A descriminalização do aborto: um grito pela vida e saúde de todas as mulheres e pessoas que gestam
A criminalização do abortamento empurra mulheres jovens, negras e indígenas, em vulnerabilidade socioeconômica, para a realização de procedimentos potencialmente fatais.
O Supremo Tribunal Federal iniciou no dia 22/09/2023 a análise da Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 442, em que avalia-se a descriminalização do abortamento até a 12ª semana de gestação. Em meio a um suspiro racional no nosso país, questionamentos feitos há décadas voltam à tona: por que o abortamento ainda é considerado um crime no Brasil? Quem são as pessoas que abortam? Por que essas pessoas abortam? Quais as consequências da dicotomia criminalização-descriminalização?
Antes de mais nada, voltemos à parte conceitual: conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), abortamento é o nome dado à interrupção – espontânea ou provocada – da gravidez até a 22ª semana, ou com produto da concepção pesando menos que 500g ou menor que 16,5cm. O abortamento como um evento de saúde é um processo comum, constituindo-se como um dos tópicos necessários de serem abordados ativamente durante a investigação de antecedentes ginecológicos e obstétricos das pessoas.
Quando realizado em condições adequadas e de acordo com as orientações da OMS, é um dos procedimentos médicos mais simples e seguros, com poucas complicações e repercurssões negativas para a mulher (Mkulichi, 2017). Estimativas apontam que 15-20% das gestações clínicas resultam em abortamento; esse número passa para 40% quando consideramos gestações que não foram diagnosticadas (Diniz, 2021). No Brasil, 1 a cada 7 mulheres apresenta pelo menos um abortamento durante a sua vida aos 40 anos, o que significa que provavelmente todos nós conhecemos alguém que tenha vivenciado essa situação – mesmo que o teor moral, hipócrita e religioso ao redor do assunto, faça com que muitos de nós não saibamos quem são essas pessoas (Diniz, 2021). Os dados ainda mostram que metade dessas pessoas tiveram seu primeiro abortamento durante a adolescência, sendo que 6% desse número representa mulheres entre 12-14 anos (Diniz, 2021). Além disso, as taxas de abortamento são maiores em mulheres negras e indígenas, residentes de áreas de pobreza, e com baixo nível educacional (Diniz, 2021).
Atualmente, o abortamento é um direito legal das mulheres e pessoas que gestam em três situações: quando a gravidez apresenta risco de vida para a gestante, quando é oriunda de um estupro, ou quando o feto for anencéfalo; mais do que isso, a Lei nº 12.845/2013 determina que o atendimento e realização de abortamento em situações de violência sexual não são condicionados a apresentação de boletim de ocorrência ou de decisão judicial que setencie se ocorreu estupro ou violência sexual. Entretanto, o que ocorre, na prática, é a exposição de mulheres, frequentemente em vulnerabilidade social e emocional, a um processo doloroso e burocrático, que muitas vezes acaba por, inconstitucionalmente, não viabilizar o abortamento.
Mesmo que seja atribuição do médico fornecer atendimento adequado, apenas 40% dos obstetras/ginecologistas brasileiros estavam dispostos a ajudar uma paciente que solicitava um aborto seguro e apenas 2% estavam dispostos a realizar o aborto eles próprios (Faundes, 2004). Em meio a esse contexto de controle dos corpos das mulheres, defasagem técnica e vulnerabilidade social, econômica e emocional, muitas pessoas se submetem a procedimentos de abortamento por vias alternativas. Ao contrário do que se espera de um abortamento realizado em condições adequadas, os abortamentos inseguros – interrupção da gravidez por pessoas sem habilidades necessárias e/ou realizada em ambiente que não esteja em conformidade com mínimos padrões médicos – são extremamente perigosos para as mulheres que os realizam (WHO), acarretando em um alto risco de complicações como hemorragia, insuficiência renal, infertilidade e trauma intestinal (Lim, 2014). No Brasil, 1 a cada 28 internações por falha na tentativa de abortamento resultam em óbito da gestante; além disso, mulheres negras têm um risco duas vezes maior de morrer nessas situações que mulheres brancas (DATASUS).
Na prática, a criminalização do abortamento empurra mulheres jovens, negras e indígenas, em vulnerabilidade socioeconômica, para a realização de procedimentos potencialmente fatais. Globalmente, cerca de 20 milhões de abortos inseguros são realizados anualmente, resultando em 80 mil mortes maternas (Adinma, 2011), cerca 20% das mortes maternas em países onde o aborto é proibido (Warriner, 2006). Ou seja, estamos falando de milhões de mortes que poderiam ser facilmente evitadas caso houvesse garantia de formas seguras e legais de abortamento, fato que se mostrou verdade em países como Guyana, Nepal e África do Sul, onde o número de mortes, infecções, complicações sistêmicas e infertilidade caiu drasticamente (Henderson, 2013). Em contraste, temos o exemplo da Romênia que, após criminizalizar o aborto em 1965, assistiu um rápido aumento na taxa de mortalidade relacionada com o aborto de aproximadamente 15 por 100 000 nacidos vivos para mais de 140 por 100.000 em poucos anos (Stephenson, 1992). Embora seja comprovadamente responsável por aumentar a mortalidade materna, a criminalização do aborto não é capaz de impedir que mulheres interrompam suas gravidezes voluntariamente: as taxas de abortamento são menores em países em que o procedimento pode ser realizado de maneira segura e legal, como Holanda, Bélgica, Alemanha e Suiça, onde observou-se números entre 7-9 por 1000 mulheres entre 15-44 anos (Sedgh, 2012). Nesses e em outros países onde o abortamento é legalizado, o procedimento pode ser facilmente feito com uso de somente uma pílula, o Misoprostol.
Nesse sentido, a ADPF 442, proposta pelo PSOL em 2017, em votação no STF, avalia a descriminalização do abortamento até a 12ª gestação. Embora seja uma importante questão de saúde pública, o atual governo federal petista não tem se mobilizado por essa pauta devido ao compromisso com uma coalizão conservadora e cristã, o que destaca ainda mais a importância de uma ação positiva por parte do Supremo Tribunal Federal para proteger os direitos das mulheres e sua saúde reprodutiva. Na prática, se aprovada, a descriminalização não garantiria que o abortamento pudesse ser oferecido livremente, mas sim que as gestantes e profissionais de saúde envolvidos nesses procedimentos não poderiam ser indiciados criminalmente por terem realizado. Ainda assim, a ação em julgamento é um indicativo de progresso em uma direção em que os direitos à saúde, dignidade e não discriminação sejam imperativos nos processos de legislação e elaboração de políticas públicas, e que deixemos de lado o moralismo, a hipocrisia e o machismo por trás da nossa atual forma de lidar com o abortamento.
Bibliografia:
- WHO . Unsafe abortion. Global and regional estimates of the incidence of unsae abortion and associated mortality in 2008. Sixth. 2011. pp. 1–56.
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- Sedgh, G., Singh, S., Shah, I. H., Ahman, E., Henshaw, S. K., & Bankole, A. (2012). Induced abortion: incidence and trends worldwide from 1995 to 2008. Lancet (London, England), 379(9816), 625–632. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(11)61786-8
- BRASIL. Ministério da Saúde. DATASUS (Departamento de Informática do SUS)
- Adinma E. (2011). Unsafe abortion and its ethical, sexual and reproductive rights implications. West African journal of medicine, 30(4), 245–249.
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- Mkulichi A. Unsafe Abortion, Its Determinants and Associated Factors: The Case of Malawi. A Systematic Literature Review. Thesis, Georgia State University. 2017; 1–37
- Lim LM, Singh K. Termination of pregnancy and unsafe abortion. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. Elsevier Ltd. 2014;28(6):859–869.
- A. Faundes, G.A. Duarte, J. Andalaft, M.H. Souza. The closer you are, the better you understand: the reaction of Brazilian obstetrician–gynaecologists to unwanted pregnancy. Reprod Health Matters, 12 (24 Supplement) (2004), pp. 47-56
- P. Stephenson, M. Wagner, M. Badea, F. Serbanescu. Commentary: the public health consequences of restricted induced abortion–lessons from Romania. Am J Public Health, 82 (10) (1992), pp. 1328-1331
- Henderson JT, Puri M, Blum M, Harper CC, Rana A, Gurung G, Pradhan N, Regmi K, Malla K, Sharma S, Grossman D, Bajracharya L, Satyal I, Acharya S, Lamichhane P, Darney PD. Effects of abortion legalization in Nepal, 2001-2010. PLoS One. 2013 May 31;8(5):e64775. doi: 10.1371/journal.pone.0064775. PMID: 23741391; PMCID: PMC3669364.