Inconstitucionalidade das cotas raciais? Conte-me mais sobre sua visão de direito e justiça
O movimento social negro se vê apreensivo com julgamento que trata de bandeira muito cara para a comunidade negra: programas de cotas raciais em universidades. A classe e a raça não podem ser um impeditivo para o desenvolvimento de nossas potencialidades.
* Winnie Bueno
As últimas semanas do mês de abril têm sido bastante agitadas no STF. Os movimentos sociais tem visto pautas importantes, históricas, passar pelo crivo dos “capas pretas” em sessões que muito tem a nos ensinar. Primeiro, o movimento feminista saiu vitorioso no julgamento da ADPF 54, que tratava do aborto de fetos anencefálicos (https://juntos.org.br/2012/04/stf-decide-pela-ampliacao-dos-direitos-das-mulheres/). Agora o movimento social negro se vê apreensivo com dois julgamentos que tratam de bandeiras muito caras para a comunidade negra. O primeiro diz respeito a regulamentação das terras quilombolas e o segundo versa sobre programas de cotas raciais em universidades. Ambos os processos tem o dedo da elite, branca ,de direita, mais precisamente do partido Democratas. O mesmo partido que não perdia a chance de atacar o Estatuto da Igualdade Racial, quando proposto, e o mesmo Democratas com quem o PT negociou o esvaziamento das pautas desta mesma norma jurídica.
A sessão do STF desta quarta-feira(25/04) trata de dois processos sobre cotas raciais: a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186,ajuizada pelo DEM contra a Universidade de Brasília, que questiona a reserva de 20% das vagas previstas no vestibular para preenchimento a partir de critérios étnico-raciais e o Recurso Extraordinário 597.285, interposto por um estudante que se sentiu prejudicado pelo sistema de cotas adotado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele contesta a constitucionalidade do sistema de reserva de vagas como meio de ingresso no ensino superior. Ele não foi aprovado no vestibular para o curso de Administração, embora tenha alcançado pontuação maior do que alguns candidatos admitidos no mesmo curso pelo sistema de cotas.
Sabemos que a Universidade é um espaço de poder, sabemos também que foi através dela que ao longo da história a sociedade brasileira construiu sua elite, e o faz excluindo um percentual massivo de sua população (47% do total): a negritude.
Fala-se de inconstitucionalidade, de atentado ao principio de igualdade, de injustiça e no caso UNB chega-se ao absurdo de comparar a política de cotas raciais com as ideias nazistas. O desespero da elite brasileira ao se deparar com a possibilidade de ter um dos seus espaços mais precioso de poder tomado, ainda que de forma bastante incipiente, pelo povo é tamanho que se perde a noção dos mais fundamentais preceitos constitucionais.
Ao contestar a igualdade, não se dão conta que a própria Constituição Federal de 88 alargou o princípio burguês, de uma igualdade meramente formal, para a construção de uma igualdade material, que não seja barrada por este dogma liberal que impede as pessoas socialmente desfavorecidas de minimante alcançar esta igualdade. A adoção de ações afirmativas desconstituiu este ente abstrato, sem cor, sem classe, sem sexo e constrói um sujeito de direito concreto, com uma história, com especificidades e particularidades. As cotas raciais colocam para o Estado duas possibilidades: cruzar os braços e manter a suposta neutralidade estatal — neutralidade esta que eu nunca compreendi muito bem, uma vez que os índices comprovam que as políticas do Estado vêm beneficiando uma classe, classe esta que não é preta e nem é pobre-ou atuar ativamente no sentido de eliminar as desigualdades do país.
O racismo no Brasil é resultado de vários fatores, um dos mais relevantes é, sem dúvida, a distribuição de recursos públicos em matéria de educação. A educação é uma expectativa de qualquer cidadão brasileiro, uma expectativa que deve se cumprir no âmbito público, mas na realidade em nosso país este descaso é tamanho que sequer a efetivação da universalização do ensino alcança a população negra. Ao mesmo tempo, o Estado “financia” com recursos que deveriam ser aplicados na educação pública as escolas particulares, através da “renúncia fiscal” que estas instituições são beneficiárias. Ou seja, o Estado seleciona e exclui previamente, muito antes do vestibular ou do ENEM, quem entra e quem não entra nas instituições públicas de ensino superior. Logo, não fica difícil compreender porque existem tão poucos negros nas universidades brasileiras e quase nenhum nos chamados cursos tradicionais.
O Direito Constitucional brasileiro é totalmente compatível com as cotas. Inclusive já possui algumas modalidades delas, dentro do texto constitucional. Ao proteger o mercado de trabalho da mulher, ao reservar percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadores de deficiência física criam-se ações afirmativas, que visam reduzir desigualdades sociais e regionais. Portanto, não me venham falar de inconstitucionalidade.
Por fim, questiono, de qual justiça estamos falando? É justo que apesar de sermos quase a metade da população do país, apenas 14% da população negra tenha ensino superior completo? É justo que a educação no Brasil trate da população negra apenas como escravos e que estes desapareçam dos livros depois de 1888, fazendo com que a negritude sequer tenha referenciais históricos a respeito de si mesmos? É justo que a cada 10 jovens assassinados, 7 sejam negros? E não, isso não é um problema que só resolve apenas com cotas raciais. É necessário uma revolução inteira para que o racismo deixa de ser parte fundamental do desenvolvimento do nosso país. Mas, instituir programas de ações afirmativas nas universidades altera a sociedade. Faz com que tenhamos que enfrentar o problema do racismo.
Se Demóstenes Torres se auto-proclama um “guerreiro contra as cotas raciais”, nós seremos ardorosos defensores de um Outro Futuro, onde a classe e a raça não sejam um impeditivo para o desenvolvimento de nossas potencialidades da forma mais plena.
* Winnie é estudante de Direito da UFPEL e militante do Juntos Pelotas/RS