Chelsea Manning e “Na Moral” – transfobia sem fronteiras
Bradley Manning

Chelsea Manning e “Na Moral” – transfobia sem fronteiras

A declaração pública de Chelsea Manning, responsável pelo grande vazamento do Wikileaks, e o programa “Na Moral” dedicado a transexuais revelou que a transfobia nos EUA é bem parecida com a brasileira. Como a transfobia acontece e o que devemos fazer a respeito?

Felipe Oliva 23 ago 2013, 10:06

* Por Felipe Oliva

“Como estou passando para uma nova fase de minha vida, eu quero que todos conheçam meu verdadeiro eu. Eu sou Chelsea Manning. Eu sou uma mulher. Dado o jeito como me sinto e senti desde a infância, eu quero começar hormonoterapia o mais rápido possível. Eu também peço que, a começar de hoje, vocês se refiram a mim pelo meu novo nome e usem o pronome feminino (…). Eu espero ansiosamente receber cartas de apoiadores e ter a oportunidade de escrever de volta.

“Obrigada,
“Chelsea E. Manning.” [1]

Dois acontecimentos chamaram a atenção da sociedade brasileira para os desafios enfrentados por pessoas transexuais e travestis.

O primeiro foi a declaração pública transcrita acima de Chelsea Manning, mulher transexual responsável pelo fornecimento ao Wikileaks de informações que revelaram a verdadeira natureza da guerra ao terror dos EUA.

Manning, anteriormente gay assumida, tornou-se analista da inteligência do exército estadunidense e, uma vez no Iraque, sensibilizou-se com os documentos secretos que revelavam inúmeros abusos pelos EUA. Ao mesmo tempo que repassava essas informações para o Wikileaks, foi amadurecendo sua identidade de gênero feminina sem poder, porém, contar com o apoio de ninguém em seu ambiente de trabalho – o exército estadunidense não contrata transexuais, por entender que transexualidade é uma doença. Fragilizada, Manning confiou em Adrian Lamo, hacker gay que lhe jurou confidencialidade, mas que a delatou para o FBI [2].

Condenada a 35 anos de prisão por seu ato de heroísmo, Manning teve que fazer uma declaração pública exigindo respeito a seu nome feminino e sua identidade de gênero. Esse pedido pode parecer banal e dispensável – mas sua necessidade fica clara diante do fato de que a identidade de gênero de Manning era conhecida há anos pela comunidade de cisgêneros e desconhecida do grande público, como lembra Maíra Kubík Mano [3].

Outro fato que chamou a atenção para a transfobia foi o programa “Na Moral”, apresentado por Pedro Bial, dedicado a pessoas trans [4]. Nele, vimos o caso de Bianca Santos, que foi dispensada ao assumir sua identidade de gênero feminina enquanto trabalhava na Marinha.

Casos como o de Chelsea Manning e Bianca Santos ilustram a transfobia institucional, que longe de existir apenas no exército, se repete em todas as outras instituições, estatais ou civis.

A começar do mais básico: o RG e a certidão de nascimento. Para que transexuais e travestis tenham seu nome e sexo reconhecidos em seus documentos, precisam propor uma custosa ação judicial, na qual o estado brasileiro exige um laudo médico que as declare portadoras de uma doença (disforia de gênero), chegando muitos magistrados a exigir esterilização (transgenitalização)!

Na escola, crianças e adolescentes são desrespeitadas por colegas e profissionais da educação, e têm negado até mesmo o direito de usar o banheiro de acordo com sua identidade de gênero, o que as leva a sair da escola antes de terminar seus estudos. A falta de educação formal limita suas chances de emprego, o que leva muitas a recorrer à prostituição, sem que essa alternativa seja verdadeira expressão de sua liberdade.

Mesmo as pessoas travestis e transexuais altamente qualificadas têm enormes dificuldades em encontrar trabalho, como vem relatando a militante Daniela Andrade em seu perfil no Facebook [5]. Com medo da transfobia de clientes e no ambiente de trabalho, as empresas preferem simplesmente não as contratar. Não por acaso, as empresas de telemarketing são as maiores empregadoras de pessoas travestis e transexuais – exatamente por que o contato é mediado pelo telefone. E, como os casos de Manning e Bianca indicam, se a pessoa assume sua identidade de gênero enquanto empregada, pode ser simplesmente dispensada, inexistindo tolerância com a transição.

Em último caso, todas essas formas de violência desenbocam na maior forma de agressão: em 2012, 128 transexuais e travestis foram assassinada/os no Brasil por transfobia [6]. Esse número vem de levantamento amador e infelizmente deve ser muito maior. Só neste ano de 2013, inúmeras outras pessoas transexuais e travestis foram brutalmente assassinadas, sendo exemplo Thalia, amiga de Luísa Marilac, que morreu com trinta facadas em Guarulhos, SP [7] [8].

Há muito por se fazer no Brasil:
1 – O Supremo Tribunal Federal deve julgar a ação (ADI 4275) que garante a transexuais o direito de alterar seu nome e sexo sem a necessidade de transgenitalização, cujo resultado é insatisfatório para muitos homens transexuais.
2 – O Congresso precisa aprovar o projeto de lei João Nery, que confere a transexuais e travestis o direito de alterar seu nome e sexo mediante simples pedido em cartório extrajudicial, sem necessidade de ação judicial, como explica o coautor do projeto, deputado federal Jean Wyllys [9].
3 – Para garantir respeito na escola, é necessário sensibilizar e capacitar todos os profissionais, o que pode melhorar com a distribuição do kit escola sem homofobia, mas só se resolveria com maior investimento em educação. Daí a bandeira dos 10% do PIB na educação também dizer respeito à transfobia.
4 – O direito à saúde integral está na Constituição, mas transexuais e travestis dificilmente encontram profissionais preparados para suas especificidades, enfrentando ainda longa fila de espera para a realização de vários procedimentos. De novo: 10% do PIB para garantir saúde padrão FIFA!
5 – Se a grande mídia continua a desrespeitar a identidade de gênero de travestis e transexuais e reproduzir discursos transfóbicos, isso se deve ao pouco controle da população sobre a comunicação, o que nos leva à bandeira da democratização da mídia.
6 – Enfim, é necessário punir quem discrimina, daí a importância da criminalização da transfobia e homofobia.

A condição para que tudo isso aconteça, porém, é a organização da indignação. As jornadas de junho nos mostraram que apenas a ocupação das ruas garante que nossas reivindicações sejam atendidas. Sem que a luta contra a transfobia seja encampada por todas e todos – especialmente por lésbicas, gays e bissexuais, que não vêm prestando atenção suficiente às outras letrinhas da sigla – não há como garantir o fim da discriminação transfóbica.

[1] http://www.usatoday.com/story/news/nation/2013/08/22/bradley-chelsea-manning/2684555/
[2] http://en.wikipedia.org/wiki/Chelsea_Manning
[3] http://mairakubik.cartacapital.com.br/2013/08/22/por-que-ninguem-ninguem-noticiou-antes-que-manning-e-trans/
[4] http://tvg.globo.com/programas/na-moral/O-Programa/noticia/2013/08/transexuais-relatam-a-superacao-em-suas-historias-de-vida-assista-aos-videos.html
[5] https://www.facebook.com/danielaumalutadora
[6] http://www.doistercos.com.br/ggb-divulga-numero-de-assassinatos-de-gay-no-ano-de-2012/
[7] http://www.youtube.com/watch?v=x6BaxQ8d3YM&feature=youtu.be
[8] http://www.diariodeguarulhos.com.br/2013/08/05/travesti-e-morto-em-casa-com-golpes-de-tesoura-no-pubis/
[9] http://colunistas.ig.com.br/jean-wyllys/2013/08/21/bradley-manning-e-um-heroi-e-breanna/

* Felipe Oliva é militante do Junt@s pelo Direito de Amar


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