Nossa vivência não é doença: não queremos cura, queremos luta!
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Nossa vivência não é doença: não queremos cura, queremos luta!

A visão stalinista da Unidade Popular sobre a luta trans não alcança um horizonte de libertação. Viva a população transvestigênere do Brasil, em toda a sua diversidade.

Ontem, dia 29 de janeiro de 2023, Dia Nacional da Visibilidade Trans, a conta oficial da Unidade Popular pelo Socialismo postou, no Twitter, um texto em “homenagem” à data. Esse texto é extremamente problemático de diversas formas, e a repercussão negativa quase universal dentro da comunidade trans e de círculos de aliades foi o suficiente para que a UP apagasse os tweets, deixando para trás apenas a imagem que chamava para o texto. Imagem, aliás, problemática por si só, que coloca ao fundo uma bandeira trans parcialmente encoberta pelo texto da imagem e traz, em primeiro plano, uma bandeira da UP e um homem cisgênero usando uma camiseta que diz “vidas negras importam”.
Somos também favoráveis e acreditamos ser central à intersecção da luta antirracista com a luta trans, porém é simbólico que mesmo na postagem sobre o Dia da Visibilidade Trans não haja uma única pessoa trans visível na imagem, e que o homem cis ao centro não esteja nem sequer usando uma camiseta que diga respeito explicitamente à luta trans.

A frase que mais parece ter repercutido desse texto foi “Devemos, coletivamente, lutar para que as pessoas transgêneros e transsexuais tenham uma vida digna e acesso aos meios de resolverem sua condição (de não se identificarem com o corpo no qual nasceram)”. Para qualquer pessoa minimamente em contato com os debates contemporâneos da comunidade trans, tornam-se imediatamente óbvios diversos problemas com esse trecho. Primeiro, “resolverem sua condição” beira a uma (ou senão é uma) patologização da vivência trans.

A implicação de que pessoas trans têm, inerentemente, uma condição a ser resolvida (portanto, mudada) com relação ao seu gênero é a explícita não-aceitação de que possam existir corpos que fogem à cisnormatividade. A hormonização e os procedimentos cirúrgicos de afirmação de gênero são direitos conquistados da população trans, mas, por outro lado, há o perigo de estabelecer as mudanças corporais como o horizonte ao qual as pessoas trans devem aderir.

É preciso reconhecer que as tecnologias bioquímicas que provocam mudanças corporais são também carregadas de traços culturais, uma vez que a feminilidade e a masculinidade e os símbolos que as afirmam são projetos de poder e controle social. Tendo em vista o horizonte emancipatório, a nossa luta não é para que pessoas trans possam “parecer cis” para “resolverem sua condição” (disforia), mas para que haja uma superação da norma cishétero e uma consequente superação dessas denominações, identidades e significativos culturais que só existem para a legitimação dessa norma.

Esse horizonte extremamente limitado para a luta trans é demonstrativo da linha conservadora que o stalinismo adota historicamente com relação a diversas pautas — seja na moralização do não uso de drogas e do repúdio ao trabalho sexual (que muitas vezes se torna um combate aes usuáries de drogas e aes trabalhadories do sexo), seja no fato de que o comando de Stalin à frente da URSS foi responsável por retroceder conquistas da classe trabalhadora, como o direito ao aborto e a descriminalização das vivências LGBTQIA+.

O trecho, na verdade, tem uma compreensão completamente avessa à realidade da transfobia estrutural no Brasil. A afirmação de que “devemos lutar para que as pessoas trans tenham acesso aos meios de resolverem sua condição” implica que a transfobia ataca, majoritariamente, as pessoas trans que procuram esses “meios” — no entanto, a verdade é que as pessoas trans que escolhem (não é uma escolha para todas, mas há as que escolhem) viver sem alterar o seu corpo por meio de hormônios ou cirurgias são, muitas vezes, as que mais têm a validade de seu gênero questionada. Questionada, aliás, por pessoas que pensam como a autora do texto: que a disforia e a vontade de mudar o próprio corpo é o que valida a gênerodissidência.

Mas no texto original de 2019, escrito pela militante e futura candidata pela UP Sued Carvalho, de onde foram puxados os trechos publicados no Twitter ontem, a autora afirma explicitamente, usando trechos de materiais da Sociedade Americana de Psiquiatria e da Sociedade Brasileira de Pediatria, que “pessoas trans são indivíduos que sofrem de disforia de gênero”. Essa mentalidade, empunhada por uma mulher trans (que é o caso da autora), serve diretamente aos interesses da classe dominante. Ela (a mentalidade) é o equivalente, dentro da comunidade trans, do que é o feminismo radical dentro do feminismo: o sacrifício das camadas mais marginalizadas de uma população pelas camadas menos marginalizadas, buscando a aceitação do patriarcado.

Assim como TERFs se unem aos fascistas para negar a humanidade das pessoas trans, algumas mulheres e homens trans que sentem disforia de gênero colocam essa disforia como requisito para a validação do gênero de uma pessoa trans. Assim, concordam com os transfóbicos em várias pautas sobre como “deve ser” a aparência de um homem ou de uma mulher para buscar nesses mesmos transfóbicos uma relativização, uma afirmação de que “sim, aquelas pessoas trans são inválidas, mas nós somos diferentes”.
Essas “migalhas de aceitação” distribuídas pelo patriarcado funcionam como uma tática de cooptação que, frente à impossibilidade de manter intacta a cisnormatividade, sacrificam uma pequena parte dela para ganhar noves aliades que defendam os seus pontos mais estruturais. É uma ‘isca’ da burguesia que o stalinismo mordeu. Essa posição conservadora demonstra a falta de disposição do stalinismo em alterar estruturalmente certos aspectos, especialmente culturais, da estrutura da sociedade capitalista.

Na aula “Sexualidade, Identidade de Gênero e Feminismos”, ministrada por Helena Vieira e Monique Prada, Helena observa que as vivências internas à norma são debatidas a partir do papel que exercem, enquanto que os desvios da norma são debatidos a partir de sua causa. Por exemplo, o papel de uma mulher cis seria o da reprodução e cuidar do lar, mas não é colocado o papel de uma mulher trans: busca-se encontrar o motivo pelo qual ela é trans. Motivo esse encontrado, no texto da Unidade Popular, no fato de ela sentir disforia (que não é verdade para todas as mulheres trans na exata mesma medida em que “reproduzir e cuidar do lar” não é o papel de todas as mulheres cis).

Ao escrever que a luta das pessoas trans consistiria em se conformar à cisnormatividade na medida do possível (por meio de hormonização e intervenção cirúrgica), a autora reafirma e naturaliza a norma cisgênero, que existe como forma de controle e punição dos corpos dissidentes da autoimagem da classe burguesa. O não questionamento dessa norma resulta no apagamento de todas as pessoas gênero-dissidentes, mas em especial das pessoas não-binárias e intersexo. O que o texto da UP faz, no limite, é patologizar a diversidade de gênero e invisibilizar, no processo, toda a existência para além de um binário de gênero e também de sexo. Isso, para uma organização que se diz revolucionária, é inaceitável, e fruto da herança conservadora stalinista de homogeneização política e cultural da sociedade.

O próprio uso da noção de “sexo biológico” é algo a ser questionado no texto, uma vez que, como tantas vezes afirmaram as transfeministas e pessoas que produzem reflexões a partir da teoria queer, essa é uma discussão crucial para entender a posição de subalternidade trans. Nesse sentido, a naturalização do sexo biológico, e especialmente do sexo biológico binário, como determinante das vivências é violento porque esconde o caráter social do mesmo.

Sendo assim, a autora Amanda Palha, em um ciclo de debates chamado “Por um feminismo para os 99%” que foi publicado pela Boitempo, afirma como essas categorias e denominações surgem para legitimar dinâmicas familiares que dividiram as tarefas na produção e reprodução da espécie a partir da genitália e da capacidade de gerar sêmen e de engravidar. Por isso, questionar a naturalidade do sexo e do discurso de que sexo produz gênero (seja como dissidência ou não) é central para pensar como a família se estrutura no Capitalismo e como as demais esferas da sociedade obedecem a essa ordem, mesmo que essa categorização seja uma ideia da ciência moderna e não um dado natural.

Algo extremamente sintomático da naturalização do sexo como régua do gênero é o uso do termo “pessoas não-trans” no texto original completo. A cisgeneridade é tão naturalizada que nem é chamada pelo seu próprio nome, mas pela ausência da transgeneridade — seria como chamar, numa concepção binária, homens de “não-mulheres”.

Esse apagamento é perigoso inclusive para a autoimagem de pessoas não-binárias e que não apresentam traços socialmente vistos como gênerodissidentes, que são invisibilizadas diariamente e, mesmo no Dia da Visibilidade Trans, excluídas de sua própria comunidade por posicionamentos como o da UP. Algumes delus chegam a acreditar que não são “trans de verdade”, por falta de afirmação das pessoas ao seu redor.

Mas para além de tudo isso, o foco da UP, ao falar das necessidades da comunidade trans, na medicalização da vivência trans ignora a brutal realidade da maioria absoluta das travestis brasileiras: a disforia, mesmo para quem sofre com ela, é apenas uma parte da violência imposta pela sociedade burguesa às pessoas trans, já que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo todos os anos há 14 anos, e que a esmagadora maioria das travestis são trabalhadoras do sexo, obrigadas a vender os seus corpos — o que significa colocar-se em uma posição vulnerável a violências físicas e simbólicas constantes — como única forma de subsistência.

Para essas travestis, conseguir acesso aos “meios de resolver a sua condição” significa conseguir acesso à educação, acesso à saúde e acesso ao emprego. Sua “condição” a ser resolvida não é a disforia, mas sim o verdadeiro genocídio cometido contra a comunidade.

A Visibilidade Trans significa também enxergar o sangue que escorre pelas ruas do Brasil, e a UP, (em verdadeira moda stalinista) preocupada com o moralismo ligado ao trabalho sexual, prefere reduzir o debate da Visibilidade a permitir que pessoas trans não pareçam trans.


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