Um breve balanço sobre a greve na Medicina USP
Um chamado para politização e radicalização do movimento.
Em 07/03/2024 foi deflagrada a greve dos estudantes de medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), tendo como estopim a notificação extrajudicial enviada pela diretoria da Faculdade para o Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC) a qual ameaçava, de maneira autoritária, o uso do espaço de convivência estudantil dos estudantes, o porão, caso as exigências colocadas ali não fossem cumpridas em 60 dias. Apesar dos pequenos avanços nas negociações, a reunião de hoje (18/03/2024) entre a Diretoria da FMUSP, o CAOC e o comando de greve, evidenciou mais uma vez o posicionamento autoritário e neoliberal da diretoria, representada pela Dra. Eloisa Bonfá. À despeito dos questionamentos e tentativas de negociação por parte dos estudantes, a diretora insiste em colocar os estudantes em uma posição de criminosos, vândalos e raivosos, em uma clara tentativa de deslegitimar o movimento sem o qual não teríamos sequer tido a oportunidade de ser ouvidos em relação a nossas críticas. Ao reafirmar seu posicionamento intransigente e desrespeitoso com os alunos aos quais a diretora deveria lutar a favor, Eloisa Bonfá somente se aproxima a passos largos do grande responsável pela intensificação do sucateamento da USP, o governador Tarcisio de Freitas, o qual já trocou inúmeros acenos com a diretora em eventos e falas anteriores. Este movimento emerge, portanto, não apenas como um grito por reivindicação de direitos, mas como um reflexo das profundas fissuras causadas pela lógica neoliberal que vem, sistematicamente, esvaziando os cofres públicos e priorizando o lucro em detrimento da construção de uma saúde pública e universal tal qual preconizada pelo SUS.
Nesse sentido, o programa “Experiência HC” ilustra vividamente a crescente infiltração da lógica privatista na saúde, com a injeção de dinheiro privado em uma instituição pública. Ao vender, por R$8.000,00, estágios para estudantes de medicina de outras universidades, a FMUSP age aos moldes de uma terceirização do ensino – em que faculdades particulares transferem para USP a responsabilidade dos estagios que elas deveriam ofertar – e também da saúde – ao abrir espaço para influência do mercado privado em um serviço essencialmente público. Entretanto, desconstruir discursos meritocráticos e clubistas que têm se instaurado entre o movimento grevista faz-se tão necessario quanto se questionar o programa criticado. Repercutir falas como “eles não passaram no vestibular, então não deveriam estar aqui” ou “nós merecemos mais estar aqui porque estudamos mais que eles” referindo-se aos estudantes de faculdades privadas, podem levar nosso movimento a um caminho perigoso. Em primeiro lugar, esse tipo de argumento acaba por legitimar o vestibular como uma ferramenta justa e adequada, quando na verdade ele se constitui como um filtro social que cumpre o papel de excluir estudantes pobres, negros, LGBTQIA+, vindos da escola pública para manter a universidade como um espaço elitizado. A nossa luta deve ser, no limite, pelo fim desse filtro e pela ampla democratização do ensino superior. Cabe ainda ressaltar que o curso de medicina na USP, assim como nas faculdades particulares, constitui-se firmemente como um local elitizado. Em segundo lugar, essa idéia coloca como secundária o cerne do problema: a infiltração dessa lógica privatista na nossa Universidade e no nosso Hospital, ambos públicos; nós não queremos ter o monopólio do uso do Hospital das Clínicas, queremos que um serviço do SUS pare de servir a interesses de grandes empresários e conglomerados. Queremos que essas vagas sejam usadas sim para abrir oportunidade de estágio para alunos de fora da USP, mas que seja através de parcerias bilaterais com universidades brasileiras e estrangeiras, nos moldes de outros programas que já existem atualmente ou existiram anteriormente e que perderam espaço após o início do Experiência HC.
Na mesma linha de raciocínio, precisamos ter cautela ao abordar as quedas nas taxas de aprovação de alunos da FMUSP na residência do HCFMUSP para não cair em discursos puramente meritocráticos e xenofóbicos. Refletir sobre esse problema passa muito mais por discutir quais as competências e habilidades a FMUSP se propõe a valorizar, do que pela repulsa arbitrária por residentes que vêm de outras faculdades. É preciso que exijamos da faculdade análise minuciosas de todos os fatores envolvidos na baixa aprovação, incluindo a defasagem do nosso ensino médico associada à desvalorização de conhecimentos práticos e habilidades importantes para um bom profissional da saúde.
Por fim, vale comentarmos a ameaça da diretoria da faculdade de retirar o aze do porão, que foi um dos estopim da greve. Embora pensemos que as pautas centrais da nossa mobilização devam ser o fim do Experiência HC, a reformulação da prova de residência e a defesa do espaço e da autonomia estudantis, é importante dizer também que eliminar o subsídio alimentar dos estudantes, incide diretamente sobre uma questão fundamental: o direito à alimentação e, por extensão, o acesso à educação. A proposição de suprimir o subsídio alimentar, sem uma contraproposta que de fato atenda as demandas por alimentação de qualidade dos estudantes demonstra uma postura negligente e inconsequente da FMUSP. Este ato reflete uma completa desconexão com as necessidades reais da comunidade estudantil. É fato que a alimentação subsidiada desse restaurante constitui um privilégio dos estudantes de medicina em relação aos demais cursos da universidade, mas sabemos que tampouco os bandejões da Faculdade de Saúde Pública e da Escola de Enfermagem conseguem dar conta de toda a demanda. Acabar com o subsídio dessa forma abrupta e autoritária cria um problema não só para os estudantes de medicina mas para todos os estudantes do Quadrilátero da Saúde que dependem dos restaurantes universitários para sua alimentação. A solução deve passar pela construção de um bandejão da FMUSP e pela expansão dos bandejões existentes do Quadrilátero, de forma dialogada com os estudantes e respeitando a autonomia do seu espaço estudantil no porão.
Nesse sentido, embora ancoradas na universidade, essas reivindicações transcendem os muros acadêmicos, dialogando diretamente com o contexto mais amplo de desmantelamento dos serviços públicos e a mercantilização da vida. No âmbito da cidade de São Paulo, por exemplo, cabe destacar-se, portanto, a atuação das Organizações Sociais de Saúde (OSS), que, sob o manto da eficiência administrativa, frequentemente operam na lógica do lucro, comprometendo a qualidade e a universalidade do atendimento. Tal modelo, adotado violentamente pela secretaria municipal de saúde, promove, assim como o Experiência HC, a privatização velada do sistema público.
Em suma, a greve dos estudantes de medicina não é apenas uma luta por direitos acadêmicos. É uma luta em defesa do SUS, da educação pública e, por extensão, contra o avanço da lógica neoliberal, que ameaça desfigurar ainda mais o tecido social. Nesse sentido, a mobilização se faz urgente! Mais do que nunca precisamos defender um projeto de país, universidade e saúde que coloque as pessoas e seus direitos acima dos interesses de mercado. A greve é um chamado à ação: que ela seja o estopim para uma mobilização mais ampla em defesa dos direitos conquistados e por uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária.