SOBRE A INTENTONA NA BOLÍVIA: CONTEXTO E CONSIDERAÇÕES
Reprodução: The New York Times

SOBRE A INTENTONA NA BOLÍVIA: CONTEXTO E CONSIDERAÇÕES

O que a esquerda brasileira pode aprender da situação recém-desenvolvida na Bolívia?

Caio Navajas e Soní Mazov 28 ago 2024, 17:05

O Estado Plurinacional da Bolívia é intimamente familiarizado com a instabilidade política. Desde sua formação, com os movimentos de independência da América espanhola, o Estado tem enfrentado diversos períodos de obscuridade sistêmica e polarização. Até mesmo olhares desatentos podem perceber os ecos desta instabilidade na política boliviana até os dias de hoje. Uma nítida expressão disso se deu na intentona que o povo boliviano presenciou no dia 26 de Junho de 2024, sob liderança do General Juan José Zúñiga.

Seria um descuido falar isoladamente do episódio sem antes contemplar os ocorridos na história recente do país. Uma personagem política muito controversa que não pode deixar de ser mencionada neste contexto é o ex-presidente Evo Morales, um dos responsáveis pela criação do partido dominante Movimento ao Socialismo – Instrumento Político para a Soberania dos Povos (MAS-IPSP). Conhecida figura no ambiente sindical dos cocaleiros, Evo fez um governo com tendências à esquerda e com grande foco na mobilização das populações nativas. O MAS-IPSP representa, politicamente, portanto, uma união entre os setores operários urbanos, o campesinato, os povos originários, e até mesmo a classe média, cuja expressão se deu na chapa presidencial de Morales.

Evo serviu um mandato de mais de uma década à frente do Executivo, reformando o país gradativamente em direção a uma economia nacionalizada e a uma política mais inclusiva à larga população indígena do país, a qual compõe a maioria esmagadora de 62% da população total da Bolívia. Ainda que permeado por contradições, seu governo foi um exemplo no combate à dependência em relação à países do Norte Global. Morales foi tão longe que chegou a alterar a própria constituição do país, transformando-o em um Estado Plurinacional ao invés de uma mera República liberal.

Tudo isso, entretanto, culminou em um fim esperado ao analisarmos as experiências da esquerda no passado recente da América Latina. Com tendências populistas e ambição pelo poder, Evo serviu por três mandatos, e tentou, com uma manobra jurídica, se candidatar a um quarto. Entretanto, seu plano não se materializou como esperado, sendo forçado a renunciar de seu cargo por um golpe de Estado efetuado pelos militares de alta patente. Com a sua renúncia, o vice-presidente da República e os presidentes do Senado e da Câmara também se afastaram da função, deixando um vácuo de poder sem precedentes na história do país. A então vice-presidente do Senado Jeanine Áñez, tal qual Napoleão, autodeclarou-se presidente interina após uma votação sem quórum no Senado. No entanto, o Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) decidiu favoravelmente a Áñez. Jeanine não hesitou em partir com uma Bíblia Sagrada em mãos para o palácio presidencial, afirmando para além das palavras seus planos para com os projetos do ex-presidente, isto é, de desfazê-los. Isto representou um verdadeiro golpe contra a democracia boliviana.

Findo o mandato interino da direitista Áñez, marcado por violentas repressões a seus opositores, as eleições no país elegem seu novo mandatário. Acusada formalmente pela Procuradoria Geral da República por crimes de golpe de Estado, Genocídio e Sedição, Jeanine Áñez é condenada a dez anos de prisão. As novas eleições convocadas resultam em uma vitória decisiva do MAS, que, mesmo em desvantagem, consegue ganhar o apoio da população. Entretanto, surge um dilema dentro do partido: Evo está inelegível, então como entrar no governo? Diante disso, o partido, com a sanção de Morales, escolhe um novo candidato; um membro crucial do governo Evo altamente respeitado na esquerda boliviana: um certo Luis Arce.

Luis Alberto Arce Catacora foi o Ministro da Economia da Bolívia durante o mandato de Evo Morales e é amplamente considerado o arquiteto do imenso crescimento econômico do país durante esse período. No tempo em que esteve à frente do Ministério da Economia, “Lucho” Arce, como é popularmente conhecido, levou em frente o projeto de nacionalizar a indústria do lítio. Desta forma, o país deixaria de ser um simples provedor de matéria-prima para nações como a Rússia e a China, o que seria uma maneira de auto afirmar a soberania nacional. Há, até, quem chame este projeto de “Arcenomics”. A política econômica do país apresenta características híbridas. Por um lado, estatizou setores importantes da economia, como o gás e as telecomunicações. Por outro, mantém relativa austeridade no que diz respeito aos gastos públicos, o que fez com que os déficits caíssem absurdamente. Em 2020, durante a pandemia, a Bolívia enfrentou um decrescimento econômico de mais de 8%, o maior em anos. Mas Lucho justificou afirmando que, naquele momento, os gastos eram necessários.

Nacionalizar uma indústria fundamental para o país, como a do lítio, não é tarefa das mais fáceis. Até que esta indústria comece, de fato, a se converter em lucros para o país, há escassez de investimentos fundamentais para o funcionamento da nação. Isto já é o que se observa atualmente, e explica tanto a desaceleração econômica quanto a queda na popularidade do presidente. Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), demonstram que o país não obteve nenhum lucro, este ano, com a venda de lítio.

Para piorar a situação de Arce, o MAS-IPSP, sob comando de Evo Morales, o expulsa formalmente, evidenciando uma nova divisão partidária. Os seguidores de Evo Morales lentamente se distanciaram de Lucho, buscando lutar para reeleger o antigo presidente ao invés de apoiar o novo. Entretanto, os seguidores de Luis que faziam parte do Movimento não reconheceram tal medida. Com isso, o dano estava feito, qualquer esquerdista médio na Bolívia tinha um lado nessa história. E o exército do Estado não era exceção.

Juan José Zúñiga, nomeado como General de Brigada durante o período Evo, fica sob os holofotes da mídia neste contexto. Conhecido como “General do Povo”, devido às suas conexões sindicalistas em movimentos de esquerda, o general evidencia suas ambições ao poder. Em 24 de Junho de 2024, Juan José fez diversas ameaças de prisão contra o ex-presidente Morales caso este tentasse se reeleger nas eleições de 2025. Entretanto, em reviravolta inesperada, no dia 26 de Junho, Zúñiga mobiliza suas tropas e invade os centros de governo do país, afirmando uma intervenção militarmente respaldada para “restaurar a democracia” e “retomar o país”. Após esta simulação de tomada de poder, os aspirantes a golpistas são presos.

A insensatez das escolhas do Executivo para militares de alta patente pode ter resultados catastróficos para a democracia. Muito da aproximação que ocorreu entre as forças armadas e a política no Brasil, por exemplo, deveu-se ao espaço que os generais ganharam na vida pública, inclusive durante governos petistas.

Nós, da esquerda organizada, precisamos ter cautela ao analisarmos uma situação internacional que envolve tantas nuances, e não podemos nos apressar em jogar pedras contra o, como diria Tom Zé, imperialismo pagão. As visões homogeneizantes da realidade podem ser uma irresponsabilidade para a nossa própria leitura política. O conflito interno no MAS reflete a instabilidade política dentro do próprio partido socialista. Além disso, mostra como disputas por protagonismo, evidenciadas por estas duas emblemáticas figuras políticas, Evo e Arce, podem servir, ainda que não intencionalmente, como munição para as nações imperialistas interessadas na exploração dos recursos naturais do país. É neste cenário de crise que florescem figuras como Zúñiga, que, mesmo tendo um histórico pessoal alinhado a movimentos sindicais, pode ser usado como um peão dos interesses do Norte Global.

Em suma, a esquerda brasileira tem muito a aprender com tudo isso. Nós devemos nos atentar à crescente e infinita balcanização ideológica do nosso espectro político, e até mesmo dentro do nosso partido. Temos, no PSoL, uma administração com um projeto de partido alinhado aos interesses do Governo Federal, que cada vez mais se distancia de seu projeto fundacional, de ser uma alternativa à esquerda e ao peleguismo, e se mostra menos combativo na forma de fazer política. Os governos de Evo Morales são ambos um exemplo e uma lição. São um exemplo de como podemos, mesmo enquanto países-alvo da exploração imperialista, liderar um projeto de autodeterminação nacional que contemple as multiplicidades do proletariado, e não os trate como uma base amorfa e apolítica que só existe para fins eleitorais, como vemos setores da esquerda hegemônica fazer no Brasil. Evo nos mostra que mesmo um governo dentro da democracia capitalista pode lidar com as burguesias nacionais e internacionais sem negligenciar o seu principal sujeito, o trabalhador. Contudo, o período de Morales nos dá, também, uma lição, um alerta sobre os perigos da centralização em torno de uma figura messiânica, como o próprio Evo se tornou, e das disputas por protagonismo subsequentes. Vemos figuras que foram, outrora, aliados, inclusive no combate ao golpe, e que pouco distinguem em termos de agenda, dividirem a base do partido. E sabemos o perigoso precedente que isso abre para o surgimento das mais macabras figuras, como o dia 26 de Junho de 2024 mostrou.


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