A Nenê deu o recado: é tempo de luta e igualdade na Avenida
Em tempos de mercantilização do samba enredo e das escolas de samba, a Nenê de Vila Matilde cantou diferente, cantou por igualdade.
Tatiane Ribeiro*
Nesse ano, o Anhembi brilhou mais que o normal. E não foram os adereços, as inovações tecnológicas ou as novas técnicas que as escolas de samba usaram. Foi a Nenê de Vila Matilde que voltou às raízes do samba e levou pra avenida um samba-enredo libertador. De cara, já foi emocionante ver negros cantando, com lágrimas nos olhos, “Quando a igualdade não havia/ A revolta foi a via contra a força da opressão/ Uma voz se ergueu, outras mais então/ Movimento que surgia, salve o povo da Bahia/ Sei que a rebeldia que trago no peito/ Tenho o direito de eternizar/ O canto libertário que se espalha pelo ar/ Lutar, acreditar, sonhar, ser mais Brasil/ Criar a pátria amada mãe gentil”. Cantar a liberdade, assim, em tempos de muito dinheiro e pouca luta nas escolas de samba e nas avenidas (e em tempos de patrocinador pedindo tema “sob medida”), é uma ousadia daquelas que faz lembrar os tempos em que o samba cantava a tristeza do preto do morro, as dores de quem não tem dinheiro pra nada, mas que bota mais água no feijão pra fazer render pra todo mundo.
Tudo isso já seria suficiente para fazer a Nenê conquistar corações e mentes nesse carnaval. Mas ela foi além. As alas representam todas as lutas das minorias. Me surpreendi, por exemplo, com a ala que formava a bandeira LGBT assim, sambando (literalmente) na cara de uma sociedade que ainda tem Malafaias… Ou a linda homenagem à luta das mulheres, que tanto fizeram e seguem nas ruas, exigindo seus direitos. Mas sem dúvidas os pontos altos foram os debates que fazemos todos os dias e que eles sintetizaram em um desfile: distribuição de renda, reforma agrária, direito à educação, entre outros temas entraram na avenida. E deixaram a sua marca.
O começo do samba-enredo já é a mostra de que a Nenê não esqueceu suas raízes: “Chegou, Chegou no templo do samba/ O gueto da gente, a mais querida/ No coração matildense, Nenê é minha águia, minha vida”. É sempre preciso lembrar: a Nenê é da Zona Leste de São Paulo, uma das áreas com mais problemas estruturais da cidade.
A Nenê começou falando da Revolta dos Búzios, na Bahia, feita por negros por mais direitos sociais. E foi caminhando pelas lutas, pelos direitos, por mais justiça social. A Nenê começou sua apresentação na Bahia, mas foi até o Chile com os estudantes, até a Argentina, na luta feminista, até a Espanha, com os indignados, ou mesmo até o mundo árabe, bebendo das águas da Primavera Árabe (que já volta a trazer flores).
Talvez, dentro dos padrões da Liga Independente das Escolas de Samba, a Nenê de Vila Matilde não tenha 10 em todas os quesitos. Mas, em tempos de marketeiro no lugar de carnavalesco, de Globelezas ao invés das belezas todas das comunidades, de sub-celebridade rainha de bateria (e mulheres lutadoras dos barracões só atrás do espetáculo), a Nenê foi a escola que trouxe beleza pra avenida. E tem nota máxima naquilo que mais deveria importar: no uso do samba pra instigar o desejo de um mundo diferente.
Pra quem não viu, vale a pena assistir!
Da revolta dos búzios a atualidade. Nenê canta a igualdade
Chegou, Chegou no templo do samba
O gueto da gente, a mais querida
No coração matildense, Nenê é minha águia, minha vida
Chegou, Chegou no templo do samba
O gueto da gente, a mais querida
No coração matildense, Nenê é minha águia, minha vida
Quando a igualdade não havia
A revolta foi a via contra a força da opressão
Uma voz se ergueu, outras mais então
Movimento que surgia, salve o povo da Bahia
Sei que a rebeldia que trago no peito
Tenho o direito de eternizar
O canto libertário que se espalha pelo ar
Lutar, acreditar, sonhar, ser mais Brasil
Criar a pátria amada mãe gentil
Há nos búzios a mensagem de cada irmão
No quilombo novos ares, libertação
Em canudos Conselheiro e a sua fé
Cabanagem no Pará, na Nenê samba no pé
Há nos búzios a mensagem de cada irmão
No quilombo novos ares, libertação
Em canudos Conselheiro e a sua fé
Cabanagem no Pará, na Nenê samba no pé
Vai no baticum do Olodum no pelourinho
Um só coração, um só caminho
Canto a igualdade, levo a união
Venço toda a discriminação
Sonhei que a terra é do agricultor
Cidadão encontrou o abrigo do lar
Eu ví a força unificando a luta sindical
Mulheres defendendo um ideal
De volta ao seu lugar, a zona leste incendeia
O anhembí vai levantar, a minha vila tem sangue na veia
*Tatiane Ribeiro é jornalista e militante do Juntos! nas Universidades