Sobre o céu de Punta e o inferno do racismo.
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Sobre o céu de Punta e o inferno do racismo.

Pensar que estamos em 2014, quase 2015, e as pessoas ainda estão emitindo preconceitos acobertados pela falsa ideia de “liberdade de opinião” é algo que me causa um enorme cansaço. Por Winnie Bueno

Winnie Bueno 30 dez 2014, 22:02

 

Por *Winnie Bueno

Confesso que eu levei muito mais tempo para escrever sobre isso do que eu costumo levar. Muito mais tempo para começar a escrever sobre isso. Simplesmente pelo fato de que eu estou cansada de ter que escrever sobre racismo. Porque cada vez que eu escrevo aqui no site do Juntos sobre racismo é porque o racismo se materializou, de novo, em algum lugar do mundo. E isso doí. Pensar que estamos em 2014, quase 2015, e as pessoas ainda estão emitindo preconceitos acobertados pela falsa ideia de “liberdade de opinião” é algo que me causa um enorme cansaço.

Quase não escrevi. Quase me reservei o direito de não escrever sobre esse assunto devido o meu cansaço, devido tantas vezes que eu expressei meus doloridos todos sobre o racismo e o preconceito de cor. Mas a minha avó, essa mulher incrível que não consegue digitar um texto e postar em um blog me disse o seguinte:

-“ O Winnie tu escreve sobre isso. Tem que escrever. Tem que escrever porque se não ‘eles’ ficam achando que a gente engole tudo o que nos dizem, só porque tá na Zero Hora…e não pode ser assim, a gente não pode mais aceitar essas coisas. Tu vai lá e escreve”

Então, pela indignação da minha avó, que é uma mulher negra de 86 anos que nunca colocou os pés em Punta del Leste, resolvi superar meu cansaço e as dores nas costas que o racismo vem me causando e escrever para o Paulo Santanna. Eis aqui:

Sr. Paulo Sant’ana:

Li sua coluna exaltando as belezas de Punta del Leste, lugar que não conheço e não tenho muita curiosidade de conhecer porque eu gosto de espaços democráticos. Ainda assim admito que, pelo o que vejo em fotos, me parece uma cidade muito bonita mesmo, arquitetônica e geograficamente falando. Eu não entendo muito de construção de texto, mas o pouco que aprendi nas aulas de redação do Professor André, todo o texto tem uma linearidade, coesão, vai seguindo uma linha até chegar em um conclusão, que pode ser surpreendente ou não. Quando essa conclusão é surpreendente o interlocutor não deixa dúvidas ao seu leitor que tudo que ele leu até ali é o inverso do que ele pretende concluir.  Se não é assim, o texto segue um caminho lógico até o seu fecho. O caminho lógico que o seu texto desenvolve, sr. Paulo Sant’ana, desvela uma única conclusão possível: Punta é maravilhosa. Punta é incrível. Maravilhosa e incrível por sua estrutura e mais inacreditavelmente maravilhosa porque é um lugar livre de população negra. Um lugar onde houve uma segregação racial que o sr classifca como tranquila e pacifíca. Veja bem caro sr, talvez o local privilegiado que hoje ocupa, de ser basicamente um estandarte permanente da RBS, não permita que o senhor compreenda que nenhuma segregação é feita de forma pacífica, para o segregado esse processo sempre é violento, traumatizante, violador. O senhor, do alto da redação da Zero Hora, talvez não tenham memória de quão dolorosos foram as tentativas de segregação aqui em nosso estado. Minha vó, que hoje tem 86 anos, ainda conta com os olhos marejados um episódio em que desceu de um navio no porto de Pelotas, a convite de uma amiga, e que desistiu de passear pela cidade, pois na época, na doce Princesa do Sul, brancos andavam em uma calçada, negros andavam em outra. Para a minha vó, que sofreu diretamente essa segregação, nada havia de pacífico, nada havia de costumeiro, era só mais uma manifestação do racismo.

Após a leitura da sua coluna também tive a oportunidade de ler seus pedidos de desculpas, carregados de um autoritarismo do local de fala, que muito pouco serve para nós, negros, que continuamos sendo tolhidos e impedidos de estar em determinados lugares. Quando o senhor desloca sua fala para aqueles que “conhecem a sua trajetória”, posiciona-se com a arrogância que lhe é peculiar e conhecida, pois admite que todos aqueles e aquelas que te leem são conhecedores da sua história. E porque seriam? Porque seriam se, visto o teor do que colocas nessa crônica e em tantas outras, nem mesmo o senhor é conhecedor da sua própria história?

O racismo senhor Paulo Sant’anna fecha portas, o racismo impede crianças negras de terem uma educação plena, o racismo se consolida quando o senhor, um (de) formador de opinão, utiliza sua coluna para, de forma tão irresponsável, reproduzir a maior das mazelas da nossa humanidade: a ideia de higienização dos espaços a partir da eliminação da população negra.

Lembre-se disso senhor, lembre-se que “ o dinheiro tira um homem da miséria mas não pode arranca-lo da favela”. Mais do que isso, lembre-se da história, lembre-se que no fim os capitães do mato também tombaram.

O céu de Punta é belo? Pode ser. Mas não é mais belo que os pés pretos correndo descalços, sem limites, nas areias do Lami.

*Winnie Bueno, estudante de Direito da UFPel e militante do Juntos! Negros e Negras


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