A SAÍDA DE BARROSO DO STF E O QUE ESTÁ POR VIR
Reprodução: Metropoles

A SAÍDA DE BARROSO DO STF E O QUE ESTÁ POR VIR

Teremos mais um ministro terrivelmente evangélico, mas dessa vez com a benção de Lula. Para a surpresa de ninguém, novamente um homem branco indicado com o silêncio da esquerda rendida

Gal Carrez 24 nov 2025, 11:17

A aposentadoria de Luís Roberto Barroso deu ao presidente Lula o direito de fazer mais uma indicação ao STF durante este mandato, somando 3 no total. Por mais que eu gostaria de fazer aqui um apanhado da atuação do ex-ministro na Suprema Corte e comemorar a saída de um algoz dos trabalhadores, que priorizou jantares com o CEO da Ifood e o desmonte dos direitos trabalhistas, infelizmente a conjuntura de grande força da extrema-direita aliada ao rebaixamento político do governo federal me obriga a focar no que está por vir ao invés de criticar o que foi.

Barroso anunciou sua aposentadoria no dia 09/10/2025 e na semana seguinte Lula fez questão de sinalizar seu apoio a Jorge Messias, seu aliado político de longa data, atual Advogado-Geral da União, em uma reunião junto à lideranças evangélicas (religião de Jorge Messias e fator de peso em sua atuação ao longo dos anos) da Assembleia de Deus – dentre elas o deputado federal Cezinha Madureira do PSD.

Como é de costume do petismo, estamos vendo mais uma conciliação e um balcão de negócios do governo, na qual se entrega à direita a sinalização do avanço das pautas evangélicas reacionárias em troca do aceite de um nome pessoalmente próximo a Lula pelo Senado.

Do ponto de vista de alguém que acompanha cotidianamente o Supremo Tribunal Federal, a tendência é que Messias siga a trilha de desmontes de direitos trabalhistas pavimentada por Barroso e pela maioria dos Ministros do STF, trazendo preocupações quanto ao tema da pejotização. De forma resumida, está nas mãos do Supremo se a CLT seguirá enquanto uma Lei de garantia de direitos trabalhistas ou se todos os trabalhadores brasileiros poderão, sem qualquer restrição, serem submetidos à jornadas extenuantes e sem quaisquer direitos pela modalidade de contratação via MEI ou PJ (pessoa jurídica).

Ainda estamos muito aquém a nível de mobilização social sobre esse tema no qual o STF pode retroceder (já retrocede, na prática) ao nível de exploração da classe trabalhadora brasileira anterior à greve geral de 1920, acabando com a efetividade de direitos como férias, 13°, auxílio-doença, aposentadoria e demais benefícios sociais, sendo mais grave em relação às mulheres por também dizer respeito à licença maternidade e à igualdade salarial. O tema também afeta uma luta que tem sido cara para nós do MES, que em vários estados do Brasil denunciamos com centralidade o racismo do trabalho de entrega via plataformas digitais que mata e debilita uma quantidade absurda de homens negros por acidentes de trânsito todos os anos. Merece destaque aqui a atuação dos mandatos da Luana Alves (PSOL-SP), Professor Josemar (PSOL-RJ) e Fábio Félix (PSOL-DF) que aprovaram ou protocolaram projetos de proteção a esses trabalhadores – que também podem perder efetividade a depender do que o STF decidir – e que fazem um debate super qualificado sobre racismo no Direito do Trabalho. A tendência é a expansão desse modelo predatório e de descarte de vidas trabalhadoras para todos os setores, já que com a pejotização não há qualquer comprometimento com o meio ambiente de trabalho saudável e não há recolhimento das empresas para custear os problemas enfrentados por trabalhadores que se acidentam ao trabalhar – elemento importantíssimo da CLT.

Ao invés de estarmos nos preocupando com a condição objetiva das nossas vidas e lidando com a tarefa histórica que se coloca para nós na defesa dos direitos trabalhistas, a pauta do dia é ter aliados de Lula no STF e a necessidade de fazer acenos à direita. Ao invés de barganharmos por um Ministro do STF com base na sua opinião sobre se a juventude deve ter ou não o mínimo dos direitos trabalhistas e se ela vai poder se aposentar, conciliou-se de forma à ceder aos evangélicos fundamentalistas em detrimento de setores já extremamente precarizados – e a partir daqui o meu local enquanto pessoa trans se intersecciona bastante com o local de alguém que estuda direito.

Quando li a matéria sobre a reunião de Lula com os bispos evangélicos achei que se tratavam de lideranças do Rio de Janeiro (são de São Paulo), porque coincidentemente o bairro onde moro também se chama Madureira. E realmente faria todo sentido se fosse, porque o trabalho de base evangélico na periferia do Rio de Janeiro é assombrante.

Todos os dias de manhã eu preciso me deslocar de onde eu moro até o centro da cidade, que é onde está localizado o prédio da Faculdade Nacional de Direito (FND), e todos os dias de manhã eu passo pelos crentes fixos e os eventuais.

Eu saio de casa e, no caminho até a estação de trem, passo pelas banquinhas de oração da igreja da graça de deus. Depois dessas senhoras, eu subo pela passarela para entrar na estação e passo pelo senhor apelidado de “pastor” que grita todos os dias em nome de seu deus e vende café para as pessoas com pressa pela manhã. Esses são os fixos. Sem falta estão lá.

Os eventuais aparecem mais dentro do trem ou em ocasiões especiais. Ao menos duas vezes na semana tem o grupo que faz culto dentro do vagão na mesma hora que eu pego o trem e nos faz escutar o culto até a Central do Brasil. De algumas semanas para cá fiquei constrangida quando um senhor pregou sozinho no vagão dizendo na minha direção (eu somente existindo sendo claramente uma pessoa trans indo para a faculdade) coisas como “o problema foi adão ter ouvido sua mulher”, “homem com homem e mulher com mulher é sodomia” e etc.. Não adianta falar, porque sou eu sozinha contra um fanático no meio de pessoas cansadas na maioria das vezes, mas a cereja do bolo foi quando todas as vezes que eu ficava visivelmene incomodada uma senhora que estava sentada começava a cantar baixinho sua música. Eventualmente eu percebi que ela estava cantando música evangélica e fazia isso para se proteger de mim, como se eu fosse o próprio demônio encarnado de saia. Esse é um caso simples, muitas travestis passam por coisas muito piores, mas é só para ilustrar o quanto, em um governo de conciliação de classes, quem está no poder se apoia nos setores que possuem peso de intervenção na realidade – do jeito que seja – em detrimento daqueles que ficam quietos. E é por isso que é tão importante existir uma esquerda independente, porque por mais que o petismo pinte a farsa de identificação com o povo, a conciliação é sempre com os direitos dos outros e nunca com os deles.

Fica aqui também um chamado aos movimentos sociais e às pessoas trans com comprometimento com a pauta dos trabalhadores. Não dá mais para vermos pessoas cis nos usando enquanto bode expiatório ou moeda de troca dos interesses da dita “governabilidade” e realizando debates para os quais elas não foram chamadas. Mas também temos que romper com uma lógica personalista e rendida que as lideranças que nós nos referenciamos pautam a política. As referências que temos no Congresso Nacional em figuras como Erika Hilton e Duda Salabert, por mais que sejam importantíssimas, não devem tirar da vista a importância da independência política. Infelizmente, a defesa do programa de conciliação do governo Lula impõe limitações como a ausência de uma atuação contundente contra o RG transfóbico, o silêncio sobre a proibição da utilização de pronomes neutros aprovada em aliança da extrema-direita junto ao centrão e o PT (e sancionada por Lula), além do silêncio mais essa indicação de um homem branco ao STF – que dessa vez vem com o bônus da ideologia fundamentalista de posição sub-humana das pessoas trans em relação ao resto. Até mesmo para as pautas “não identitárias” essa falta de independência cobra caro, porque o voto de Jorge Messias sobre a pejotização também ditará se a escala 6×1 acabará de fato ou não.

É de fato o fio da navalha. Fazemos parte daqueles que lutaram contra Bolsonaro, bem como as políticas e indicações reacionárias de seu governo. Por mais que sejamos atacados tanto pelos bolsonaristas quanto pelos petistas – um lado nos responsabilizando pelas contradições do governo e outro dizendo que não podemos falar de Lula – devemos continuar com a postura independente que firmamos desde o início. Ou seja, para nós a eleição de Lula significou um fôlego democrático que só faz sentido se formos à luta e mobilizarmos, porque de nada adianta o direito de protesto se devemos nos abster de exercê-lo em nome de um governo que só apoiamos para que nosso país não caísse em um regime de exceção.

Independentemente de qualquer coisa, o STF permanecerá enquanto uma instituição de caráter burguês, bem como é o parlamento e como comumente são os governos. O que não dá para ser é vermos mais um ministro terrivelmente evangélico e fingir que está tudo bem em nome de um pacto que está fadado a rifar os setores explorados e oprimidos para defender um governo que diz se pautar pelos nossos interesses. Vamos à unidade de ação contra a extrema-direita em defesa da democracia, mas temos que marchar separados para a defesa dos nossos interesses – mais tarde podemos não ter a oportunidade de lutar com a liberdade que temos hoje e a tarefa será ainda mais difícil.


Imagem O Futuro se Conquista

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