O Progressismo na América Latina e nosso programa para o futuro
Entender até onde foram as experiências dos últimos anos e quais seus limites é fundamental para pensarmos a nossa estratégia de enfrentamento à extrema direita no Brasil
O que é o progressismo? Como foi sua construção na América Latina? Que conclusões podemos tirar das últimas três décadas onde essa experiência tomou uma onda por todo continente? Essas são perguntas importantes a se responder em um momento que com a necessidade imediata de enfrentamento ao bolsonarismo no Brasil a esquerda também precisa definir os rumos que vai tomar e suas perspectivas para o futuro. Para isso, entender o passado não é uma tarefa menor.
A noção do progressismo enquanto conceito tem sido utilizada nacionalmente como quase uma antítese ao que é a política de extrema-direita aplicada atualmente no Brasil. Junto a isso, uma certa reivindicação dessas experiências do passado também é comum – especialmente por meio do próprio lulismo.
Mas afinal, o que é o progressismo? Existe alguma forma de definir o que significa esse termo na realidade brasileira ou mesmo internacional? Existe de fato um caminho em comum que representa a unidade de todos àqueles contrários ao bolsonarismo e ele pode encontrar uma política em comum para o atual cenário no país? Tentaremos responder essas questões.
O que é o progressismo?
A noção do progressismo vem ganhando terreno desde a queda do Muro de Berlim e o avanço do neoliberalismo em boa parte do mundo. As diversas vozes e movimentos descontentes às políticas de ajustes antipopulares e sem um modelo alternativo a se referenciar foram buscando formas de reorganizar o enfrentamento aos setores da burguesia, que no poder aplicavam uma política econômica e social baseada no aumento da exploração da classe trabalhadora, privatizações e repressão aos movimentos populares.
Na América Latina, em especial, a crise e a impopularidade do neoliberalismo mais explícito levaram a diversas revoltas importantes que marcam o fim dos anos 90 e começo dos anos 2000, que permitiram a afirmação de novos governos que propunham um discurso mais crítico e social. Se inicia a onda progressista na América Latina, com a primeira experiência nesse sentido – e a mais avançada – com as eleições de Hugo Chávez na Venezuela.
Desde então, em boa parte da América do Sul são eleitos presidentes que se consideram “progressistas”. Lula no Brasil, Mujica no Uruguai, Kirchner na Argentina, Correa no Equador e Evo na Bolívia são exemplos importantes. Esses governos não seguiam necessariamente a mesma política, enquanto a Venezuela ampliava por exemplo a democracia participativa e tomava medidas de reformas importantes no país como a construção de uma nova Constituição, outros, como o Brasil, foram numa direção contrária, fazendo poucas alterações no regime político nacional.
Segundo Fabio Luís Barbosa dos Santos, esses governos em sua maioria surgiram na prática como uma saída dentro do sistema econômico-social que pudesse “frear, desde a periferia, o movimento em direção à barbárie que caracterizava o capitalismo contemporâneo”. Eles foram marcados por serem projetos de mudança que aceitaram os parâmetros de ordem que já haviam herdado e buscavam negociar, nos melhores termos possíveis dentro do sistema, tanto a posição de seu país na esfera internacional quanto a posição dos excluídos socialmente que os elegeram nas próprias sociedades nacionais.
Isso significou que foram governos que apesar de terem um discurso de diferenciação e reformas importantes que reduziram a barbárie social – como os programas de redistribuição de renda (como o Bolsa Família), que aconteceram na maior parte desses países – nunca se propuseram a romper com os marcos da política burguesa. Nisso a construção de uma economia baseada no extrativismo e na exportação de bens primários seguiu na ordem do dia – em alguns países, como o Brasil, seguido de uma desindustrialização. Poucas movimentações foram feitas de forma que pudessem objetivamente ferir de alguma forma tanto a burguesia nacional quanto internacional e em alguns casos os próprios governos eram compostos diretamente com representantes tradicionais da burguesia no país.
Com a crise internacional em 2008 e consequentemente a baixa do preço das commodities (produtos que servem como matéria prima), o modelo econômico proposto por esses governos começa a ter dificuldades em conseguir se sustentar. A possibilidade de manter políticas sociais sem mudar o status quo do funcionamento desse sistema se torna cada vez mais distante. Isso faz com que as próprias gestões progressistas aplicassem mais abertamente uma política de ajustes em benefício do capital e diminuíssem as reformas sociais de serviam de contramedida.
Ou seja, a ideia de progressismo marcou no continente um momento de crítica ao neoliberalismo puro sangue sem conseguir – ou se propor a – realmente encontrar um modelo alternativo de sociedade. Ao se manter nos marcos do capitalismo e em certa medida do próprio neoliberalismo fez com que seus limites fossem bem estabelecidos e que a própria burguesia pudesse contar com seus representantes como possíveis gestores do sistema capitalista de forma mais estável que seus antecessores. Explicitou-se, então, com a crise econômica internacional até onde seria possível esse modelo e como era necessária à própria esquerda voltar a refletir com modelo político-econômico e social que rompessem com os marcos que o progressismo como fenômeno optou por aderir.
O que podemos tirar da experiência progressista Latino Americana?
Com a crise da onda progressista na América Latina, diversas dessas experiências foram derrotadas nas urnas ou por meio de golpes. Dilma sofreu um golpe parlamentar em 2016 pelos seus próprios aliados burgueses. No Equador, o sucessor de Correia se voltou à direita e, mais recentemente um candidato burguês foi eleito no país, o partido de Mujica perdeu as eleições depois de 15 anos no Uruguai. Outras experiências foram interrompidas e depois retomadas, como no caso da Argentina, onde Macri foi eleito defendendo uma agenda neoliberal desastrosa para o país, perdendo sua popularidade e posteriormente as eleições para o partido dos Kitchners e na Bolívia, onde o golpe não impediu a reeleição do MAS – mas em ambos casos os partidos voltam ao poder em condições muito diferentes e mais frágeis do que estiveram quando surgiram no poder.
Parte dessa crise veio a partir de um considerável aumento da desilusão nesses projetos. Isso ficou bem explícito no Brasil onde a crítica ao petismo e a “esquerda” como parte do sistema político tradicional teve entrada em uma parcela relevante da população (inclusive de ex-eleitores do PT), permitindo a vitória de Bolsonaro e a consolidação do bolsonarismo como fenômeno político – algo que não poderia ser explicado sem os anos dos governos de conciliação.
Esse debate tem uma relevância muito atual. Em um momento onde parte das organizações de esquerda tentam confundir a vanguarda tentando colocar como iguais todos projetos que se opõe ao governo atual (muitas vezes colocando todos no mesmo “campo progressista”), entender os erros do passado nos permite traçar uma melhor estratégia para derrotar o projeto bolsonarista.
A crise econômica segue forte no Brasil e em todo mundo, a política conciliatória de agradar gregos e romanos é mais distante agora que nunca. É preciso defender uma agenda anticapitalista para o Brasil e para a América Latina. Isso envolve uma reforma agrária, a taxação de grandes fortunas, de lucros e dividendos, uma auditoria da dívida pública e a construção de instituições que fortaleçam a democracia local e nacional, que nunca foram propostas no país. Por isso, a tarefa número um segue sendo derrotar Bolsonaro e seu governo genocida, mas é necessário que apresentemos nosso programa político. Não podemos nem ser reféns na rua, só se movimentando quando permitem as direções burocráticas que não querem que Bolsonaro caia agora (por estarem esperando as eleições de 2022). Nem podemos deixar de aproveitar toda oportunidade para oferecer um projeto para o país – por isso a candidatura de Glauber Braga, por exemplo, é tão importante. Se não entendermos o que foram os processos políticos que nosso continente passou nos últimos 20 anos e quais limites eles chegaram, e não soubermos apresentar um programa de superação para aqueles que estão buscando uma alternativa, cairemos no risco de perder para o bolsonarismo, porque já perdemos para nós mesmos.