Justiça para Kathlen: é preciso acabar com o genocídio da população negra
Segundo o Instituto Fogo Cruzado, nos últimos 5 anos, 15 grávidas foram baleadas no Rio de Janeiro.
Kathlen Romeu, 24, almejava alçar voos cada vez mais altos: sonhava em construir sua família e mudar-se da favela por medo da violência. Saíra da comunidade do Lins não havia muito tempo, mas quando retornou para visitar a avó, foi alvejada. No quarto mês de gestação, cortaram-lhe as asas, impediram-na de sonhar, de maternar. Uma bala dita perdida, cujo alojamento tem características muito específicas: um corpo preto, que observa, todos os dias, a “política de segurança pública” baseada na violência fazer vítimas fatais.
No último país das Américas a abolir a escravidão, o racismo estrutural é parte das relações de dominação, pois legitima para o Estado que há vidas que valem menos e a das mulheres negras atinge o topo da pirâmide quando o sistema também se atualiza nas suas formas de genocídio. As senzalas modernas, reiteradas por Angela Davis, vão desde os postos de trabalho mais baixos – os empregos insalubres, os direitos trabalhistas ínfimos e não cumpridos, o desemprego como exército reserva – até o feminicídio contra os corpos negros crescendo em mais de 50%, enquanto diminui contra as mulheres brancas. Isso nos faz refletir qual o local das mulheres negras na sociedade, mas também qual o local do que carregam no ventre. Se suas vidas não valem nada, o que vale a geração posterior?
A cultura racista brasileira é construída em cima do estupro de mulheres escravizadas pois representava a reafirmação do domínio econômico do proprietário, assim como a necessidade da reprodução de pessoas negras para que seus filhos e filhas fossem escravizados como mais força de trabalho. O local da criança negra sempre foi a mão de obra barata e sem força para reagir às violências físicas. Hoje a mão do estado tira o direito à vida das crianças pretas faveladas por conta da facilidade do não questionamento histórico criado em que a normalidade é a morte. Então, se existem vidas que valem menos, também existem vidas que nem merecem nascer, como o filho que Kathlen carregava. Segundo o Instituto Fogo Cruzado, nos últimos 5 anos, 15 grávidas foram baleadas no Rio de Janeiro. Além do caso da Kathlen, outras setes mulheres não resistiram aos ferimentos e morreram, dos 10 bebês que foram baleados só um sobreviveu.
É uma tragédia que acontece todos os dias nas periferias, as ações dos policiais são totalmente invasivas e fatais a queima roupa, no meio desse caos e guerra muitas vidas já foram ceifadas por causa da política de morte da própria polícia militar que mergulha na contradição de proteção aos ricaços e extermínio aos mais pobres. Uma experiência salgada, amarga, baseada em buscar sobrevida em um Estado construído sob a lógica da morte. Kathlen se soma ao mar de corpos cravejados de Ágatha, Marielle, João Pedro, Davi Fiuza, Viviane Soares e tantos outros, que também foram vítimas de uma polícia feita para matar. Todos representam o luto e a luta contra o colonialismo e o capitalismo brasileiro, que por ter raízes coloniais, tratou de readequar-se: trocou o ferro que compunham os grilhões pelo aço que constituem as balas destinadas à caixa torácica dos jovens negros neste país.
Prova dessa adequação é o episódio em que a marca de roupas Farm, que Kathlen era funcionária, lançou o seu código de vendedora para desconto em compras na loja com a justificativa de reverter o dinheiro para a família da jovem, porém o que seria destinado era apenas a comissão de vendas que todas as funcionárias têm direito. A marca estava disposta a colocar uma mulher negra para trabalhar e gerar lucros para a empresa mesmo depois de morta. Se o capitalismo representa a exploração dos corpos pretos mesmo depois de executados, em oposição a isso, o próprio povo se organiza em luta. Ontem o Juntos! esteve presente no ato por justiça que ocorreu no Lins, Zona Norte do Rio, convocado por movimentos de favelas e que contou com a participação de moradores e lideranças da comunidade e movimentos sociais.
Da força do levante negro que ocupou as ruas do mundo inteiro há 1 ano por justiça à George Floyd, ao país que luta diariamente para que Marielle Franco seja o símbolo do enfrentamento ao racismo: nossa luta é internacional contra a estrutura, por justiça à Kathlen e todas as mulheres negras que tem suas vidas tiradas pelas mãos do estado. Em meio a guerra instalada contra nós, o movimento feminista e antirracista é a nova condição das mulheres: anticapitalistas em construção de um mundo radicalmente diferente em que sejamos – pela primeira vez desde o surgimento inicial do racismo – livres.