Cotas Sociais: Do que as estaduais de SP tem medo?
Na semana passada, tivemos uma grande vitória no STF, que julgou as cotas raciais como constitucionais. No mesmo momento, as três universidades estaduais paulistas deram o seu recado: continuarão se recusando a usar o sistema de cotas para a entrada de mais negras e negros em seus cursos.
Na semana passada, tivemos uma grande vitória no STF, que julgou as cotas raciais como constitucionais. No mesmo momento, as três universidades estaduais paulistas deram o seu recado: continuarão se recusando a usar o sistema de cotas para a entrada de mais negras e negros em seus cursos. Diante desse cenário, relembramos aqui um texto de 2009 do site da Rede Emancipa de Cursinhos Populares, que trata do assunto. Apesar de quase três anos, a análise continua, infelizmente, atual.
Cotas Sociais: Do que a USP tem medo?
Maurício Costa*
Em 2009 a Universidade de São Paulo completa 75 anos. Em meio às “comemorações”, a realidade bate às portas da USP e a grita pela reserva de vagas a estudantes de escola pública ou simplesmente “Cotas Sociais” começa a reverberar dentro e fora de seus muros. Não por acaso: apesar das crescentes dificuldades em nossa sociedade injusta, desigual e em crise, a política de acesso à universidade pública e ao importante conhecimento produzido nela mantém a visão elitista e caquética das origens uspianas.
Todos sabemos que a demanda pelo diploma universitário cresce a cada ano entre os jovens mais pobres como exigência de um mercado de trabalho restritivo, com poucas oportunidades. Contudo, não é na universidade pública que essa demanda encontra respostas. De acordo com reportagem recente de um portal de grande circulação da Internet, de 2001 a 2009 aumentou em 36,4% a proporção de ingressantes na USP com renda superior a R$ 5 mil ao passo em que entre os que vivem em famílias que ganham menos de R$ 1,5 mil, a taxa caiu 34%. No vestibular 2009 a proporção de calouros entre os mais ricos chegou a 40,4% do total, enquanto 12,2% estavam entre os mais pobres.
Esses dados só revelam a lição que todo aluno do ensino médio da rede pública estadual é obrigado a aprender desde cedo: a USP não é feita para eles. O caminho passa a ser então o de buscar o ingresso nas universidades- empresa que se espalharam como uma nuvem de gafanhotos pelo país, ávidas para abocanhar esse importante filão do mercado. Proliferam-se no mais das vezes como verdadeiras fábricas de diploma onde a regra é a educação-mercadoria, o aluno-mercadoria e o lucro em detrimento da livre produção de conhecimento assentada no tripé ensino-pesquisa- extensão. Ocupando o lugar das públicas entre as maiores em números de alunos, essas instituições gozam de farta isenção de impostos e seus donos – chamados de “tubarões do ensino”- passam a figurar no rol dos empresários mais ricos do país.
Evidentemente há exceções (pouquíssimas) que confirmam a regra. Mas no fundo o que há é um avanço empresarial na concepção de educação que fundou a USP há três quartos de século com a ideia de que se deveria garantir ensino básico para os pobres, ensino médio e técnico para as camadas sociais médias e ensino superior de excelência para a “grande elite ilustrada” que conduziria os rumos do país. Hoje essa “elite ilustrada” ocupa tanto as reitorias das universidades públicas quanto os escritórios das universidades- empresa e atua unida no mesmo compasso para garantir não só que se mantenha a desigualdade no acesso ao saber, mas também para assegurar que a demanda pela educação entre os mais pobres seja fonte de novos lucros.
Esse quadro de universidade pública e gratuita para alguns ricos não é privilégio da USP. No geral a maioria das universidades públicas federais no Brasil ainda preserva uma grande desigualdade social no acesso e na permanência de alunos. Contudo, diferentemente da USP, da Unesp e da Unicamp, um grande número das federais já tem adotado o instrumento de Cotas, refletindo uma conquista decorrente de muitas lutas por dentro e por fora de seus muros. São os casos da estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e das federais do Rio Grande do Sul (UFRGS), do Paraná (UFPR), de Brasília (UnB), da Bahia (UFBA), por exemplo, onde as Cotas Sociais, com ou sem recorte racial, têm alterado visivelmente o corpo docente e discente. Funcionam como instrumento de “desnaturalização” da posse da produção acadêmica por uma minoria branca, rica e privilegiada.
Mas e a USP? Até quando a audição seletiva da burocracia universitária e do governo do Estado escutará somente o canto da sereia das elites paulistanas? Até quando continuaremos circulando nos corredores da universidade achando que ela é propriedade de uma fatia dos brancos e ricos do Estado? Até quando vamos achar natural que os advogados, os médicos, os engenheiros, os professores e intelectuais sejam formados sem ter vivenciado o que a maior parte da população vivencia no dia-a-dia miserável de nossas metrópoles?
Por aqui, os detratores das políticas de reserva de vagas têm visto seus argumentos caírem por terra em virtude dos resultados que as políticas de Cotas vêm alcançando. O principal deles, de que haveria acentuada queda no “nível acadêmico” com o novo público, mostrou-se redondamente equivocado: dados recentes coletados pela Revista da Associação dos Docentes da USP evidenciam que, no mais das vezes, o desempenho acadêmico dos cotistas mostrou-se semelhante ou superior aos dos demais estudantes. Na UFBA, por exemplo, em 11 dos 18 cursos de maior concorrência o rendimento dos cotistas foi superior.
O resultado tem sido tão positivo que as pesquisas de opinião têm mostrado que a maioria dos brasileiros concorda com o sistema de reserva de vagas nas universidades federais. Segundo o instituto Datafolha, 75% da população é totalmente favorável, 11% concorda em parte e apenas 10% discorda das Cotas Sociais. No Senado está em tramitação um projeto de lei, já aprovado pela Câmara dos Deputados, que institui a reserva 50% das vagas nas federais para estudantes que fizeram ensinos fundamental e médio em escolas públicas. Por que as estaduais paulistas ficariam de fora desse debate? Semelhante projeto, de autoria do deputado Carlos Giannazi, também está em tramitação na Assembléia Legislativa de São Paulo, propondo a reserva de metade das vagas também para USP, Unesp e Unicamp a estudantes da rede pública.
Como tentativa frustrada de oferecer uma opção às cotas, a reitoria da USP tem adotado um sistema de “inclusão” que se demonstrou um fracasso total, ineficaz até mesmo para a propaganda encomendada para mostrar a face “democratizante” da universidade. O “Inclusp”, anunciado como o “programa que combina a inclusão social com o mérito acadêmico”, naufragou com seu risível programa de bônus que em 2009 não chegou a ajudar nem 1% dos vestibulandos da rede pública, causando discórdia até com sua “aliada” secretaria de educação do Estado de São Paulo, que decidiu parar de financiar a avaliação seriada ligada ao programa.
Ao se recusar a implantar as Cotas Sociais, a direção encastelada na USP caminha na contramão da história, agarrando-se ao passado enquanto as demandas sociais tentam lhe arrancar o futuro. Não quero dizer que as cotas são a solução para a todo o problema em que vive a educação pública, nem que a educação seja a panacéia que irá resolver os problemas de todo o povo brasileiro. Contudo, o educador Paulo Freire já nos contava que “a educação modela as almas e recria os corações. Ela é a alavanca das mudanças sociais”. É nítido que está aí – nas mudanças sociais que o acesso dos pobres à universidade pode representar – o grande motivo do temor e da enorme resistência da USP às verdadeiras políticas de democratização do acesso e de produção do conhecimento.
*Mauricio Costa é fundador da Rede Emancipa de Cursinhos Populares e corresponde do Juntos SP