O CAMINHO É PELAS RUAS
Primeiras reflexões sobre os atos contra a PEC da Blindagem e contra a anistia que levaram milhares de brasileiros as ruas de todo o país, rompendo com tendência de imobilismo dos últimos anos
Nesse último domingo, 21 de setembro, o Brasil assistiu uma grande maré se formar nas ruas dos 4 cantos do país. Liberando uma indignação que vinha se acumulando nos últimos meses, os atos contra a PEC da Blindagem e contra a anistia voltaram a colocar o protagonismo das mobilizações de rua nas mãos da esquerda, pautando uma agenda de reivindicações contra o fascismo, o golpismo e a corrupção que sustenta o projeto de morte daqueles bolsonaristas que seguem atentando contra a democracia e o povo brasileiro.
O Congresso, inimigo do povo, nesta semana, vergonhosamente consolidou em uma unidade do centrão e da extrema-direita o avanço da política golpista e anti-povo. A chamada PEC da Blindagem, aprovada na calada da noite, é mais um ataque direto contra o povo e a frágil democracia brasileira. Busca garantir que deputados golpistas e corruptos não possam ser responsabilizados por seus crimes, criando mecanismos de impunidade em defesa do que há de pior na política nacional. Ao mesmo tempo, esse mesmo Congresso aprovou no mesmo dia o regime de urgência para pautar a anistia dos criminosos do 8 de janeiro, uma combinação que escancara a tática do centrão e da extrema-direita: blindar golpistas e corruptos de ontem e de hoje, enquanto seguem atacando os direitos do povo trabalhador.
Por isso, as mobilizações realizadas no último dia 21 de setembro expressaram não apenas um importante espírito de luta e resistência, mas também um sinal de que existe, no interior da sociedade brasileira, uma energia social latente disposta a se levantar contra os retrocessos. Os atos surgiram como uma resposta rápida, contundente e organizada aos absurdos pautados pelo congresso na semana passada, e conseguiram mobilizar milhares por todo o Brasil. E agora, cabe a nós refletirmos: como seguimos adiante?
Um maremoto em meio à “calmaria”
Diferentemente de outros momentos recentes, em que o Congresso Nacional conseguiu avançar em ritmo acelerado sobre direitos sociais, trabalhistas e sobre as já frágeis estruturas democráticas, a PEC da Blindagem encontrou, desta vez, resistência nas ruas. O que vimos no domingo não foi apenas mais uma manifestação: foram as ruas tomadas em peso, em várias capitais do país, numa resposta firme, massiva e unificada contra a tentativa de blindar corruptos e golpistas. Essa reação ganha ainda mais relevância quando lembramos que, mesmo diante do julgamento histórico do STF, que pela primeira vez condenou generais golpistas e o próprio Bolsonaro, não houve mobilização popular que ocupasse as ruas com a mesma força. Parte dos setores governistas, naquele momento, preferiu apostar exclusivamente no caminho institucional, confiando que a Justiça burguesa daria conta, sozinha, de punir os responsáveis pela tentativa de golpe. O resultado mostrou os limites dessa confiança: embora alguns golpistas tenham sido condenados (incluindo Bolsonaro) , a reação imediata da extrema-direita no Congresso foi justamente aprovar a PEC da Blindagem, abrindo espaço para mecanismos de anistia e proteção dos seus aliados.
As mobilizações, no entanto, não surgem do vazio político. Em que pese uma estratégia consciente da esquerda institucional em desmobilizar constantemente as mais diversas pautas que vem surgindo na sociedade em nome da conciliação e de uma suposta governabilidade até então, a verdade é que após os ataques de Trump ao Brasil e ao STF em particular, as sucessivas tentativas de boicote das pautas populares pelo congresso – como o fim da escala 6×1 e a isenção do IR para quem ganha até 5 mil – e a criação da palavra de ordem “Congresso inimigo do povo”, somada a prisão do Bolsonaro e as diversas tentativas da direita em anistiá-lo construiu uma nova situação conjuntural no Brasil. Assim, diante de um cenário de defesa do país contra os ataques imperialistas dos EUA que buscam não apenas livrar a cara dos golpistas, mas também aprofundar o grau de dependência econômica brasileira, o Congresso pautar no mesmo dia dois projetos que buscam salvaguardar os interesses de golpistas e corruptos soou caiu a gota d’água da indignação popular contra tais absurdos.
Portanto, o que se viu foi, por um lado, a confirmação de que estamos passando por uma nova etapa do desenvolvimento da luta antifascista que coloca na ordem do dia a luta anti-imperialista, que deve ser materializada na ação contra os corruptos e golpistas, emparedando-os como principais promotores da tentativa de subordinação do país. E, de outro lado, que mesmo não colocando grande peso, há limites na política de pacificação via conciliação de classes da esquerda institucional. Pela gravidade da situação e pelos deslocamentos políticos da base do Governo no Congresso, essa parcela foi parte da convocação dos atos, demonstrando, nesta dialética de contradições, os próprios limites da conciliação como projeto de governabilidade. Em última instância, as movimentações de domingo, ao extrapolarem os próprios limites da burocracia governista, mobilizando além do que esperavam, escancaram que não se pode ter em mente a correlação de forças como mera contagem de garrafinhas no Congresso, e que é em movimentos de massas como este que de fato a disputamos.
O cenário internacional e o surgimento de lutas ao redor do mundo
Não menos importante, é fundamental apontar que também há uma série de convulsões sociais acontecendo ao redor do mundo. Os últimos dois meses deram lugar para fortes mobilizações populares contra governos autoritários no Nepal e na Indonésia, uma forte reação da população francesa contra as medidas de austeridade fiscal promovidas pelo governo Macron, que também espelha seu caráter antipopular, e, na onda das manifestações em solidariedade à Palestina contra o genocídio promovido pela entidade sionista que vêem crescendo a media que se aproxima a “solução final” criminosa de ocupação da Faixa de Gaza pelo governo de Netanyahu, está se desenvolvendo uma greve geral em toda a Itália. O mundo assiste, em meio à escaladas autoritárias e criminosas de governos neofascistas, as respostas em forma de mobilizações massivas e populares, que podem reverberar no Brasil.
O que explica a escalada autoritária de países como os EUA e israel é justamente o impasse que o neofascismo se encontra. De um lado, emparedado pela emergência do imperialismo Chinês que toma o antigo lugar do império americano pela força da sua indústria, e, por outro, pela incapacidade de aplicar derrotas contundentes contra a classe trabalhadora em seus países de origem. Diante de uma crise multifacetada do capitalismo global, o neofascismo, ainda que não esteja efetivamente derrotado – a capacidade de seguir promovendo um genocídio televionado e levar multidões as ruas é prova disso -, vem demonstrando abrir brechas importantes para respostas populares.
No cerne destas respostas, está a capacidade da mobilização de apontar um desafio ao status quo. Seja através da luta em solidariedade à Palestina que passa pelo enfrentamento à medidas autoritárias de repressão policial, seja no enfrentamento à austeridade de Macron – que está no cerne do programa burguês de reacumulação de capitais frente a crise prolongada -, seja na revolta incendiária encampadas pelas juventudes da Indonésia e do Nepal, os contornos das lutas têm apontado para questionamentos da própria ordem vigente.
Para onde vamos agora?
As mobilizações do último domingo apontam, assim, dois elementos centrais para a conjuntura: primeiro, confirmam que tomar as ruas em fortes mobilizações continua sendo um método imprescindível, não apenas para contrapor a ocupação da extrema-direita, mas também para disputar o próprio sentido da anistia que hoje se negocia no Congresso. Não podemos aceitar uma punição simbólica ou “leve” aos golpistas do 8 de janeiro. Para que isso não ocorra, a mobilização permanente será fundamental. Segundo, indicam que os atos não podem ser encarados como um fim em si mesmos. As ruas já demonstraram existir uma disposição real de luta contra a extrema-direita, mas para levar essa batalha até as últimas consequências — e derrotá-la de fato — é necessário construir um polo antifascista na sociedade, capaz de unificar esses setores e dar continuidade a esse enfrentamento.
Essa construção, no entanto, está condicionada a uma questão essencial: como seguir essa batalha indo além dos limites da institucionalidade, que já se mostraram insuficientes? A ausência de respostas das ruas aos ataques do Congresso abre margem para outros retrocessos e é alimentada pela aposta de determinados setores da esquerda exclusivamente na institucionalidade. As mobilizações do último domingo demonstraram, de forma prática, que esse caminho isolado está equivocado.
O fato concreto é que há um setor expressivo da sociedade disposto a se mobilizar contra o bolsonarismo e a extrema-direita. Esse setor pode, e deve, ser aglutinado sob a perspectiva de um polo antifascista, capaz de impulsionar novas jornadas de luta e de sustentar mobilizações da mesma magnitude das que vimos agora e que temos visto ao redor do mundo.
Os atos do dia 21 de setembro representaram mais do que um momento isolado de protesto; mostraram que existe base social, disposição e energia para uma luta de longo fôlego contra a extrema-direita e de resistência aos ataques do Congresso. A tarefa que se coloca à frente é transformar essa energia em organização permanente, capaz de disputar o rumo do país, superar os limites do jogo institucional e impor derrotas reais à extrema-direita. Se a PEC da Blindagem encontrou resistência, é porque existe campo para fazer crescer uma alternativa que vá além do “Sem Anistia” e construa um projeto antifascista sólido, capaz de impedir novos retrocessos e abrir caminhos para avanços profundos.
Não há negociação possível com um Congresso inimigo do povo. A nossa resposta tem que ser nas ruas, com organização, e confiança na mobilização popular. A experiência dos atos de ontem aponta o caminho: é possível transformar indignação em luta e luta em força real contra os inimigos da democracia e dos direitos. É preciso seguir apostando na mobilização, para derrotar a PEC da Blindagem e todo o projeto golpista e anti-povo que ela expressa.