Sobre a desmilitarização da polícia
Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

Sobre a desmilitarização da polícia

Diante do 08 de janeiro, este texto reflete um acúmulo inicial interno do Juntos com Luciana Genro sobre qual é o papel da polícia e qual deve ser nossa política quanto a ela

Gal Carrez 8 fev 2023, 19:35
  1. Introdução

Esse texto é uma síntese de uma conversa/aula bastante qualificada de jovens com a deputada estadual e fundadora do PSOL Luciana Genro sobre o tema Desmilitarização da Polícia. O objetivo é registrar os acúmulos da aula e ajudar o leitor a entender melhor o papel da polícia dentro do capitalismo e qual deve ser a nossa postura diante dela como militantes que buscam o socialismo. 

As dúvidas apresentadas foram principalmente: Nós queremos o fim da polícia? Devemos utilizar “eu quero o fim da polícia militar” como palavra de ordem? Como dialogar com a classe policial para ganhá-los para o nosso lado? Tentarei escrever com essas perguntas em mente e pela linha de raciocínio apresentada pela deputada, na medida do possível. 

  1. A polícia cumpre uma função essencial ao capitalismo

O Direito e o senso comum frequentemente reforçam a ideia de que o exército, a guarda municipal, as polícias civil e militar, etc, possuem a função de proteger o cidadão e a ordem, mas será que isso é a realidade? Para responder essa pergunta, bastaria constatarmos que, durante a história do nosso país, o exército serviu como instituição de repressão, tortura e golpismo – como hoje Bolsonaro e grande parte das forças armadas fazem. O 8 de Janeiro é a prova cabal de que as forças armadas não servem ao ideal de proteção às instituições e à democracia, a despeito das fantasias que o Direito pregue. Mais evidente ainda é o genocídio da população negra e periférica que é sempre a primeira na mira. Enfim, exemplos concretos não faltam. No entanto, é importante que cruzemos a teoria com o que é concreto para termos uma leitura correta da realidade.

Marx nos ensina que as relações sociais são moldadas diretamente pelas relações econômicas, logo qual seria, de um ponto de vista materialista, a função da polícia no sistema – capitalista – em que vivemos? O que nos disse Luciana foi o seguinte: a função da polícia é única e exclusivamente a proteção da propriedade privada.

Veja bem, a burguesia precisa de mecanismos para proteger o seu regime e a acumulação privada da riqueza. Claro que isso acontece por meio dos meios de comunicação, da cultura, da religião, da moral, etc, mas, em última instância, é a polícia que garante o seu direito de propriedade. Não é à toa que na maioria das vezes nas quais o direito de propriedade se choca com outro direito (como o de moradia, por exemplo), é a propriedade que sai por cima. Quando ocupamos uma casa vazia reivindicando o direito à moradia, é a polícia que nos chuta para fora para garantir o direito à propriedade privada. Se uma mãe furta um biscoito de um mercado para dar de comer ao filho – tentando garantir seu direito à vida e não morrer de fome – é a polícia que a prende e garante que o empresário não terá prejuízo. Os exemplos são intermináveis.

Então, se a polícia representa a proteção da propriedade privada, devemos acabar com ela o quanto antes, certo? Não exatamente. Não podemos esquecer que ainda vivemos no capitalismo.

  1. É possível o fim da polícia dentro do capitalismo?

Luciana nos chama a atenção de que, em sua opinião, não devemos pregar o fim da polícia. Por óbvio, queremos o fim da polícia (estrategicamente)*, no entanto, não é possível fazê-lo dentro dos marcos do capitalismo – isto porque, enquanto existir propriedade privada existirá polícia, mesmo que não seja uma polícia formal. Aqui entra a natureza fundamental do que são as milícias. Quando a polícia se torna insuficiente para garantir o direito à propriedade, a burguesia se organiza para garanti-lo de outra forma e faz sua própria polícia, desconectada do Estado. Portanto, mesmo que a polícia seja um instrumento de repressão, é melhor ter uma polícia com algum controle pelo direito do que uma polícia miliciana. Além disso, não é possível extinguir a polícia para depois extinguir a propriedade privada, pois mesmo que acabemos com a polícia formalmente, a propriedade privada continuará fortemente protegida por outros meios, ainda que ilegais. 

Mas então, se não é possível o fim da polícia antes do fim a propriedade privada e, portanto, do capitalismo, qual deve ser a nossa postura?

  1. O programa de transição: a estrutura da polícia, seus integrantes e o caminho para sua superação. 

É preciso lutar pela implantação de um programa de transição que reivindique: a) Desmilitarização da polícia; b) Porta de entrada única nas forças armadas e nas polícias; c) Direitos humanos e trabalhistas para os policiais. Vou, agora, discutir um pouco de cada ponto desse programa de transição para a polícia.

A desmilitarização é importante por conta da lógica militar. A lógica militar é a lógica da guerra, da hierarquia estrita, do autoritarismo. Na guerra não há espaço para democracia. Muitos países no mundo não possuem uma polícia militar interna, ou seja, que trate de assuntos que não dizem respeito à soberania nacional. Assim, a desmilitarização significa tirar da polícia a lógica de guerra e de obediência cega. Com isso, defendemos que não existam duas polícias diferentes – uma civil e uma militar – e se que abra a porta da sindicalização dos policiais, bem como o fim das prisões arbitrárias de policiais, baseadas na legislação e lógica militar que é sempre autoritária.

Já para entendermos a necessidade de uma porta de entrada única para as forças armadas é preciso constatar que existem duas polícias (assim como existem dois exércitos, duas aeronáuticas, dois corpos de bombeiro, etc.): a polícia dos praças e a polícia dos oficiais. Desde muito tempo, a entrada nas forças armadas possuem dois caminhos. O primeiro caminho é o dos subalternos, ou seja, a pessoa entra como soldado e chega no máximo a subtenente. O segundo caminho é o dos comandantes, no qual o posto mais baixo é o de segundo tenente, que é o cargo após o de subtenente. Isso quer dizer que alguns desde sempre estão em posições de comando e que quem entra pela base nunca poderá ser oficial. É nessa lógica que se baseia a entrada em todos os braços armados ou militares do Estado, ou seja, um jovem de 18 anos que inicia sua carreira como soldado no exército, por exemplo, também nunca será oficial.

Essa estrutura é feita claramente para deixar a classe trabalhadora de fora do comando e faz com que o tratamento das camadas mais baixas sejam sempre horríveis, pois o general nunca precisou ser soldado. É de se esperar que, se houvesse uma porta de entrada única, não só seria mais justo para aqueles que buscam uma ascensão social como também seria um ganho considerável de condições, já que o oficial poderia ter mais empatia pelos seus subalternos tendo passado pelas mesmas dificuldades que eles.

Por fim, a luta por direitos trabalhistas e humanos para os policiais vem de uma simples constatação, isto é: policiais são, em última instância, servidores públicos como todos os outros. Portanto, a luta pela melhoria das suas condições de trabalho em meio ao esforço histórico do neoliberalismo em desmontar o serviço público será sempre um bom caminho para começar. Os policiais militares são obrigados a atenderem ordens a todo tempo sem questionar e, se houver discordância – ou mesmo se o superior não “for com a cara” – estarão sujeitos a prisões arbitrárias. Da mesma forma, muitas corporações definem metas de prisões, isto é, os policiais são obrigados a prenderem pessoas injustamente para não tomarem uma punição severa. Muitos deles vêm de famílias pobres, precisam sustentar suas famílias sozinhos e, com a violência vivida dentro dos quartéis, acabam descontando a raiva e o estresse nos cidadãos, porque sair da polícia significaria abrir mão de uma estabilidade financeira para tentar a sorte do mercado de trabalho arriscando o desemprego.

  1. O nosso papel na disputa da polícia e a construção de um mundo no qual ela não seja necessária.

Mesmo a polícia sendo um instrumento fundamental de manutenção do capitalismo, sem ela tampouco conseguiremos derrubá-lo. Parece paradoxal, mas a realidade é que nenhuma revolução aconteceu até hoje sem o apoio parcial das forças policiais. É óbvio que nunca conseguiremos uma “polícia socialista”, por conta da própria natureza já explicitada, mas se deixarmos a polícia por completo nas mãos da burguesia com certeza qualquer tentativa de revolução será esmagada. O povo, mesmo que armado, não resistiria a uma força organizada e treinada nas mãos da burguesia. 

Por conseguinte, se queremos um mundo no qual a classe trabalhadora tenha acesso à riqueza que produz, precisamos diminuir a força das instituições que protegem os capitalistas e disputar a consciência dos trabalhadores policiais. Fazer essa disputa é difícil, mas necessária. O trabalho parlamentar talvez seja a melhor forma de conquistá-los, por ser uma via direta de cobrança das corporações, mas, para a agitação popular, é preciso nos firmamos em palavras de ordem que cobrem o programa de transição apresentado como uma tática que visa a superação do sistema capitalista como um todo no futuro.

*Vide os conceitos de tática e estratégia. 


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