Epidemia das Bets: a nova faceta do capitalismo
A explosão das apostas online no Brasil escancara a aliança entre o capitalismo neoliberal e a cultura digital, onde influenciadores como Virgínia Fonseca lucram sobre o vício da juventude e da classe trabalhadora sedenta pelas aquisições sociais — um legado das ineficiências e da conveniência do Estado
Nos últimos anos, o Brasil mergulhou em uma epidemia silenciosa: a proliferação das apostas esportivas online, as chamadas “Bets”. Impulsionadas pela omissão deliberada dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, que legalizaram e deixaram de regulamentar o setor. Em meio ao agravamento da crise econômica, social e estrutural brasileira, essas plataformas transformaram o país em um vasto cassino digital, onde a juventude, o setor mais dinâmico da sociedade, é uma das principais moedas de troca.
O nascimento do Tigrinho: 7 anos de um azar sem precedentes
Em 2018, na rouquidão de seu mandato, Michel Temer sancionou uma lei que legalizou as apostas de quota fixa no Brasil. A medida abriu as portas para o mercado das bets, sem estabelecer regras claras para sua operação. A lei previa um prazo de até quatro anos para que o Ministério da Fazenda regulamentasse o setor — tarefa que foi completamente ignorada durante os quatro anos do governo Bolsonaro.
Essa omissão deliberada transformou o Brasil em um terreno fértil e sem lei para a atuação de empresas de apostas, muitas delas sediadas em paraísos fiscais, operando sem qualquer fiscalização ou tributação adequada. Enquanto isso, clubes de futebol passaram a estampar marcas de casas de apostas em seus uniformes, e influenciadores digitais promoviam essas plataformas sem transparência sobre os riscos envolvidos.
Um dos grandes símbolos dessa fanfarra dos aplicativos foi o, popularmente conhecido, tigrinho. Uma imagem lúdica de um tigre sorridente com uma aura dourada brilhante, induzindo o inconsciente das pessoas a ver uma falsa riqueza eminente. A mascote do Fortune Tiger, um dos aplicativos de caça-níquel mobile, virou um elemento do imaginário popular quase que imediato, aparecendo em letras de músicas, em aplicativos de mensagens e na linha de conteúdo das grandes redes sociais: Instagram, TikTok e outros.
O jogo do tigre e diversas outras plataformas viraram um fenômeno que envolve a dependência comportamental induzida por jogos de azar online. A combinação de cores, sons e a promessa de ganhos rápidos e fáceis, aliada à sensação de prazer induzida pela liberação de dopamina, pode levar a um comportamento viciante e compulsivo, com consequências negativas para a saúde mental, financeira e social dos jogadores.
Hoje, quase sete anos depois da lei sórdida de Temer, os relatos dos trabalhadores afundando em dívidas, agravados pelos problemas psicológicos e o aumento considerável dos casos de suicídios, assolam a realidade atual. Os danos sociais das mazelas dos jogos são imensuráveis e até agora os cassinos digitais seguem todos operantes e explorando até a última gota do povo com sua sede de lucro.
A juventude na mira do capital
A ausência de regulamentação permitiu que as bets se tornassem onipresentes na vida cotidiana da classe trabalhadora, especialmente entre os jovens. Essa promessa de ganhos fáceis e rápidos é uma armadilha que tem levado milhares de brasileiros ao endividamento e à dependência do jogo. Dados alarmantes revelam que cerca de 20% da massa salarial do país é destinada a apostas, e que um em cada quatro trabalhadores formais já apostou online no último ano.
A situação é ainda mais grave entre os beneficiários do Bolsa Família: cinco milhões de pessoas que recebem o auxílio utilizaram parte do benefício para apostar, movimentando quase 500 milhões de dólares em um único mês. Essa realidade escancara como o capitalismo neoliberal se aproveita da vulnerabilidade social e da desigualdade para lucrar, transformando o desespero em oportunidade de lucro.1
Nesse cenário, influenciadores digitais desempenham um papel crucial. Com milhões de seguidores, eles promovem plataformas de apostas como se fossem oportunidades inofensivas de entretenimento ou enriquecimento rápido. A influenciadora Virgínia Fonseca, por exemplo, foi convocada a depor na CPI das Bets para esclarecer sua relação com empresas de apostas online. Durante o depoimento, negou ter recebido percentuais sobre as perdas dos apostadores, prática conhecida como “cachê da desgraça alheia”.
Apesar das negativas, reportagens apontam que contratos de influenciadores com casas de apostas incluíam cláusulas que os beneficiam diretamente com base nas perdas dos usuários que acessaram as plataformas por meio de seus links de divulgação. Essa prática evidencia como a lógica do lucro se sobrepõe à ética, explorando a vulnerabilidade de jovens e trabalhadores.
A CPI das Bets e o teatro do poder
Diante de toda essa situação o debate sobre regulamentação foi ganhando mais força e pressão social, uma pesquisa em dezembro do ano passado mostrou que mais de 80% das pessoas não estavam confiantes nos esquemas e as denúncias de manipulação de resultados no futebol foram ganhando mais potência.2 No final de 2024, foi instaurada a CPI das Bets. A comissão pretende investigar a influência dos jogos de apostas online no orçamento das famílias brasileiras, possíveis ligações com organizações criminosas e o uso de influenciadores digitais para promovê-los.
A influenciadora Virgínia Fonseca, que deixou expresso no próprio silêncio da audiência e nas respostas vazias um sistema de exploração e uma política de propaganda e agitação de milhões de pessoas a serem enganadas. Esse depoimento revela a promiscuidade entre o capital e a cultura digital, onde a influência é monetizada às custas da miséria alheia.
A verdade é que a CPI não se passa de uma cena teatral, já ficou mais do que claro as irregularidades e ações criminosas nessas plataformas. Os parlamentares da direita se abstêm muitas vezes de comentar por conta das crises das casas de apostas pelo passado inconsequente de seus governos e pouco aprofundam a investigação por suas ligações com os grupos empresariais, interessados em blindar seus empreendimentos.
A necessidade de uma resposta socialista
A crise das bets é mais uma expressão da falência do modelo neoliberal, que mantém um mecanismo para explorar a parcela do trabalho do povo que não foi tomado pela burguesia e que põe o lucro acima da vida. A juventude, seduzida por promessas ilusórias, é lançada em um ciclo de endividamento e desespero, enquanto o Estado se omite ou atua em conluio com os interesses do capital.
É necessário lutar por uma suspensão imediata das plataformas criminosas e a criação de uma forte regulamentação e tributação rigorosa de todo o setor de apostas, se não a proibição completa, com foco na defesa do consumidor, além de preservar a saúde mental e a proteção social dos indivíduos lesados pelas casas de apostas. A luta contra as Bets é parte da luta mais ampla contra o capitalismo neoliberal, que transforma direitos em mercadorias e vidas em estatísticas.
- https://elpais.com/economia/negocios/2024-12-07/alarma-en-brasil-por-las-apuestas-online.html ↩︎
- https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/12/oito-em-cada-dez-brasileiros-desconfiam-de-bets-e-querem-regulacao-do-governo-diz-pesquisa.shtml ↩︎