A privatização dos presídios no Brasil: o lucro em contraponto a liberdade
A criação de um mercado prisional lucrativo só fortalecerá o encarceramento em massa da juventude negra
O Governo Federal vem apresentando de maneira discreta, e ainda relativamente despercebida de grande parte da sociedade, um projeto de Privatização dos Presídios. Em abril, a presidência assinou um decreto que “incentiva financiamento” para setores como o da segurança pública e prisional. Esse incentivo será feito em conjunto com o BNDES, que investirá na construção de presídios, enquanto a administração será cedida numa Parceria Público Privada para o capital, que terá muitos atrativos. Entre eles, uma taxa mínima a ser paga pelo governo, a fim de atrair investidores com o olhar lucrativo; como também, pagamento por pessoa encarcerada, fortificando uma indústria do encarceramento, ainda mais com a possibilidade do trabalho forçado que estas parcerias também acarretam.
Vamos aos poucos: a facilitação das Parcerias Público Privadas, incentivada por Temer, continuada por Bolsonaro, não deixa de ser uma realidade no Governo Lula. No ano anterior, houve um edital para a realização de parceria na administração do Presídio de Erechim, no Rio de Grande do Sul; porém, nenhuma empresa se interessou. Assim, para caminhar com o absurdo, o atual governo refez o edital de maneira mais atrativa, baseado em um Decreto Presidencial que prioriza investimento na área. Isso facilita que o BNDES entre com financiamento de 150 milhões para a construção de um presídio que será gerido pela iniciativa privada por, pelo menos, 30 anos. É literalmente o governo investindo milhões na construção de lucro para empresas carcerárias, e negando arrecadação.
A ideia de mercantilização até de um instrumento que deveria servir para ressocialização de indivíduos, é absurda em todos os sentidos, inclusive o econômico. O governo constrói com dinheiro público o “empreendimento” para as empresas utilizarem e lucrarem, e ainda possibilita isenções fiscais milionárias, pela PPP. Isso, sem falar da taxa mínima a ser recebida, no caso de lotação do presídio, e a facilitação para o uso de trabalho forçado. Imagine, ser pago para ter mão-de-obra, mesmo que isso signifique um gasto muito maior do Estado, que terá quase o triplo de gastos por encarcerado, no caso da privatização.
O problema é que o sistema prisional não pode jamais ser visto enquanto um empreendimento. Essa lógica privilegia o encarceramento em massa e o trabalho forçado à ressocialização e construção de justiça. Literalmente, quanto mais pessoas presas no Brasil, mais lucrativo será para setores poderosos da sociedade; para os empresários do cárcere. Para piorar, os dados de encarceramento no nosso país demonstram bem quem mais sofrerá com isso: o Brasil tem o terceiro maior sistema prisional do mundo, atrás dos Estados Unidos e da China. Dessa população carcerária, há um excesso de quase 200 mil presos, comparado ao número de vagas, demonstrando a absurda superlotação. E, por óbvio, há discrepância etária e racial: quase 50% dos presos são jovens entre 18 e 29 anos, e quase 70% são negros.
No Brasil, o encarceramento em massa é uma política complementar ao genocídio, principalmente da juventude negra. É uma forma de amarrar pessoas que, no sistema de privilégios brasileiro, sofrem com a falta de perspectiva e estão aptas a sofrer com a desumanização que o capitalismo precisa para se reorganizar constantemente. Quase 30% de mais de 800 mil pessoas privadas de liberdade estão em regime provisório, o que demonstra o interesse de, independente de justiça, ter esses corpos presos por uma política higienista e racista, que mantém uma hierarquia racial na sociedade brasileira muito bem estabelecida. Isso reforça a forma natural como se vê abordagens policiais agressivas e racistas; naturaliza ver o corpo negro como mais suscetível ao crime; justifica operações policiais constantes nas favelas e periferias, mesmo que isso signifique crianças sem aula, comércio fechado, terror psicológico, abuso policial, mortes e prisões muitas vezes injustas.
Agora, há a possibilidade de isso não somente ser uma afirmação racial, e uma narrativa de naturalização do racismo institucional. Há a possibilidade aberta de o encarceramento ser um mercado, encomendado pela demanda da iniciativa privada. Não um mercado apenas pelo incentivo fiscal, ou pagamento por taxa de encarcerado; mas um mercado também pela flexibilização que a privatização dos presídios trará para o trabalho forçado. É este o nível de prioridade que a esquerda deve dar para este debate, fazendo ter cada vez mais peso na sociedade. É preciso dizer como será o funcionamento das Parcerias Público Privadas: para o privado o lucro, a mão-de-obra barata ou até forçada. Para o público, os gastos, o incentivo ao encarceramento e à repressão. E, por fim, para a sociedade um aumento nas prisões injustas e presídios que servirão ainda mais enquanto escolas do crime, associações compulsórias a facções criminosas e, consequentemente, o fortalecimento a médio prazo do poder paralelo.
Os Estados Unidos são um exemplo mundial de casos de prisões administradas pelo mercado privado. Lá, como pode acontecer no Brasil, o Estado deve às empresas com quem firmarem contrato a garantia de um número mínimo de presos, independente de se os índices de criminalidade subiram ou não. O contexto para se abrir espaço para esta ideia, foi o aumento exponencial de população carcerária no país, como também vemos no Brasil, principalmente desde o primeiro Governo Lula. Um fato preocupante, é o de que as principais empresas estadunidenses de cárcere, financiaram durante anos campanhas e políticos de direita, a fim de garantir um lobby para que se endurecesse leis. Inclusive, este é um dos motivos pelo aumento relevante no número de imigrantes presos nos Estados Unidos e da ascensão de uma extrema direita extremamente xenofóbica, representada pelo corrupto Donald Trump.
Além disso, o que se viu nos EUA, foi o também barateio dos custos de manutenção das unidades prisionais. Isso, com objetivo de as empresas aumentarem as suas taxas de lucro, o que resultou em profissionais mal pagos e, consequentemente, menos qualificados. Também resulta em um maior número de maus-tratos, de casos de tortura, e até mesmo de fugas dos presídios, demonstrando que a ideia da privatização não é somente economicamente ou socialmente inviável, mas também é ineficiente do ponto de vista operacional.
No nosso país, o Governo parece ter mais interesse em incentivar que pessoas sejam privadas de liberdade, do que incentivar que pessoas concluam seus estudos e possam ser formadas para um mercado de trabalho digno. As escolas estão cada vez mais sucateadas, com dificuldades inclusive na compra de merenda, por falta de repasses do Governo Federal. O Novo Ensino Médio é a maior representação atual do papel que o capitalismo quer para a educação: limitante, para poucos e, para as pessoas mais pobres, a manutenção do ciclo de pobreza, com o preparo apenas para um mercado de trabalho precarizado e, que desvaloriza o ensino crítico e emancipador. Além disso, as universidades estão cada vez mais com crises na assistência e permanência estudantil, além de problemas estruturais evidentes, pela falta de investimento.
Em meio a esta crise de perspectiva, a ostensividade das polícias estaduais tem sido um fator preocupante em alguns estados. Em especial na Bahia, que ano passado teve recorde de vítimas fatais de intervenções policiais, e no Rio de Janeiro, onde nos últimos 7 anos, foram mais de 600 crianças e adolescentes baleados em ações policiais. A cada dia de operação, há milhares de pessoas afetadas direta e indiretamente. Seja pelas escolas fechadas, pelo desespero social, ou até mesmo pelas “balas perdidas”, que sempre se acham em territórios parecidos, e em corpos pretos. E, para piorar, há uma postura por parte de governos, como maiores exemplos o de Cláudio Castro (RJ) e Jerônimo Rodrigues (BA), que associa o alto número de letalidade policial como eficiência. A política de segurança pública está falida, e certamente, o alto índice de encarceramento e genocídio no Brasil, não está afetando positivamente nenhum dado sobre isso.
Encarcerar a população pobre e negra gera lucro, e gerará ainda mais, enquanto investir na educação pública parece ser um gasto. Isso gera um ciclo interminável, onde nunca atingiremos as raízes estruturais dos nossos problemas sociais. No meio de todas essas contradições, a privatização dos presídios significa, sem tirar nem pôr, uma reedição republicana e ocidental da escravidão, do trabalho forçado, e do hegemonismo racial. É papel dos movimentos sociais, dos movimentos negros e estudantis se posicionarem e trazer este assunto para o centro do debate nacional.