O 7 de setembro em Brasília e a necessária desmilitarização da Polícia
Desmilitarizar a polícia é o primeiro passo para se pensar em uma segurança verdadeiramente pública e de qualidade. Os cursos de formação de policiais devem valorizar e enfatizar a educação em Direitos Humanos. Não queremos uma polícia preparada para a guerra, mas sim uma polícia preparada para promover a paz e a igualdade.
Tony Gigliotti Bezerra*
As ações repressivas da PM no dia 7 de setembro reacenderam o debate sobre a desmilitarização da polícia. E meio às manifestações contra os gastos da copa e a corrupção, a polícia militar do Distrito Federal deu mais uma demonstração de agressividade e completo despreparo para lidar com a população. Diante de uma passeata majoritariamente pacífica, que marchava em direção ao estádio Mané Garrincha, os militares agiram com excesso e abuso de poder. Na internet circulou um vídeo que chocou a todos: o capitão do Batalhão de Choque da PM, Bruno, espirra spray pimenta no rosto de um cinegrafista, muito embora ele não tenha ultrapassado o cordão de isolamento imposto pela própria polícia. A vítima pergunta ao militar porque havia sido atacado e recebe uma resposta que desafia frontalmente o Estado democrático de direito: “Por eu quis.”
Um agente de segurança deveria ser treinado e remunerado para cumprir a lei e não a sua vontade. A discricionariedade do poder policial não pode ser usada como pretexto para os abusos de poder. Infelizmente, a atuação do capitão Bruno é tão reprovável quanto rotineira. A polícia militar é treinada para a guerra e não para lidar com a população. Para entender a situação, é necessário relembrar a história da polícia militar no Brasil. E, neste sentido, a primeira pergunta que se faz é: por que, no Brasil, o policiamento de rua é feito por militares e não por civis?
A resposta para esta pergunta remonta ao período da ditadura militar. Antes do regime militar, o policiamento era feito, em grande medida, pelas guardas civis metropolitanas e municipais. Algo bastante natural e alinhado com o que ocorre na imensa maioria dos países democráticos: polícia militar para cuidar de assuntos militares e polícia civil para cuidar de assuntos civis. A ditadura imposta a partir de 1964 representou uma ruptura da democracia e início de um período de repressão e autoritarismo, sob o pretexto de uma suposta ameaça comunista.
Os militares, com o afã de tudo dominar, promoveram em 1969, enquanto governo, o desmantelamento das guardas civis municipais. Ao invadir todos os âmbitos da vida social, o militares não poderiam deixar de fora o policiamento de rua, que passou a ser feito exclusivamente pelos militares.
Vale lembrar que as polícias militares estaduais que se formaram, a partir do século XIX, como exércitos regionais, preparados para ajudar o Exército em caso de guerra, suprindo a fragilidade das forças armadas do Brasil. A consequência disso é que a PM é uma corporação extremamente hierarquizada e disciplinada, preparada para uma guerra, mas que atua, acidentalmente, na segurança da comunidade. O termo militar, é oriundo do latim “militare”, que quer dizer “soldado, homem da guerra, guerreiro, combatente de guerra, refere-se àquele que guerreia, ou seja, os militares são totalmente voltados para a guerra (…). A formação do policial é antítese da formação do militar, uma vez que o militar é treinado para matar e o policial deve ser formado para educar, para civilizar, como agente do direito que é. O policial é um profissional do Direito, tanto quanto o juiz, o advogado, o promotor de justiça, jamais um profissional da guerra. O dever do policial é prevenir e reprimir, não o cidadão, mas sim o crime. O militar tem a arma e a força como recurso primordial, enquanto o policial tem a arma e o uso da força como o último recurso a ser utilizado.” (AMARAL, 2003:47)
O que mais impressiona é que, mesmo após o fim da ditadura, os militares continuaram encarregados do policiamento de rua. Com o advento da Constituição da 1988, as guardas civis voltaram a se organizar. A elas foi atribuída, no entanto, apenas a função de proteger os bens, serviços e instalações municipais. Isso significa que, apesar de o processo de redemocratização do Brasil ter se iniciado na década de 80, ele ainda não foi concluído. Os militares continuam no comando de áreas altamente estratégicas da política brasileira, entre elas o policiamento comunitário, as atividades de salvamento, feita pelo bombeiros, que são militares, e o comando do controle aéreo também é realizado por militares.
A polícia militar não é somente um resquício do período ditatorial, mas também um entrave que impede o avanço da democracia no Brasil. Cabe lembrar que a redemocratização do Brasil é um processo falho e incompleto. Aqueles que eram ministros do STF durante a ditadura continuaram o sendo após a “redemocratização”; os crimes da ditadura, como tortura e desaparecimento forçado, nunca foram punidos; a polícia militar, que fazia a ronda policial durante a ditadura, continuou com esta prerrogativa sob a “Constituição Cidadã”; a própria constituição de 1988 é fruto de uma emenda à constituição da ditadura, de 1967.
Desmilitarizar a polícia é o primeiro passo para se pensar em uma segurança verdadeiramente pública e de qualidade. Ela representa a continuidade do processo de redemocratização do Brasil, que se iniciou na década de 1980, mas ainda está longe de terminar. Os cursos de formação de policiais devem valorizar e enfatizar a educação em Direitos Humanos. Não queremos uma polícia preparada para a guerra, mas sim uma polícia preparada para promover a paz e a igualdade. O que se quer é uma polícia preocupada com o fazer comunitário e capacitada para dialogar com as pessoas, ao mesmo tempo em que busca soluções para a gestão e a resolução dos conflitos sociais e individuais. Este é melhor caminho para assegurar que ações autoritárias como as do capitão Bruno nunca voltem a se repetir.
*Tony Gigliotti Bezerra, militante do Juntos DF e do PSOL
Nota da edição: O Comitê pela Desmilitarização da Polícia e da Política do Distrito Federal divulgou o indiciamento do capitão Bruno por crime. Leia.