Sobre Black Bloc, a vanguarda e o lugar do povo nas manifestações pós-junho
Nathalie Drumond, do GTN do Juntos!, faz um debate sobre a vanguarda que se formou com os levantes de junho.
* Nathalie Drumond
O que é vanguarda. E algumas críticas.
As grandes manifestações que ocorrem no país estão abrindo imensas oportunidades. Confiantes nas possibilidades de obterem avanços políticos, muitas pessoas lançam-se no ativismo. A partir de junho o número daqueles que dedicam uma fração de seu tempo à luta política e social é cada vez maior. Esta parcela da população, que reserva parte de sua rotina à política, seja indo aos atos, participando de discussões ou colaborando de alguma forma mesmo pela internet, costuma-se chamar de vanguarda. Este setor cumpre um papel muito importante, pois entre os grandes levantes de massas são responsáveis por manter acesa a chama da luta social, e são sempre os primeiros a demonstrar que lutar vale a pena. É bom destacar que a vanguarda não necessariamente é composta por um mesmo grupo de indivíduos. Exemplificando, no Rio de Janeiro, em 2011, a vanguarda da luta popular estava representada pelos bombeiros que faziam uma grande grave. Também no Rio, atualmente, a vanguarda das mobilizações são os profissionais da educação municipal, que há semanas fazem uma greve massiva, com muito apoio dos cariocas. A depender do estágio de mobilização e do nível de organização de cada setor da população, ocupam o lugar de vanguarda distintas frações do movimento de massas.
Após junho a vanguarda brasileira multiplicou-se, a ela incorporaram-se centenas de novos ativistas. Atualmente, entre esta vanguarda há um debate bastante aceso: como fazer para que as transformações sociais em nosso país se aprofundem?
Há um tipo de resposta que se manifesta de distintas maneiras, mas que tem atraído muito a atenção dos jovens: acreditar que a ação de uma vanguarda será suficiente para o enfrentamento e a derrota dos representantes do poder. De forma mais clara, esta ideia se manifesta quando a repetição dos atos torna-se mais importante que fazer atos muito grandes e bastante representativos; quando quebrar símbolos da ordem como bancos e imagens sacras tem mais valor que convencer a população da legitimidade de nossas ideias; quando ocupar uma casa de poder torna-se um fim e não um meio.
Sendo assim, queremos tomar como exemplo a prática Black Bloc que tem sido amplamente divulgada nos atos e pela mídia. Sobre esta tática nosso julgamento é diferente do que faz a grande mídia. Não reproduzimos um discurso falso-moralista que tenta imputar aos manifestantes a fama de violentos e vândalos. Sabemos que quem detém o controle da violência é o próprio Estado, através da polícia, do Exército, de seus serviços de inteligência. Sabemos que a ação violenta dos manifestantes é infinitamente inferior à capacidade de ação violenta do Estado. Mas no caso deste texto não queremos discutir quem é mais violento que quem. Mas se o uso da violência por parte dos manifestantes nos fará alcançar nossos objetivos. Ou ainda se a ação isolada de um grupo de vanguarda nos permitirá alcançar vitórias e grandes avanços na luta para que o povo detenha o controle da política.
De antemão afirmamos que uma vanguarda isolada, mesmo quando esta se organiza para atacar de forma violenta os símbolos do poder, não poderá conquistar grandes mudanças, muito menos alcançar o poder em nome do povo. Explicaremos o porquê.
Uma manifestação é como uma queda de braço, um dos lados terá condições de defender suas reivindicações de acordo com sua força acumulada. No caso dos manifestantes, a força do seu braço é nutrida pelo apoio da população. Quanto mais gente favorável às nossas causas, quanto mais gente lutando em favor de nossos ideais, mais fácil dobrar o braço daqueles que estão do lado dos governantes. A maioria da população é composta por gente que nunca pôde participar de uma reunião política, que talvez nunca tenha ido a um ato, que parte significativa das informações que recebe é filtrada pela grande mídia. Sendo assim, nossa principal arma é o mérito das nossas ideias, a capacidade que elas têm de dialogar com as principais necessidades do povo e a nossa capacidade de disputar o nível de consciência da maioria da população, organizando-a. Em suma, a consciência do povo avança à medida que ele se lança para lutar por suas necessidades. Dessa forma, a principal tarefa da vanguarda é convocar o povo à mobilização, através da capacidade de dialogar com seus anseios.
Um exemplo hipotético, mas real. Todo ano a tarifa do transporte público aumenta, mas a qualidade do transporte continua péssima. A população ano após ano fica indignada. Muitos reclamam pelo facebook, apoiam as correntes que por ele circulam. Muitos descontam até mesmo quebrando alguns trens ou causando algum distúrbio nas estações mais lotadas. Há muito ódio social, mas nada muda. No entanto, alguns usuários do transporte público com alguma experiência política insistem em convocar a população para se mobilizar. Organizam reuniões nas escolas e universidades, constroem pequenos panfletos e tentam acessar a população convencendo-os da necessidade de sair pras ruas. Marcam alguns atos. Os atos começam pequenos, mas são importantes para demonstrar que existe gente lutando pelo interesse de todos, mas o poder público nada faz. Os atos seguintes são um pouco mais cheios, a população cada vez mais compreende a justeza desta causa e se solidariza com quem sai à rua. Mas ainda são algumas centenas se manifestando. Num determinado momento, o poder público, que se recusa a negociar, decide dissuadir os manifestantes com a força policial. A população se indigna e aumenta sua solidariedade aos manifestantes. O povo percebe que quanto mais gente na rua, maiores as chances dos governantes cederem. Os atos crescem. Se no começo a população acreditava que sua ação individual poderia resolver o problema, ou se eles davam alguma confiança aos representantes do poder público, neste momento percebe-se que a força do povo é estar unido na rua e que o poder público merece cada vez menos confiança.
A importante lição das jornadas de junho sobre o papel da vanguarda.
Esta é a grande lição de junho de 2013. Antes, nós lutávamos por nossas causas legítimas. Mas era muito difícil dobrar os governantes e impor-lhes derrotas. A situação política mudou quando milhões foram pras ruas e os donos do poder foram obrigados a ceder. Esta nova vanguarda não pode esquecer esta lição. Sempre houve na história pequenos grupos lutando por causas justas, mas a vitória em relação a elas não veio pela insistência. A vitória tornou-se possível quando conseguimos atrair a maioria da população para nosso lado. No exemplo acima, o papel da vanguarda foi de convencer mais e mais gente a participar desta mobilização. A vanguarda colaborou para o avanço da mobilização da população, instigando sua politização e sua própria organização.
A partir deste exemplo, avaliamos que a tática Black Bloc e muitas ações de uma pequena vanguarda vão na contramão disso, chegando ao ponto de representarem uma barreira ao aumento da atividade política das massas. Muitos atos se resumem ao enfrentamento com a polícia e neles as reivindicações são um pretexto, não um objetivo. As manifestações para alguns são como a prática de um esporte radical, os quais negam as principais formas de diálogo com a população.
Novamente um exemplo hipotético, há uma manifestação dos profissionais da educação que reúne inúmeros trabalhadores e trabalhadoras, chegam a ser milhares. Dentre estes, existem muitos jovens, mas também gente de mais idade. Todos se encontram numa via com poucas rotas de fuga. Daí em certo momento os Black Bloc decidem iniciar seus ataques. A polícia responde com muita violência, no entanto, torna-se alvo desta violência todos os milhares de trabalhadores que não contam com condições adequadas para se proteger da força policial, muito menos correr dela. E alguns terminam feridos, presos e todos os outros muito assustados. O ocorrido faz com que muitos trabalhadores repensem a possibilidade de retornar na próxima manifestação, enfraquecendo a participação nos atos.
O que nós estamos discutindo aqui, mais a fundo, é que as vitórias ou as grandes transformações que esperamos dependerão da participação decidida da ampla maioria do povo. Sendo assim, qualquer ação de uma vanguarda isolada que ignore o nível de consciência da população e sua capacidade de responder a determinados eventos, que é medida pelo seu nível de organização, está fadada ao fracasso. Sem dúvida, tais ações podem significar uma via para extravasar todo o ódio social concentrado numa parcela da juventude, sem dúvida ações violentas significarão certos danos ao poder público e à propriedade privada. Mas estas ações isoladas e muitas vezes violentas têm a capacidade de apresentar respostas ao problema? Elas em si não mudam nada. E pior que isso, elas podem ser a justificativa que as classes dominantes necessitavam para inibir sistematicamente a presença das massas em nossas manifestações, seja pela propaganda de que nelas só têm vândalos, seja pela ação violenta da polícia. Se tais ações dão argumentos para que povo não dê um passo à frente na sua mobilização, elas na verdade estão na contramão das lutas. Elas não têm nada de radical, mas se transformam neste momento num freio para as lutas sociais.
O papel da jovem vanguarda brasileira: vincular-se às massas.
E por que elas não são capazes de transformar? Enumeramos alguns dos principais argumentos. A) Não atraem o povo para as manifestações; B) Podem, pelo contrário, acirrar o medo que o povo tem de ir pras ruas; C) A população politiza-se à medida que se mobiliza, que se depara frente a frente com os problemas e percebe que cabe a si próprio mudar o estado de coisas. Na ausência do povo nestas ações isoladas, perde-se a oportunidade de politizar e fazer avançar o nível de consciência das massas; D) Uma vanguarda não substitui as massas na tarefa de derrotar o poder instituído. Ou povo toma pra si a condução da transformação social ou o poder de uma elite econômica será substituído (se for) por uma elite política, composta por sujeitos instruídos, mas igualmente distante dos interesses da maioria; E) Coloca em risco a segurança daqueles que vão à rua manifestar-se. Uma pessoa que tem pouca experiência em atividades políticas numa dessas manifestações é ferida ou presa, ela repensará muito se deve voltar em outro ato. Quando isto se multiplica em dezenas, as perdas são grandes para o movimento de massas. E nós nos resumimos à mesma vanguarda de sempre.
Nós defendemos uma revolução popular como caminho para a construção de uma sociedade completamente diferente. Não haverá transformação alguma se o povo não for o principal protagonista desta luta. As grandes transformações das quais esperamos ocorrer em médio prazo em nosso país só serão possíveis se esta nova vanguarda que surgiu em junho tire uma lição importante. Nada tem de glorioso em fazer parte de um seleto grupo de esclarecidos, o verdadeiro mérito de sua atividade política demonstra-se quando suas ações são capazes de arrastar dezenas de outros para a luta social. Revolucionário não é aquele que coleciona vidraças quebradas e ideias radicais, porque isso não lhe aproxima da nova sociedade que idealizamos. Revolucionário é aquele que faz das suas ações de hoje tijolo para a construção desta nova sociedade. A edificação de outro mundo necessário dependerá da capacidade desta nova vanguarda inspirar pelo exemplo e convencer através de suas ideias dezenas de milhares. Isto sim nos colocará mais perto de parir o mundo que tanto lutamos. Portanto, parafraseando Florestan Fernandes, ou os jovens se identificam com o destino do seu povo, com ele sofrendo a mesma luta, ou se dissociam do seu povo, e nesse caso, serão aliados daqueles que exploram o povo.
*Nathalie Drummond é geógrafa e faz parte do Grupo de Trabalho Nacional do Juntos!