Duas Estratégias do Movimento Estudantil
Ricardo Stuckert

Duas Estratégias do Movimento Estudantil

Um polêmica com a União da Juventude Socialista

Theo Louzada Lobato 16 jan 2024, 10:40

Recentemente, em um artigo publicado na página do Coletivo, o atual presidente da União da Juventude Socialista (UJS), Rafael Leal, elaborou um artigo chamado “Governo Lula: balanço e perspectivas: em 2024 é preciso mais ousadia e mobilização para alterar a medida do possível”, apresentando algumas reflexões sobre os avanços e limites da gestão do atual governo e qual deve ser o papel dos movimentos sociais no próximo período. É, de fato, uma iniciativa importante, já que após um primeiro ano de testes e maiores definições do governo Lula, é necessário um debate mais aberto entre os movimentos sociais e dentro do movimento estudantil sobre quais estratégias são necessárias para o combate da extrema-direita e a possibilidade de avanços sociais para nosso povo.

Após uma virada polêmica de ano por parte da gestão de Lula, com marcos como o déficit zero e mais recentemente os cortes nas universidades e institutos federais, acreditamos que é papel de todo movimento estudantil polemizar mais abertamente sobre quais nossas perspectivas estratégicas para o próximo período. O Juntos!, desde o início deste governo, vem colocando um importante debate sobre uma necessidade de maior afirmação da independência do movimento estudantil e suas entidades para que seja possível derrotar o bolsonarismo e seus similares. Nesse sentido, a construção de um debate mais explícito sobre o papel do movimento estudantil nesse processo se torna fundamental, já que a linha colocada pela UJS hoje é a que define a política de entidades centrais para o país como a UNE e UBES, as quais já temos divergido de forma mais aberta no último ano sobre a relação que constrói com o governo. Nesse sentido, aproveitamos esse momento para refletir um pouco mais a fundo sobre as estratégias em disputa para 2024 no movimento estudantil.

O texto de Leal relata, já de início, a importância da eleição de Lula, colocando que as expectativas com mudanças que o governo federal poderiam trazer foram altas a partir do anúncio, no começo da gestão, de medidas como a desdolarização da Petrobrás, a recomposição orçamentária das universidades e a Bolsa Família 2.0. Ou seja, em sua opinião, acreditava que o governo iniciava com sinais de que poderia haver uma mudança de política real, após as últimas gestões neoliberais, para um “modelo desenvolvimentista” para o país. Porém, durante seu próprio texto admite a ainda não realização dessa expectativa, analisando alguns elementos que colocariam o governo ainda como “aquém” desse projeto.

Eles seriam, na sua visão: 1) a conjuntura internacional, na qual ainda existe forte peso da extrema-direita e as sequelas da destruição nacional de outros governos, 2) a manutenção de uma correlação de forças adversa na sociedade que gera, por parte do governo, uma aceitação de uma política de baixo desenvolvimento e pouca aposta nas mobilização e, por fim, 3) a ainda não concretização de uma disputa ideológica na sociedade para o combate ao bolsonarismo e a extrema-direita no geral.

Nesse sentido, constrói um texto que assume a existência de relevantes limites da política atual da gestão do governo Lula, analisando que esses elementos conjunturais e as opções tomadas a partir destes, estariam levando o governo a uma linha limitada para derrotar a extrema-direita. Portanto, seria necessário, para garantir a governabilidade e fazer o governo “dar certo”, haver uma agenda de mobilização puxada pela própria atual gestão para mudar o que seria “a medida do possível.”

O texto acerta em alguns aspectos importantes, como a compreensão que a política econômica do governo não ajuda no combate ao bolsonarismo e ao colocar que existe necessidade de mobilização social para fortalecer a luta contra a extrema-direita. Mas em sua análise conjuntural nacional e internacional e na sua conclusão que é necessária uma mobilização partindo do governo vai demonstrando os limites de uma estratégia que ainda aposta em um papel do movimento social e estudantil que assume para si as limitações do atual governo.

1) A atual conjuntura internacional: suas causas e consequências

Não é possível fazer uma análise de conjuntura atualmente, especialmente nas Américas, que não leve em conta o peso que a extrema-direita segue tendo no continente. Depois da eleição de algumas figuras “progressistas” pela região, o que foi chamado de forma apressada por alguns setores como “onda rosa”, a recente eleição de Milei na Argentina talvez tenha sido o principal ponto alto da demonstração de que a batalha contra o protofascismo e o reacionarismo ainda é uma dinâmica central na nossa atual conjuntura.

Essa recente vitória, em conjunto com as perspectivas eleitorais de Trump, são para muitos fatos que surpreendem a partir das experiências desastrosas dos governos do próprio Trump e mesmo de Bolsonaro. Porém, nas palavras do próprio Leal, essa capacidade de se reerguer de setores da extrema-direita está exatamente na capacidade de “canalizar o sentimento de revolta do povo com a situação de vida que o próprio capitalismo neoliberal”. Ou seja, é exatamente por se apresentar como “antissistêmico” que esses setores crescem e conseguem se manter.

Porém, o que permite que seja a extrema-direita e não setores de esquerda a ocupar esse perfil? Seja com as mobilizações do Chile por uma nova constituinte ou no levante da juventude colombiana há poucos anos atrás, as mobilizações populares têm demonstrado que a indignação construída nas ruas em muitos sentidos segue sendo presente no nosso continente e não tem um recorte reacionário em si. Existe vontade de mudança pela continuidade de uma crise econômico-política internacional e as medidas tradicionais do neoliberalismo colocadas em diversos governos no último período na América Latina. Essa indignação, não à toa, foi capaz da eleição de diversos representantes do que foi chamada entusiasticamente por alguns setores de “onda rosa” que tentavam se apresentar como uma nova onda progressista latino-americana.

Porém, esse processo mostrou de forma bastante rápida seus limites. Governos como Fernandez na Argentina e Bóric no Chile apostaram em desmobilizar as ruas e seguir diversos aspectos da receita neoliberal já anteriormente apresentada. Milei, nas palavras mesmo de figuras do próprio PT, como José Genoíno, foi eleito a partir da consequência do krischerismo não tentar efetivar mudanças de enfrentamento à política econômica liberal e acabar mantendo a crise que já vinha de Macri, se confundindo no imaginário popular como parte do sistema. A falta de popularidade de Bóric, depois de ser eleito como representante do processo das mobilizações por uma nova constituição, é reflexo da sua tentativa de apaziguar as ruas para tentar uma governabilidade mediada. Ou seja, a chamada “onda rosa” de forma rápida demonstrou que a esquerda institucional latino-americana ainda buscava saídas de pacto com a burguesia, permitindo com que, mesmo existindo maior enfrentamento nas ruas, a extrema-direita seguisse tendo espaço para se pôr como polo mais “radicalizado” em um momento de crise sistêmica.

Esse fenômeno é reflexo de algo que já vimos antes: Bolsonaro foi eleito, entre outros motivos, também pelos limites já construídos pelas próprias gestões passadas do PT. Os cortes de orçamento nas universidades, privatização de aeroportos e estradas entre diversas outras políticas do receituário neoliberal de Dilma foram uma explicitação de uma estratégia já colocada no primeiro governo Lula. Ou seja, a política de conciliação com setores da burguesia como o agronegócio, a aposta em um modelo econômico baseado na ampliação do consumo e a desmobilização dos movimentos sociais. Portanto, a estratégia conciliatória, ao chegar em seus limites com a crise econômica, foi um ponto fundamental para o surgimento da indignação popular que levou ao bolsonarismo poder se apresentar como alternativa “antissistêmica”, mostrando que os erros já de gestões passadas do governo petista ajudaram no desenvolvimento das causas que fertilizaram o surgimento desse fenômeno.

Ou seja, é verdade que a existência da extrema-direita de forma forte muda a realidade conjuntural brasileira em diversos sentidos. Mas os motivos da sua manutenção também não podem ser vistos de forma acrítica: repetir a estratégia que permitiu a extrema-direita se construir, como o governo Lula já tem feito em muitos aspectos, é a receita para o fortalecimento desse mesmo setor.

2) A correlação de forças e a política do governo

O argumento padrão dos setores ligados ao governo para as dificuldades em propor avanços sociais é da difícil correlação de forças na sociedade e nos espaços institucionais. É verdade que estamos em um cenário muito diferente do que em 2002 – a extrema-direita foi capaz de eleger muitos parlamentares e segue tendo um peso social relevante. Na visão de Leal, essa correlação teria pressionado o governo a adotar políticas que seriam mais palatáveis para a burguesia financeira (ou nas suas palavras, a “Faria Lima”).

Porém, o problema vai além. David Deccache, economista do PSOL, tem argumentado que existe uma perspectiva na atual política econômica do governo que já está abertamente assumindo para si os moldes neoliberais. Esse argumento, indiretamente, é fortalecido pelo próprio Aécio Neves que a atual política de déficit zero do governo federal é espelho da política econômica do PSDB.

Ou seja, mesmo no que não depende das correlações de forças parlamentar, a equipe econômica do governo já está levando a atual gestão de Lula para marcos muito próximos do receituário do próprio FMI. O novo teto em sua combinação com o déficit zero tende a resultar no congelamento dos gastos primários, o que já foi admitido pelas figuras e é algo que não foi cumprido nem durante o governo Bolsonaro. Consequentemente, já foram anunciados novos cortes nas universidades federais já esse ano. É uma história repetida que já vimos em governos como Temer e o próprio Bolsonaro.

Porém, a definição de uma política como o déficit zero também é demonstrativa de um problema mais profundo de concepção estratégica que a gestão Lula já apresentou. Assumir um compromisso assim é uma decisão de governo – não depende da Câmara ou da correlação de forças institucionais para ser adotada. É uma opção de Haddad e sua equipe uma gestão dos moldes liberais com diminuição de gastos, menos investimentos sociais e todo receituário que já foi repetido diversas vezes no Brasil.

Ou seja, é difícil colocar que é uma pressão da extrema-direita que coloca o governo em uma “camisa de força” ou uma “opção necessária”, pois a política econômica proposta desde o início já é construída pelo governo de forma a assumir para si uma estratégia econômica liberal. Não existe uma agenda de reformas para serem mobilizadas ou mesmo mediadas, mas um pacto mais definido com os setores da burguesia para uma governabilidade “tradicional”, dificultando a possibilidade de uma política econômica que permita avanços sociais a serem conquistados ou mesmo disputados.

A gestão atual de Lula, portanto, não está abrindo mão de propostas progressivas pelo peso da mobilização da extrema direita e do próprio parlamento: ela está propondo e assumindo um receituário neoliberal, repetindo, de forma ainda mais grave, os erros do passado que permitiram o surgimento do bolsonarismo.

3) Mobilização, disputa ideológica e independência política

Por fim, em seu texto, Leal coloca que se queremos disputar o espaço que ocupa a extrema-direita e possibilitar uma vitória do governo é necessário que a gestão de Lula aposte na disputa ideológica e também construa uma agenda de mobilização de ruas. Acreditamos que, de fato, a atitude por exemplo de Petro na Colômbia ao convocar o povo às ruas em defesa das suas reformas acerta mais que a política de abstenção e desmobilização do atual governo brasileiro, mas achamos que é necessário entender qual plano não só o governo, mas os movimentos sociais precisam ter.

Importante primeiro colocar, que a atual estratégia do governo está bastante definida como um projeto que siga a lógica conciliatória que marcaram sempre os governos PT, na qual a paralisação da mobilização social para permitir a governabilidade sempre foi um ponto fundamental. Fomos sempre muito críticos, por exemplo, ao papel que a UNE teve nas gestões petistas em não incentivar as mobilizações que surgiram contra políticas de corte especialmente durante o governo Dilma, mas vimos que esse processo foi muito similar no movimento sindical, com um papel regressivo da CUT em especial ou mesmo no freio das lutas e ocupações da reforma agrária – algo que suscitou a construção de diversos movimentos além do MST no campo, como a própria FNL.

Naturalmente, no atual cenário, com o governo acenando ainda mais à direita, a situação é ainda pior, por propor um reformismo sem reformas ou avanços – um tipo de governo que disputa ativamente poucas pautas na qual seria possível lutar em defesa. Não por acaso o ano terminou com uma crítica dura de Stédile, dirigente do MST, tradicionalmente mais próximo ao campo do governo, sobre o fato da reforma agrária ter tido um dos seus piores anos em 2023.

Nesse sentido, que nosso primeiro debate e divergência mais central com as elaborações que já vem sendo feitas historicamente pela UJS está ligado a necessidade de independência política dos movimentos sociais. Escrevi em um texto de opinião no final do ano passado que os nossos limites não podem ser os mesmos do governo (Em 2024, precisamos ir Além para Derrotar a Extrema-Direita), coloco isso não só sobre o Juntos!, mas a organização popular de forma geral. Se existe uma estratégia consolidada do governo, não precisamos fingir inocência nisso, o que não significa que não possa haver mudanças políticas na sua agenda, mas como todo governo, isso só pode ser feito a partir da mobilização autônoma e também da pressão social sob ele.

Ou seja, nossa agenda política precisa ser independente e onde for necessário, crítica ao próprio governo federal. A política econômica é um exemplo visível, o déficit zero e o arcabouço fiscal não podem ser naturalizados e suas consequências precisam ter respostas. Um texto construído no site do Juntos por Fabi Amorim e João Pedro de Paula colocaram bastante bem nossa opinião sobre o que acreditamos que é o desafio do movimento estudantil em 2024: com o atual corte orçamentário a mobilização precisa ser incentivada, mesmo que crítica ao governo, greves, ocupações e atos precisam ser impulsionadas pelas entidades e movimentos estudantis em todo país para que essa política seja revertida.

Esse ano foi muito limitado, por exemplo, o próprio papel da UNE e da UBES, dirigidas pela UJS, nesse sentido. A pauta do Novo Ensino Médio foi um exemplo importante, na qual as entidades tiveram receio de puxar mobilizações até o tema estourar nacionalmente no começo do ano e depois, ao longo dos meses, se recusaram puxar iniciativas unificadas: nós mesmos propomos a UJS no Congresso da UNE que o encontro terminasse com uma data unificada contra o Novo Ensino Médio, o que não foi aceito e resultou numa longa pausa sem mobilizações. No fim do ano, com a disposição do governo em colocar para votar em urgência o Novo Ensino Médio e consolidar diversos retrocessos, as entidades buscaram conversas com o governo para adiar a votação para março. Se não houver uma mudança na tática do movimento estudantil e uma aposta na mobilização unificada e permanente, a probabilidade de aprovação do projeto segue sendo muito real.

Ou seja, a não adoção de uma política que seja independente do governo faz com que se leve a um dos maiores erros que o texto de Leal apresenta, que o setor que a UJS compõe no movimento estudantil tem praticado: a expectativa que a mobilização social no país parta do governo. É nesse sentido, lutas centrais e necessárias no último período como, mobilizações contra o arcabouço fiscal, não têm sido colocados em prática pelas principais entidades estudantis, visto que polarizam diretamente com a agenda governamental. O mesmo pode se dizer mais recentemente da falta de posicionamento da UNE e UBES sobre os recentes cortes das universidades. Universidades como a UFRJ já anunciam não ter verba para o segundo semestre, a FASUBRA já indicou estado de greve para os servidores e ainda temos tido uma demora para construir iniciativas reais por parte desse setor estudantil. Ou seja, críticas ao governo podem ser colocadas como elementos de caracterização, mas a aposta em mobilizações mais amplas que possam pressionar e constranger de fato o governo já vão além do que essa estratégia de dependência política à gestão Lula permite.

E isso nos leva ao segundo elemento, mesmo porque, já que o próprio NEM, mesmo sendo estrutural para a disputa de visão ideológica e social das próximas gerações, vem sendo rifado pelo governo atual, demonstrando os limites da disputa ideológica que a atual gestão está disposta a fazer. É sim, como colocado no texto de Leal, necessário ampliar essa batalha de concepção de sociedade no país, mas isso tem que vir junto com a mobilização independente acima já citada e também com a construção de um projeto de uma esquerda que vá além desses mesmos limites que apresenta o governo.

A disputa da indignação com a política neoliberal e o sistema capitalista como um todo só é possível na construção de um horizonte que possa ir além desse projeto e modelo de sociedade. A continuidade das políticas de austeridade pelo mundo, mesmo com toda sua impopularidade, são reflexo direto da crise capitalista internacional. Portanto, a busca por consolidar projetos desenvolvimentistas têm esbarrado no próprio limite criado pela crise estrutural do capitalismo, demonstrando um teto para o reformismo. É exatamente por isso que é preciso construir uma saída que possa fortalecer e disputar no povo a ideia de um projeto anticapitalista e ecossocialista para o Brasil e para o mundo.

Sabemos que essa é uma tarefa grande e não será possível, como fazem alguns outros setores também críticos ao governo, na repetição da palavra socialismo ou na auto-proclamação: nossa tarefa é maior e mais complexa. A refundação da esquerda brasileira precisa garantir a construção de um polo em luta, independente do governo, capaz de articular com diversos setores da sociedade. A possibilidade de fusão de setores anticapitalistas, por exemplo, pode ser fundamental, como temos apostado em diversas partes do país. Mas a criação de polos mais amplos, como uma frente de setores da educação dispostos a uma disputa de projeto educacional no país, pode ser uma forma importante de construir espaços críticos, responsáveis e capazes de influenciar na atual disputa da sociedade.

Hoje existe indignação nos estudantes, técnicos e professores com a situação orçamentária na universidade e nisso é preciso construir luta de forma independente e disputar o projeto econômico do governo. Em diversos servidores públicos existe indignação com a privatização, previdência e retirada de direitos e nos unirmos com esses setores é fundamental. Desde a pandemia os Breques dos Apps tem demonstrado a indignação dos entregadores com as faltas de condições básicas de trabalho e também precisamos nos meter nisso. Ou seja, é preciso debater sobre a necessidade da construção de um polo crítico e independente, disposto a combater o bolsonarismo, mas que não limite sua agenda ao que propõe o governo. Isso não é uma tarefa simples ou automática, mas começa com o primeiro passo de entender a necessidade dessa disputa política e ideológica fundamental: a construção de uma esquerda independente, radical e ecossocialista para sermos capazes de derrotar a extrema direita no país.

O texto é uma resposta ao artigo “Governo Lula: balanços e perspectivas” de Rafael Leal no site da UJS: https://ujs.org.br/blog/noticias/governo-lula-balanco-e-perspectivas/


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