Legitimidade e Democracia nas encruzilhadas entre direito e política
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Legitimidade e Democracia nas encruzilhadas entre direito e política

Termina a consulta ao corpo social da FND sobre a direção do período 2025/2029. Marcada por uma polarização não vista em muito tempo e atravessada por graves acusações e um silenciamento gritante de 1.200 estudantes, é hora de refletir e determinar nossas tarefas antes de dar o próximo passo

No dia 30/05/2025, a Faculdade Nacional de Direito conheceu os resultados da consulta feita ao corpo social sobre a direção do período 2025/2029. A vitória da chapa 10 “FND, sempre!” foi marcada e atravessada por um questionamento central: qual a legitimidade da ‘democracia’ dessa eleição?

Nesse processo, no qual 24,72% sobrepôs 75,28% do universo de votantes, um marco foi estabelecido. Ora, como poderá deliberar sobre o futuro da faculdade, na posição de direção, um grupo político que, além dos 16 anos no poder, representa menos de ¼ do nosso corpo social? Sob nenhum ponto de vista será possível construir um ensino de qualidade e rigor sem colocar, no centro do processo, os mais afetados pelas políticas institucionais: os estudantes.

Voltemos, então, às leis. O nosso Regimento Eleitoral põe, em seu Capítulo VIII, artigo 19, a fórmula para ponderar os resultados da votação, partindo da lógica paritária: “RV = [(Do/Udo)Pdo]+[(Di/Udi)Pdi]+[(Ta/Uta)*Pta]”. Essa arrumação matemática possui uma armadilha, disposta em duas faces interdependentes, quais sejam, (i) dividir o número de votos arrecadados pelo universo de eleitores e (ii) dar peso igual para grupos quantitativamente distintos. Dessa forma, coloca-se um rebaixamento na real participação dos estudantes dentro do processo eleitoral, resquício da ditadura militar, pois: (i) mobilizar 2.800 alunos é infinitamente mais complexo do que mobilizar 40 técnicos, o que nos coloca na posição (ii) de perceber que as abstenções são armas eleitorais para favorecer a situação.

Fato é, o cancelamento de aulas em massa, principalmente no noturno, buscando desmobilizar os alunos durante o processo eleitoral, é a maior evidência dessa armadilha, afinal, pelo sistema da (suposta) paridade, 34 técnicos possuem o peso de, aproximadamente, 2.380 estudantes. Assim, com base nesse sistema de pesos, foi possível uma vitória dos 24%. Lembrase, nesse sentido, que é pauta antiga dos movimentos estudantis o fim do “universo eleitoral” em eleições de direção e reitoria, dado o caráter claramente antidemocrático visto aqui.

Vale dizer, em um corpo social composto por, aproximadamente, 3.000 pessoas, 960 deixaram de votar. Ou seja, mais pessoas preferem não ter direção à vitória da chapa da situação. Na visão do Juntos!, essa “piada” demonstra dois elementos sobre a atual composição da faculdade: um político, no que pese o cansaço geral à burocratização e ao carreirismo pautados pelos setores da direção e da majoritária da UNE, e um de caráter discursivo, sobre o rompimento da legalidade e da legitimidade.

Em condução, a fissura entre direção e corpo discente encontra coro na singular expressão de insatisfação quanto ao resultado da consulta, em que o elo mais fraco se vê desvinculado de sua escolha, em um ato de legalismo de forma literal, reflexo de um fetichismo jurídico. Dessa forma, considerar o universo de eleitores ao invés do universo de votantes aparece como uma maneira perversa de diminuir o impacto estudantil, em que a subjugação à efetividade do argumento legalista esconde a face concreta da atividade legislativa – afinal, o Regimento Eleitoral foi proposto pelo grupo de situação.

Assim, o regimento institui a distribuição paritária, em uma covarde divagação de agência coletiva que suspende a necessária legitimidade do processo democrático, já que, a partir do direito posto, se o princípio da equivalência não é respeitado, não existe mais direito formalmente instituído. Tratar os “grandes grupos” do corpo social – docentes, discentes e taes – como sujeitos de direitos autônomos e iguais escamoteia as incontornáveis contradições políticas que atravessam a condução da faculdade, de forma a, obrigatoriamente, retirar a voz do alunado; não há, com efeito, legitimidade sem efetiva participação, obstruída pelo fetiche da forma jurídica.

Com efeito, o próprio modelo liberal de democracia representativa, no qual a FND aposta, soa muito mais como um limite à participação efetiva de grupos interessados, do que um modelo de arranjo institucional capaz de expressar, de forma “justa e autônoma”, os interesses das várias categorias do nosso corpo social, em uma espécie de dirigismo unitário, como se possível fosse encontrar uma “vontade geral rousseauniana”. É tarefa do movimento estudantil, ao mesmo tempo, tensionar as formas eleitorais que produzem silenciamento dos alunos e não cair na ilusão do consenso democrático liberal.

O uso do universo de alunos no quociente eleitoral apresenta-se, então, como um fantoche jurídico, responsável pela “desconsideração” da vontade estudantil, perante o processo eleitoral. O elemento político da relação entre democracia e a eleição da direção está perniciosamente escondido pela fórmula eleitoral paritária. É, portanto, uma concepção de faculdade que abstrai os estudantes dos espaços por nós ocupados; um verdadeiro costume cultivado na FND nos últimos anos. Assim, fica posta a dimensão necessariamente intencional da aplicação do direito, bem como a dimensão necessariamente jurídica e legitimadora do discurso político.

Deste modo, caminha-se ao encontro da teoria democrática de Rancière, na qual prevê que a boa democracia deve ser estruturada diante da própria ideia do dissenso; portanto, o momento do antagonismo propicia um deslocamento estruturante para o avanço da vontade popular. Reafirmamos a valorização da vontade do demos. Sendo necessário pôr em xeque, diante do questionamento e historicização, as próprias instituições políticas estabelecidas e naturalizadas, a partir da construção de vontades coletivas capazes de promover o dissenso.

Como dizem Adorno e Horkheimer, no texto “O Conceito de Esclarecimento”: “Antes, os fetiches estavam sob a lei da igualdade. Agora, a própria igualdade torna-se fetiche. A venda sobre os olhos da Justiça não significa apenas que não se deve interferir no direito, mas que ele não nasceu da liberdade”.

A crítica, a partir disso, deve ser feita com rigor, sendo contrária às amarras de perspectivas unitárias e sectaristas, prezando por um centralismo democrático no sentido filosófico do termo, reconhecendo o caráter mutável e altivo da política da FND. O corpo estudantil escancarou uma possibilidade de alteração no andamento político do centro acadêmico e da direção. Falta-se vislumbrar a disposição e as formas de a pôr em ação.

Temos, portanto, a instauração de uma encruzilhada, na qual o “velho morreu e o novo não consegue nascer”, sendo o caos necessidade e salvação. A tarefa histórica do movimento estudantil sempre foi e continua sendo, nesse momento, ser o maior aliado dos estudantes em processo de organização e mobilização de sua revolta, colocando-se nessa encruza como um agente de vanguarda da luta. A pluralidade organizada e combativa é a chave que apostamos para o movimento de oposição colocado.

Considerando-se a cultura política da faculdade de direito da UFRJ, o pouco costume com a oposição organizada impõe tarefa ainda maior: o Movimento Estudantil não pode cair na armadilha do burocratismo, ao tentar hegemonizar a oposição formada, mas sim fornecer sua experiência em mobilização e luta. Afinal, só percebemos as correntes que nos prendem quando nos movimentamos, e é nossa obrigação participar do processo de destruição dessas amarras, fornecendo caminhos e firmando uma aliança de igual para igual com os estudantes.

Dar um sentido ao inconformismo generalizado com os resultados eleitorais será fundamental. Impedir que os alunos caiam em falácias discursivas é também um papel nosso. O discurso de ódio que atribui culpa ao taes pelo vexame eleitoral por nós vivido, por exemplo, deve ser combatido – personalizar o debate, no momento, apenas retira o foco do real problema. A ideia de que é impossível dialogar com professores e técnicos não deve aflorar – saudamos, aqui, a mediação de Lukács. A dicotomia sobre o movimento estudantil enquanto representação absoluta ou negação absoluta dos estudantes também deve ser evitada. No final, a correta avaliação do processo eleitoral e do caráter do movimento de oposição são pressupostos do cumprimento dessas tarefas históricas postas.

Assim, a luta pela mudança no sistema paritário de ponderação dos resultados eleitorais, desmantelando o conceito de “universo de eleitores”, em favor da substituição por “universo de votantes” é uma medida fundamental e urgente, bem como o reconhecimento da deslegitimidade em todo o processo. Não é sobre defender uma “virada de mesa” da chapa de oposição, mas sim pautar uma concreta escuta dos estudantes – caso contrário, não avançaremos em nossas demandas. Entretanto, pela carga político-teórica que atravessa essa disputa e as armadilhas nela colocadas, caberá aos movimentos estudantis presentes na faculdade pôr em termo o significado das arenas que serão disputadas. Que os estudantes jamais sejam calados e colocados em segundo plano novamente, em respeito à tradição de combate herdada, e não respeitada, do CACO.


Imagem O Futuro se Conquista

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