INTERESSE PRIVADO SENDO IMPOSTO À UNIVERSIDADE PÚBLICA: O QUE NOS REVELA A INSTALAÇÃO DE UMA FACULDADE PRIVADA DENTRO DO CAMPUS DA USP?
Prédio da BTG Pactual

INTERESSE PRIVADO SENDO IMPOSTO À UNIVERSIDADE PÚBLICA: O QUE NOS REVELA A INSTALAÇÃO DE UMA FACULDADE PRIVADA DENTRO DO CAMPUS DA USP?

Faculdade do BTG Pactual, banco fundado por Paulo Guedes, será instalada no campus da USP, o que abre espaço para pensar sobre a validade do caráter público da universidade e sua relação com a democracia e os interesses privados.

Felipe Primo e Wenid Queiroz 30 ago 2021, 19:25

É já histórico o projeto das elites para o sucateamento do ensino superior brasileiro, sobretudo o público. Se se fizesse uma genealogia da educação universitária em nosso país, ficaria evidente que ela, ao longo de seus mais de duzentos anos, tem servido aos interesses das classes dominantes. Com a instauração das primeiras faculdades de direito, em São Paulo e Pernambuco, lá na década de vinte do século dezenove, a burguesia e o grande latifúndio puderam consolidar sua influência nas entranhas burocráticas do Estado, criando um círculo vicioso de poder no qual, seja na grande propriedade, seja no aparelho estatal, a conveniência dos atos servia sempre a grupos muitíssimo específicos. 

  A criação da Universidade de São Paulo, em 1934, sob via igual, não deixa de estar ligada às mesmas agendas: já na época havia jornais afirmando que a modernização, opondo-se à suposta barbárie precedente, viria com aquela instituição, criada para o advento de uma nova elite cultural, de uma “classe ilustrada”, cujos valores eram os mais elevados de iluminação e liberalismo, sem os quais o atraso da nação se faria perenemente presente.

    Apesar da tentativa histórica de manter a Universidade de São Paulo enquanto mantenedora dos interesses elitistas, excludentes e que serviriam ao capital, os movimentos sociais da universidade, em especial o movimento negro e estudantil, se fizeram presentes e conquistaram a popularização da Universidade, por meio da adoção, em 2017, do ingresso através de cotas étnico-raciais e sociais, bem como programas de permanência estudantil (ainda incipientes, dada a reitoria elitista da USP). A partir dessa conquista estudantil, a USP poderia ser fortalecida enquanto Instituição pública, autônoma, social, referenciada e caminhando para se desprender de amarras com a elite brasileira e governos neoliberais, contrapondo os interesses da atual gestão da reitoria e do Governo Estadual do PSDB.

No entanto, em julho deste ano, fomos surpreendidos com mais um grande ataque ao caráter público da USP: uma instituição de ensino superior privada, criada por sócios do banco BTG Pactual (cujo fundador, junto de outras pessoas, é o atual ministro da economia, Paulo Guedes), será instalada no campus da Cidade Universitária, usando a infraestrutura do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), com mensalidades, segundo seus líderes, estando alinhadas com outras faculdades de prestígio da área. A meta, segundo o projeto “Open Experience”, é criar algo parecido com o MIT ou um Vale do Silício brasileiros. Embora tenha encontrado resistência por parte de dezenas de entidades estudantis, as aulas estão previstas para começarem já no primeiro semestre do ano que vem, contando com pouco mais de duzentos alunos e com previsões de expansão desse corpo discente.

A instalação privada será feita no IPT, Instituto de Pesquisa Público sediado no campus Butantã e que está sendo desmontado pelo Governo Dória. Há vinte anos, o Instituto tinha 1500 servidores, hoje conta com apenas 700, além da falta de reajuste salarial por 3 anos consecutivos e falta de investimento que garanta o funcionamento e andamento das pesquisas no Instituto¹. Ou seja, enquanto o IPT é sucateado, uma Instituição Privada utilizará de sua infraestrutura. Um projeto proposital de entreguismo batido do neoliberalismo: desinvestir, argumentar que não está funcionando e iniciar o processo de privatização como “solução”.

O governador do estado, João Dória, afirmou ser esse um bom negócio, com imensa possibilidade de retorno do investimento à própria comunidade universitária. Mas por que é necessário discordar disso? Em que sentido a instalação de uma faculdade privada no campus pode comprometer todo um caráter público e autônomo da Universidade de São Paulo?

A universidade pública é um local de destaque num corpo social. É nela em que se promovem os principais debates, nela se ensina, nela se pesquisa e dela saem os conhecimentos que irão transformar a comunidade ao seu redor e toda uma nação, abrangendo o teor de ensino e pesquisa críticos, contra hegemônicos e que não se estruturam a partir da mera disseminação pró-mercado, ao contrário, visam contribuir com a sociedade. Nela se qualificam os principais quadros do mercado de trabalho brasileiro – pensar assim, contudo, é reduzir a lógica da universidade à mera abstração do capitalismo: vale mais dizer que é nela que estão boa parte das pessoas que vão poder, como disse Paulo Freire, formarem-se e reformarem ao formarem a si mesmos e serem formados. Uma universidade pública é, portanto, setor estratégico: o ensino, pesquisa e extensão possuem a potencialidade de carregar em suas mãos o futuro de um povo, devendo estar alinhada com interesses populares em todas as áreas do conhecimento. Deve, nesse sentido, ser democrática, já que uma instituição que atenda apenas a determinados setores da sociedade não é senão excludente e, por conseguinte, estratificadora e segregacional. A universidade pública deve ser democrática; enquanto não for assim, não pode ser verdadeira e plenamente pública.

Quando uma instituição privada ligada a banqueiros deseja instalar-se dentro do campus de uma das mais importantes universidades do país, a única interpretação possível para tal fato não pode ser diferente disto: é um ataque, um movimento de privatização da riqueza coletiva, um ceifamento das possibilidades de acesso e permanência dentro da universidade que supostamente deveria atender aos interesses populares, sendo esta medida uma clara tentativa de fortalecer a USP e seu espaço para servir ao capital. É uma privatização, contudo, sorrateira, na medida em que acontece aos poucos, em meio à pandemia, sem consulta ou ciência do corpo universitário e do IPT, além de promessas de retornos etéreos, impalpáveis. Suas consequências, todavia, são claras e concretas: cada vez mais, populações histórica e estruturalmente marginalizadas vão voltar a não frequentar espaços que lhes foram sempre negados e a universidade pública voltará a atender interesses da elite, não do povo. E tudo isso graças a um projeto imposto e muito bem arquitetado, que adotou o modos operandi do Governo de João Dória (PSDB): o teor unilateral, sem transparência e autoritário. Estando presente a retórica de “modernização”, instituída pelo neoliberalismo para justificar todas as medidas que vão em direção ao desmonte completo dos serviços e Instituições públicas; retórica adotada, inclusive pela própria reitoria da USP para impor projetos de sucateamento. A implantação, supostamente, tem o interesse de instaurar no Brasil algo como uma paródia do “primeiro mundo”, segundo seus fundadores. Algo fora de nosso contexto, de nossa herança. Algo que exclui pretensiosamente tudo o que não for os que sempre excluíram, porque uma instituição privada que invade e cerca o lugar público não tem outro querer.

Resta a nós, que acreditamos nas nossas próprias forças, as forças do povo, do plural, as forças dos que sempre tiveram que ter força para resistir, nos indignarmos e lutarmos contra isso. Lutarmos coletivamente pelo que é, por essência, coletivo e deve atender aos interesses populares, não de uma diminuta parcela do empresariado. Lutarmos pela universidade pública e seu caráter popular e social, é também lutar pela democracia, pela liberdade e pela igualdade. Lutarmos para que a USP exerça suas potencialidades, tendo consciência que qualquer medida de vinculação da Universidade com Instituições ou interesses privados deturpa o papel popular que uma Universidade Pública deve ter. A barbárie que está sendo imposta na Universidade por parte da Reitoria, João Dória, PSDB e elite brasileira é oposta aos interesses públicos do ensino, pesquisa e extensão da USP, por isso, a massificação e mobilização se faz urgente, para impedir novos retrocessos e reverter as imposições que modificam o caráter de uma Universidade Pública.

Fontes:

¹ https://www.adusp.org.br/index.php/defesauniv/4204-ipt-ibtcc


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