Entre Gênero, Raça e Classe: o Direito à Moradia para Mulheres Negras no Brasil
Reprodução: Brasil de Fato

Entre Gênero, Raça e Classe: o Direito à Moradia para Mulheres Negras no Brasil

No histórico-social brasileiro a negação de moradia digna a população negra evidencia o racismo e a logica capitalista. O Estado ao servir aos interesses da elite econômica e branca, perpetua a desigualdade habitacional, atingindo significativamente mulheres negras. A moradia é direito humano fundamental e não mercadoria

Estefane Moraes 20 maio 2025, 10:46

O acesso à moradia no Brasil, embora constitucionalmente reconhecido como um direito humano fundamental, historicamente tem sido negado à população negra. Um marco emblemático dessa exclusão é a Lei de Terras de 1850, que instituiu a compra como única forma legal de acesso à terra, inviabilizando a posse para ex-escravizados e populações pobres. Essa medida legal consolidou a concentração fundiária e aprofundou as desigualdades sociais e raciais que perduram até os dias atuais.

Um marco histórico também importante é a Guerra do Paraguai (1864–1870), o maior e mais sangrento conflito da América do Sul no século XIX, que envolveu o Paraguai de um lado e a Tríplice Aliança (formada por Brasil, Argentina e Uruguai) de outro.

O Estado brasileiro, com a necessidade de reforçar o exército e aumentar o número de alistamento, recrutou de milhares de homens negros escravizados e homens negros pobres livres com promessas de alforria e de concessão de terras após o fim do conflito, ou seja, uma integração social real.
No entanto, essas promessas não foram cumpridas. A maioria dos ex-combatentes negros não recebeu qualquer compensação ou acesso à terra, sendo relegada à pobreza e à marginalidade após o conflito.
A ausência de políticas públicas efetivas na história do Brasil de integração e reparação para pessoas negras contribuiu para perpetuar a exclusão social e econômica, revelando a continuidade de uma lógica estatal que utiliza a promessa de cidadania como instrumento de mobilização, mas a nega na prática. Essa breve introdução histórica ajuda a compreender a persistente negação de direitos, como o acesso à moradia e à terra enfrentada pela população negra no Brasil até os dias atuais.

Desde o período colonial, o acesso à terra, base para qualquer forma de habitação digna, foi restringido a uma elite branca proprietária. Esse processo histórico moldou a geografia urbana brasileira, marcando-a por periferização, favelização e segregação racial. A população negra, em especial as mulheres negras, foi empurrada para territórios marcados pela precariedade, ausência de serviços públicos e insegurança habitacional.

Desta feita, a intersecção entre raça, gênero e classe social evidencia que, no Brasil, a exclusão do direito à moradia não é apenas uma questão econômica, mas estrutural e interseccional. Nesse sentido, a cartilha Direito à Cidade para Mulheres Negras (Alma Preta, 2023) denuncia práticas persistentes de exclusão e discriminação nos processos de acesso à habitação. Dados do IBGE (via Alma Preta, 2024) indicam que a população negra vive majoritariamente em áreas com baixa infraestrutura urbana, como ruas não asfaltadas e ausência de saneamento básico. Além disso, estudo divulgado pelo portal Notícia Preta (2023) aponta que mulheres negras podem levar até 184 anos para conquistar a casa própria, evidenciando a sobreposição das desigualdades racial e de gênero.

Esses dados demonstram que a violação do direito à moradia (direito humano fundamental e essencial) não é fruto do acaso, mas resultado direto de estruturas sociais discriminatórias que precisam ser enfrentadas com políticas públicas reparatórias e transformadoras, ancoradas nos princípios dos direitos humanos.

A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos (art. 1º, III1), reafirma o compromisso do Estado brasileiro com a promoção da justiça social, da igualdade e da erradicação das desigualdades. Entre seus objetivos fundamentais (art. 3º2), destacam-se a erradicação da pobreza, a marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, além da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Ainda, como princípio das relações internacionais (art. 4º, II3), a prevalência dos direitos humanos reforça essa diretriz constitucional. Nesse sentido, citamos:

Por isso, os direitos humanos sociais devem ser entendidos, em concordância com a evidência reflexiva da prática dos direitos humanos, como um padrão mínimo social de justiça para todas as pessoas enquanto seres humanos. Exatamente em relação a isso, proponho, de acordo com a ideia básica de justificar os direitos humanos, incluindo direitos humanos sociais através de um consenso moral sobre princípios de justiça fundamentais, compreender os direitos humanos sociais como compensação de determinados danos sociais, que devem ser impedidos, isto é, compensadas com base em razões morais compartilhadas.4

Os direitos humanos são efetivados a qualquer indivíduo desde que possua uma garantia de acesso a recursos mínimos que garantam a sua dignidade humana.

No direito, o princípio do mínimo existencial refere-se ao conjunto de condições essenciais para garantir uma vida digna e plena aos indivíduos. Esse conceito é frequentemente associado aos direitos fundamentais e à proteção social, buscando assegurar que todos tenham acesso a necessidades básicas, como alimentação, saúde, educação e habitação.

O mínimo existencial é utilizado para argumentar que o Estado tem a obrigação de fornecer condições mínimas para que todos possam viver com dignidade, especialmente em situações de vulnerabilidade. Isso implica que a proteção dos direitos humanos e a implementação de políticas públicas devem garantir que ninguém viva abaixo desse mínimo, visando promover a justiça social e a equidade.

No entanto, o que se observa no Brasil é que as mulheres negras continuam sendo as principais vítimas de violações de direitos humanos, figurando entre as mais atingidas pela insegurança alimentar, pela falta de moradia digna e pela negação de outros direitos mínimos existenciais, fatores profundamente enraizados no racismo estrutural.

Nesse sentido, é preciso reconhecer que o Estado brasileiro, desse os primórdios de sua fundação, prioritariamente serve aos interesses da burguesia e das elites econômicas, perpetuando um modelo de urbanização excludente e segregador.

A cidade capitalista é construída para o lucro, não para a vida. A especulação imobiliária, a gentrificação, a remoção de comunidades periféricas e a criminalização da pobreza são estratégias que reforçam esse modelo. Dentro dessa lógica, a moradia não é tratada como um direito, mas como mercadoria, acessível apenas àqueles que podem pagar por ela.

Como consequência, as mulheres negras, historicamente empurradas para a base da pirâmide social, seguem sendo as principais vítimas da negação desse direito, enfrentando a insegurança habitacional, a ausência de infraestrutura e a exposição cotidiana à violência urbana e ambiental.

A superação dessa realidade exige, portanto, mais do que políticas públicas pontuais ou ações emergenciais de assistência social. É necessário um rompimento estrutural com a lógica capitalista que transforma a cidade em espaço de valorização do capital e não da vida.

A moradia digna com acesso a transporte público de qualidade, saneamento básico, áreas verdes, equipamentos culturais e espaços de lazer, só pode ser pensada de forma universal e justa dentro de um novo paradigma de desenvolvimento urbano. Um paradigma que priorize as pessoas e a natureza, que recuse a segregação espacial e promova uma cidade como espaço comum, plural e democrático.

Isso implica repensar radicalmente a função social da propriedade urbana e rural, enfrentando os privilégios das elites fundiárias e rompendo com a concentração de terras e imóveis nas mãos de poucos. Implica também integrar a luta por moradia com as pautas ambientais, reconhecendo que um território saudável e sustentável é parte inseparável de uma vida digna. O urbanismo ecológico, que articula direito à cidade com equilíbrio ambiental, deve caminhar lado a lado com a justiça social e racial.

Em suma, o direito à moradia não será plenamente garantido enquanto for tratado como concessão dentro de um sistema que se alimenta da desigualdade. A luta por moradia digna é, antes de tudo, uma luta antirracista, antipatriarcal e anticapitalista. Apenas com a construção de um novo projeto de sociedade, voltado à dignidade humana, à justiça social e à harmonia com a natureza, será possível garantir uma cidade verdadeiramente inclusiva, acessível e habitável para todos(as/es).

Assim como vimos, a efetivação do direito à moradia transcende uma dimensão assistencialista, constituindo-se em um imperativo ético, jurídico e constitucional. Garantir esse direito à população negra, historicamente excluída e marginalizada, é condição necessária para a concretização da justiça social, da igualdade material e da dignidade da pessoa humana no Brasil contemporâneo.


  1. Art.1, III, Constituição Federal. ↩︎
  2. Art. 3, III e IV Constituição Federal ↩︎
  3. Art. 4, II, Constituição Federal. ↩︎
  4. Pág. 73. Direitos sociais em debate/ Claudia Toledo (organização) Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. ↩︎


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