na sociedade sobre a legalização do aborto. Vamos avançar no combate ao machismo e reduzir os absurdos números da violência contra a mulher, onde a cada uma hora e meia uma de nós é assassinada de forma violenta. Vamos juntas, por que só a luta muda a vida e a luta das mulheres muda o mundo!
* Raquel Matos é militante do Juntas!