6×1: ôtra vez a trabalhá
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6×1: ôtra vez a trabalhá

“Nesse mundo, viver é trabalhar para pagar contas. É nisso que reside a beleza do nome ‘Vida além do trabalho’. É a possibilidade de apontar esperanças de um futuro em que a vida não se limite a trabalhar.”

Daniel Nadai 21 nov 2024, 10:40

Mas o que a gente ganha,

não pode tudo comprá

Não dá pra bem vivê

Não dá pra mim comê

Só dá prá continuá

Otra vez a trabalhá

Olho por olho

Dente por dente

A. Boal, Revolução na América do Sul

“Quem trabalha, sempre alcança”. “O trabalho dignifica o homem”. “Depois da tempestade, vem sempre a bonança”. “Deus ajuda quem cedo madruga”. “Trabalhe enquanto eles dormem”. Essas são as fraseologias de uma geração que foi jogada ao léu sem direitos trabalhistas, sem emprego, talvez com algum estudo, mas com certeza com um sonho: ter uma vida de qualidade. Nas últimas semanas, nas redes sociais, a posição de Noel Rosa vem dando lugar a de Wilson Batista quando cantou: “Vejo quem trabalha andar no miserê”, atualizado pela canção do grupo El Efecto que brinca: “Malandro é o cavalo marinho, que se finge de peixe para não ter que puxar carroça”. Trabalhar está cada vez mais desgastante e adoecedor. Trabalhar para produzir riqueza é fonte de misérias cada vez mais intensas.

No último dia 15, o movimento Vida Além do Trabalho (VAT) reuniu pessoas em diversas cidades do país para defender o fim da escala 6×1. A grande repercussão do tema nas últimas semanas se deu pelo esforço da deputada Érika Hilton em protocolar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que proibisse jornadas de 6 dias semanais, em favor de jornadas de 4 dias. Outras organizações também tentaram disputar a direção do movimento nos últimos meses, mas foi Hilton quem mais atraiu o jovem Rick Azevedo, principal líder do movimento.

Na proposta da PEC, o limite passaria de 44 horas semanais para 36 horas. Atualmente, as jornadas de 44 horas são divididas em 5 dias de 8 horas e 1 dia de 4 horas, com um dia de descanso remunerado na semana. Na proposta, aumentaria-se a quantidade de horas por dia para 9 horas, mas se diminuiriam o total de dias e de horas trabalhadas na semana. Na matemática simples: 9 x 4 =  36 horas. 

As mobilizações nas redes sociais começaram há cerca de dois anos, quando Rick Azevedo viralizou despretensiosamente nas redes sociais, depois de um desabafo por excesso de trabalho. Ele tinha acabado de voltar de uma licensa por problemas de saúde mental que a jornada de trabalho intensa lhe havia causado. Diante do viral, ele criou uma petição pública e grupos de Whatsapp para começar a pensar como organizar todas as pessoas que haviam se identificado com seu desabafo. De lá para cá diversos movimentos sociais, partidos e coletivos anticapitalistas buscaram se aproximar do VAT, reconhecendo a importância desse movimento. 

A pauta tem um apelo gigantesco, a tal ponto que Nikolas Ferreira, deputado da extrema-direita, foi acoado pelos comentários nas suas redes sociais de apoiadores que eram contrários à escala 6×1. Afinal, essa jornada de trabalho impossibilitava estudar para crescer na vida, dificultava o tempo em família, o tempo para a igreja, etc. O tema também demonstrou um potencial de unidade com outras categorias muito forte: há pouco, no Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes, junto com o secretário de educação Renan Ferreirinha, propôs a mudança na contagem de horas do trabalho das professoras e professores da rede municipal. Isso vai significar o aumento do tempo em sala de aula e, como a aula precisará ser da mesma forma planejada, consequentemente um aumento na jornada de trabalho. É o mesmo tema que o VAT! E uma das pautas do movimento dos entregadores dos últimos anos não é o aumento do valor mínimo de entrega, permitindo que o entregador bata sua meta com menos tempo de trabalho? Em outras palavras, igualmente a possibilidade de reduzir a jornada de trabalho! Claro que nem sempre a questão é essa, mas sem dúvida esse é um tema que todos os setores de alguma maneira experimentam: o excesso de trabalho.

Nos últimos anos, as legítimas pautas sobre racismo, machismo, LGBTfobia e todas as outras formas de opressão às identidades acabam em alguma medida girando em falso. Ou seja, apesar de serem demandas reais de setores da classe trabalhadora, a falta de um projeto comum à toda a classe dificulta a superação de uma visão “em caixinhas” da realidade. Cada opressão particular tem dificuldade de se reconectar com demandas cada vez mais universais que pudessem a pontar para um projeto radicalmente igualitário de sociedade. Com isso, elas acabam se tornando identidades afirmativas em si. Diferente da proposta fanoniana em que a afirmação da raça só tem sentido se servir para negá-la, acabar com a raça como modo de existência dessa sociedade – para ficar apenas na raça.

Ao contrário, a luta contra o 6×1 vem nos relembrar que o que define a gente, em última instância, é nossa negatividade: o que a gente não tem. Nós somos aqueles que não possuem nada além da nossa força de trabalho. Somos despossuídos de tudo, exceto nossa prole: daí o nome proletário. É nisso que reside nossa capacidade potencial de destruir esse mundo que se volta contra nós: o fato de que somos a maioria. 

Assim, a importância desse movimento é recolocar o debate sobre o trabalho no centro. Todos nós precisamos trabalhar para sobreviver. Alguns talvez sobrevivessem poucos dias sem receber seu salário, outros talvez sobrevivessem um pouco mais, semanas, talvez meses, quem sabe um ano. Mas no fim, todos precisamos dar a vida para o trabalho para só assim continuarmos a viver. Nesse mundo, viver é trabalhar para pagar contas. É nisso que reside a beleza do nome “Vida além do trabalho”. É a possibilidade de apontar esperanças de um futuro em que a vida não se limite a trabalhar.

Mesmo em condições muito diferentes, às vezes melhores, piores, ou só diferentes, todos temos vivido o aumento da jornada de trabalho nas últimas décadas em que as políticas neoliberais se afirmam como intensificação da jornada de trabalho; como contratos flexíveis e instáveis, o que constitui uma necessidade permanente de estar sempre no corre; contratos sem garantias em caso de doença, licença-médica, décimo terceiro, férias,  descanso remunerado, etc. Portanto, recolocar o trabalho no centro das bandeiras da esquerda tem um potencial muito grande de dialogar com a demanda concreta de uma maioria social. Nós temos que ter política para setores muito particulares, evidente que sim. Mas também precisamos reconstruir pautas mais amplas.

E vejamos como Rick, um homem gay, liderança do VAT, assim como a luta dos profissionais da educação da rede municipal, em sua maioria mulheres, quando põem as suas experiências como pontos de partida que apontam para além delas mesmas, para o que há em comum entre mulheres, LGBTs, negros e também trabalhadores brancos e heterossexuais, criamos uma faísca, mínima que seja, de luta em um período anestesiado de grandes enfrentamentos.

Contudo, aí começam alguns desafios. A pauta atual da redução da jornada de trabalho não pode se limitar a uma reivindicação parlamentar. Nas próximas semanas, temos que ir para as ruas em todas as mobilizações que o VAT chamar para pressionar o Congresso a votar favorável à proibição da escala 6×1 e por 3 dias de descanso remunerado. Mas essas mobilizações precisam significar a construção de ações em locais de trabalho. Formas de organizar a luta em cada shopping, em cada supermercado ou corredor de lojas. E nisso, o VAT pode ter um potencial de contribuição muito grande, que significa abrir o movimento, criar formas de democratização interna, com eleições de representações locais e da coordenação do movimento. Impedindo com que uma única figura centralize a pauta, por cima do conjunto da classe. Isso não significa deixar de reconhecer a importância que tem o Rick, figura fundamental para o crescimento dessa pauta. Mas é preciso não sucumbir à ilusão dos acordos parlamentares.

A PEC, desde já, apresenta limites. Como ela acabou de alcançar o número de assinaturas necessárias para começar a tramitar, ela ainda sofrerá muitas mudanças. Podendo ser à direita ou à esquerda. Mas como está, ela pode significar a redução do rendimento mensal para alguns trabalhadores 6×1 que parcela da renda está atrelada às horas de trabalho, como é o caso dos garçons que recebem gorjetas (incluídas ou não-incluídas na taxa de serviço). Isso pode concretamente representar uma perda salarial.

Mas o principal é que o baixo salário no Brasil fará com que muitas pessoas, em caso de aprovação da PEC, utilizem esses três dias de descanso de um trabalho, para fazer outro bico, como doméstica, entregador, segurança de eventos, etc. Ou seja, concretamente, uma parcela muito grande da população utilizará esse tempo de descanso como tempo de trabalho. Isto é natural dentro da lógica de precarização que vivemos nas últimas décadas. Já é comum trabalharmos em mais de um emprego, por conta de salários que mal pagam o básico. 

Em outras palavras, é a luta pela PEC e a percepção de seus limites que nos mostra que uma emenda à constituição que conseguisse reduzir a jornada de trabalho, sem se converter em novas formas de precarização, esbarra nos limites do regime de acumulação e do governo Lula, que se esforça por “beijar a cruz” da ortodoxia neoliberal pela enésima vez desde que o fez pela primeira vez, para tomar emprestada a expressão de Paulo Arantes. Muitas missas já estão sendo rezadas no Ministério da Fazenda. Dessa vez, não há dúvidas que Haddad já crê nas preces. Dessa vez, ele é o próprio entregador da grande empresa Brasil Delivery – é só pedir que eles entregam, às suas ordens. As contradições são impostas à luta por um governo que se ajoelha diante do Deus-mercado e aceita o neoliberalismo enquanto modo de gestão da crise. Essas contradições não significam de modo algum que devamos arredar o pé das ruas.

Aliás, diga-se de passagem, o neoliberalismo, a concorrência e o identitarismo são como pai, filho e espírito santo. O primeiro tem como marca uma época de crises, na qual se acentua a concorrência entre os trabalhadores, a guerra de todos contra todos por um lugar ao sol. Os prédios do entorno cresceram, reduziu-se o sol da piscina a um pequeno conjunto de raios. Os moradores disputam esse espaço como quem dependesse dele para viver. Porque realmente depende. Se, na direita, isso produz racismo, ódio aos imigrantes, crescimento da extrema direita, etc; na esquerda, se manifesta como identitarismo, que é a luta de opressões na forma de identidades fetichizadas. A luta de opressões que se converte em gestão dos conflitos sociais, como escreveu recentemente Douglas Barros – daí o papel das políticas públicas como canal para o qual os descontentamentos são direcionados e diluídos.

Mas assim evoluem (ou podem evoluir) as lutas: a partir de demandas que mobilizam, abrem-se horizontes para vitórias que, com o tempo, se mostram limitadas pelos objetivos que traçou e o palco das lutas que escolheu. Quando o palco e o objetivo são inicialmente traçados, os limites se apresentam, indicando um caminho para as lutas em palcos mais decisivos e objetivos mais ambiciosos. É na experiência que nos defrontamos (não como algo natural e automático) com os limites das lutas meramente econômicas. 

Uma outra preocupação que os socialistas precisam ter é em não se propor a administrar a economia para mostrar a viabilidade técnica da mudança. É isso que alguns economistas keynesianos (sempre eles) estão tentando fazer, rebatendo argumentos dos grandes empresários e políticos de direita. Segundos esses últimos, a proposta causaria um grande prejuízo para economia, cujos argumentos incluem a “baixa produtividade do trabalho no Brasil”. Os keynesianos querem mostrar suas contas e dizer que não, não há contradição entre o aumento dos direitos e da dignidade dos trabalhadores e o crescimento da acumulação capitalista. O nosso papel enquanto socialistas não é apresentar a viabilidade econômica da mudança, a solução de como administrar a economia capitalista evitando a crise. Não é que queiramos a crise, de forma nenhuma ela é boa para os trabalhadores – gera desemprego, redução salarial, etc. Mas na medida em que nos propomos a gerenciar o capitalismo, passamos a querer servir a dois senhores, ao capital e ao trabalho. E isto é impossível, um dos dois acaba dançando e você já sabe qual é. Nosso papel é organizar a classe trabalhadora, não a economia capitalista. Deixemos esse pepino para o PT e seus burocratas – que inclusive só terão esse pepino nas mãos se sentirem o calor das ruas no cangote. 

Assim, fortaleçamos a rua, a organização local, a luta do movimento VAT e da classe trabalhadora por uma vida que não seja determinada pelo emprego.


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