A guerra pela água: entrevista exclusiva com militante paquistanês sobre a Caxemira
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A guerra pela água: entrevista exclusiva com militante paquistanês sobre a Caxemira

A disputa pelo território da Caxemira entre Índia e Paquistão não é nova, ela tem origem na partição da Índia feita pela colonização britânica e se estende até hoje. Envolve a disputa pela água, o risco de ataques nucleares e a resistência de um povo que não cessa de lutar pela sua autodeterminação mesmo diante de uma situação tão difícil

Bruno Zaidan e Victor Gorman 13 jun 2025, 14:14

Neste ano, vimos mais um conflito se somar à crescente lista de guerras pelo mundo. A disputa pelo território da Caxemira entre Índia e Paquistão não é nova, ela tem origem na partição da Índia feita pela colonização britânica e se estende até hoje. Envolve a disputa pela água, o risco de ataques nucleares e a resistência de um povo que não cessa de lutar pela sua autodeterminação mesmo diante de uma situação tão difícil.

Para trazer à luz essa questão – pouco debatida no Brasil – Bruno Zaidan, psicólogo e da coordenação nacional do Juntos! conversou com Haris Hassan, militante da KYF, Frente de Juventude Khalq, uma organização ecossocialista no Paquistão.

Transcrição, tradução e revisão por Victor Gorman, estudante de serviço social da UnB e da Comissão Internacional do MES.

Zaidan: Primeiro, obrigado por aceitar fazer essa entrevista, temos acompanhado com muita preocupação a situação na Caxemira. Se puder começar se apresentando, falando um pouco sobre você e sobre a KYF (Frente de Juventude Khalq), a sua organização.

Haris: Sim, antes de tudo, gostaria de agradecer a vocês por essa ideia, que é uma ideia incrível, de aproximar diferentes organizações por meio da solidariedade internacional. Meu nome é Haris, e sou da Khalq Youth Front. Essa é uma iniciativa liderada por jovens, basicamente a frente de juventude de um partido político de esquerda, Haqooq-e-Khalq, que tem atuado em Punjab, no Paquistão, nos últimos três anos. Temos trabalhado continuamente com questões trabalhistas, com os trabalhadores, nas várias dificuldades que enfrentam. Os principais problemas são, claro, o salário mínimo, os cartões de seguridade social — que são os benefícios que deveriam receber do governo, mas que não recebem — e a sindicalização dos trabalhadores, já que no Paquistão apenas 1% dos trabalhadores estão sindicalizados atualmente.

Esses são os principais temas relacionados aos trabalhadores nos quais atuamos. Estamos constantemente construindo solidariedade com os trabalhadores, trazendo-os para o partido, tentando resolver seus problemas à medida que surgem. Por exemplo, houve uma grande empresa capitalista que empregava milhares de trabalhadores e decidiu, de repente, demitir mil trabalhadores. Nós pegamos esse caso e vencemos. Conseguimos que os trabalhadores recebessem bilhões de rúpias em indenizações.

Também trabalhamos com agricultores no Paquistão recentemente. Há uma grande crise de grilagem de terras no Paquistão, em que o exército paquistanês está tomando terras dos agricultores para um novo projeto de agricultura corporativa. Esse é um projeto que estão tentando implementar em colaboração com os cataris, com os Emirados Árabes Unidos e com os xeiques ricos dos países árabes. Eles querem construir fazendas corporativas no Paquistão, expulsando os camponeses e agricultores que trabalhavam nessas terras para substituí-los por agricultura corporativa. E todos os lucros ficarão com os xeiques dos Emirados, de Dubai, e com o exército paquistanês. Montamos uma resistência muito forte contra isso também.

A KYF foi criada porque, em uma população de 250 milhões de pessoas no Paquistão, mais de 65% é jovem, tem até 35 anos, e uma grande parte dessa população é não-escolarizada. Um dado que posso te dar é que 25 milhões de crianças no Paquistão nunca viram uma escola. Elas não frequentam escolas, não sabem o que é uma escola. E esse número só está crescendo. Não há políticas ou ações do governo para mudar isso. Pelo contrário, o governo tenta privatizar escolas, hospitais e, claro, se submete ao FMI e às medidas de austeridade impostas por ele.

Portanto, a Youth Front foi construída como uma resistência concreta contra essas medidas — pela educação infantil, pelo emprego da juventude, para criar algum tipo de alternativa para os jovens. Porque, hoje em dia, o único objetivo da maioria dos jovens no Paquistão é sair do país. Isso se tornou uma epidemia. Não há empregos. E, se houver, não há segurança no emprego. E, mesmo quando existem, os salários são muito baixos. Essas são as questões que queremos enfrentar diretamente quando formamos a organização, e temos trabalhado muito bem para destacar esses problemas e trazer consciência para a população em geral.

Zaidan: É muito importante ouvir sobre essas questões e as lutas que vocês têm travado. Temos uma conexão forte com as lutas internacionais, e muitas vezes há mais semelhanças do que diferenças quando falamos da classe trabalhadora. Então, a primeira pergunta que gostaria de fazer é: estamos vendo uma pressão crescente sobre questões coloniais, como o genocídio em Gaza. Como a situação atual na Caxemira se relaciona com a colonização britânica da região?

Haris: Bem, antes de tudo, a maioria das questões que discutimos hoje — tanto no Paquistão quanto entre nossos camaradas na Índia — podem quase sempre ser conectadas ao período colonial do subcontinente. Como muitos de nossos camaradas sabem, a colonização do subcontinente foi uma das mais extrativistas da história — em termos de exploração econômica, uso de recursos e exploração do trabalho. A colonização da Índia foi uma das mais brutalmente exploratórias e extrativistas.

Então, ao falarmos da Caxemira e sua conexão com o colonialismo, precisamos entender que a partição da Índia foi uma decisão tardia dos britânicos. Quando foram praticamente forçados a sair — por causa da Segunda Guerra Mundial e da economia britânica, que estava destruída —, eles já não conseguiam impor o mesmo nível de controle sobre o subcontinente, que era enorme em território e população. Eles tiveram que decidir: “Como vamos sair deixando alguma marca, como podemos alegar que deixamos alguma estrutura ao sair?”. E o período de transição foi tudo, menos tranquilo.

A Caxemira foi uma das tragédias deixadas pelos britânicos, totalmente ignorada. Eles simplesmente traçaram uma linha aleatória na fronteira da província. Eu sou de Punjab — e a dividiram ao meio. Metade da população ficou de um lado, a outra metade do outro. E nenhum dos nossos antepassados sabia que isso estava acontecendo.

Depois que as fronteiras foram definidas e a partição concretizada, foi que as pessoas souberam o que havia ocorrido. Aí assistimos à maior migração da história da humanidade: milhões de pessoas cruzando as fronteiras. Naquele momento, a Caxemira foi praticamente ignorada pelos britânicos, mas havia uma contradição importante: a Caxemira era majoritariamente muçulmana, mas o governante era hindu. As províncias chamadas “estados principescos” — como era o caso da Caxemira — receberam o direito de escolher se queriam se juntar ao Paquistão ou à Índia.

Mas o governante hindu da Caxemira decidiu que seria um estado independente. Isso era praticamente impossível, por causa do tamanho dos estados vizinhos e por uma razão material: a maior parte da água que abastece Paquistão e Índia vem da Caxemira. Esse é um dos principais motivos pelos quais ambos os países se recusam a abrir mão da região.

Quando o governante hindu viu que não poderia optar pela independência naquele momento, decidiu se juntar à Índia. Houve uma hesitação, uma demora, e nesse intervalo as forças paquistanesas foram enviadas para assegurar parte da Caxemira. Isso deu uma justificativa para as forças indianas também entrarem na região. E foi aí que a primeira guerra entre Paquistão e Índia começou, por causa da Caxemira — uma guerra total pelo controle da região.

Depois disso, houve um cessar-fogo, mas nunca se chegou a uma solução permanente. Foi o primeiro grande conflito, pois a região é essencial tanto para o Paquistão quanto para a Índia, por causa da água que dela emana.

Zaidan: Você falou um pouco sobre essa história e o início da primeira guerra, e temos visto um novo capítulo nos últimos meses, relacionado também ao avanço do fascismo no mundo. Sabemos que o governo Modi na Índia tem um projeto fascista. Como esse projeto impacta a Caxemira? E como você vê o papel que os Estados Unidos, sob Trump, desempenharam no aumento da tensão? Como você enxerga esse projeto fascista global, especialmente na Índia, mas também com Trump como um fator que influencia essa nova fase do conflito?

Haris: Bem, é claro que, ao falarmos dos Estados Unidos e das tendências fascistas do governo americano, o primeiro exemplo que vem à mente é, sem dúvida, Gaza. A política dos governos dos EUA — administração após administração, seja do Partido Democrata ou do Partido Republicano — nunca deixou de apoiar Israel, seja com ajuda militar, financeira ou de qualquer outra forma. E vemos que a Índia está tentando replicar esse modelo.

Desde 7 de outubro, Israel estabeleceu um novo “normal” em termos de política internacional — um total desrespeito pela integridade territorial, pelos direitos humanos e por qualquer um desses ideais que nos tornam humanos. A aniquilação completa do povo palestino pelo governo israelense, com o apoio dos EUA, é algo que a Índia também quer reproduzir.

Vemos essa aliança se formando entre os EUA, a Índia e Israel. Por exemplo, muitos dos drones usados pela Índia recentemente foram fornecidos por Israel. Existe uma forte aliança militar entre esses três países. É como se estivéssemos vendo novamente a união dos fascistas, como aconteceu na Segunda Guerra Mundial com Mussolini, Hitler e outros.

Lembram quando Modi foi aos EUA e ele e Trump fizeram aquele comício juntos? Foi um dos maiores comícios que Trump já realizou. Isso mostra como essas figuras estão se apoiando mutuamente.

A Índia está tentando dominar completamente a Caxemira com o objetivo de se tornar uma potência regional que possa, eventualmente, desafiar o crescimento da China. Nos últimos dez anos, a política dos governos americanos se voltou para a China e deixou claro que, para eles, esse é o inimigo número um. Não é a Rússia, nem nenhum outro país. É a China.

Os EUA estão tentando construir uma aliança militar e estratégica muito forte com a Índia, com Israel e também com a Arábia Saudita — como vimos nos últimos dias — para conter a crescente influência da China no Sul Global. E tudo isso está fortemente ligado a uma retórica anticomunista.

Zaidan: Sim, isso é muito importante, porque de fato o genocídio de Israel contra Gaza mudou o paradigma mundial sobre o que é aceitável e o que não é. E essa é uma questão fundamental. Outra questão que você mencionou é a da água, já que tanto a Índia quanto o Paquistão recebem água da região da Caxemira. Essa é uma questão relevante, usada como uma ameaça constante, especialmente da Índia contra o Paquistão e contra a Caxemira. Em um mundo de escassez crescente e destruição ambiental, essa é uma questão vital. Já que ambos somos de juventudes ecossocialistas, gostaria que você falasse um pouco mais sobre o papel da água nesse conflito.

Haris: Então, basicamente, estamos falando de um sistema hídrico, não apenas de um rio, mas de um conjunto de vários rios. Há várias cabeceiras que vêm da Caxemira em direção ao Paquistão. Por isso, a Caxemira é significativamente mais importante para o Paquistão do que para a Índia. E essa é uma das formas que a Índia usa para chantagear ou dominar o Paquistão — fechando essas cabeceiras, construindo represas e privando o povo paquistanês de água.

Esses cinco rios que convergem no Indo formam o sistema hídrico que irriga a maior parte do Paquistão. Nossas duas províncias mais férteis, Punjab e Sindh, são irrigadas por esse sistema. Nesse conflito mais recente, a primeira reação da Índia para se vingar dos assassinatos em Pahalgam – que foi um acontecimento terrível – foi cortar o fornecimento de água ao Paquistão.

E para eles, isso pode parecer uma ação estratégica, mas quando você priva 250 milhões de pessoas de água, você está tentando matá-las. Está tentando destruir a ecologia inteira. O sistema do rio Indo não sustenta apenas pessoas — ele sustenta manguezais, golfinhos (sim, temos golfinhos em Sindh, são raros mas existem) e milhares de ecossistemas.

A água flui da Caxemira até Punjab, depois até Sindh e finalmente chega ao mar. Esse processo é parte do ciclo da água, que evapora, causa chuvas e mantém o ciclo das monções, tão importante para todos esses ecossistemas. Esse ciclo é vital para nós, como povo, e como parte do ecossistema natural.

Cortar o acesso à água é uma tática diretamente retirada dos manuais coloniais. Você pode ver isso em muitos lugares. Por exemplo, quando os colonizadores chegaram aos EUA, a primeira coisa que fizeram foi exterminar os bisões, que eram essenciais para os povos indígenas. Isso aqui é a mesma coisa — uma tática colonial clássica.

O Tratado das Águas do Indo precisa ser revisado. Em 1972, já perdemos os direitos sobre dois rios. Precisamos repensar esse tratado, porque, como fenômeno natural, você não pode simplesmente bloquear rios. Isso vai contra todos os princípios que defendemos. Bloquear um rio significa destruir ecossistemas que não conseguiremos recriar depois.

Zaidan: Acredito que isso é algo que Israel também tem “normalizado” — a fome e o corte de suprimentos vitais à sobrevivência das pessoas. E na Caxemira também há uma nova camada nesse conflito — não exatamente nova, mas que ganhou força — que é o problema nuclear. Quando falamos sobre destruição de ecossistemas e do mundo, o extremo dessa destruição são as armas nucleares. E essa é uma diferença em relação a outros conflitos: tanto a Índia quanto o Paquistão possuem armas nucleares. Como você vê essa ameaça constante de uma guerra nuclear entre os dois países? Como isso impacta o conflito?

Haris: Isso é horrível até de se imaginar. O que mais me preocupa não é o fato de termos armas nucleares — outros países também têm. O que mais me assusta é o tipo de pessoas que têm controle sobre essa tecnologia.

Por exemplo, Modi. Ele é do partido BJP — o Bharatiya Janata Party —, que é o braço político do RSS, o grupo que assassinou Mahatma Gandhi. Gandhi, o maior defensor da paz, da resistência não violenta, da desobediência civil. Um homem que foi fundamental na luta anticolonial contra os britânicos. Esse homem foi morto pelo RSS, e agora o representante político deles está no comando de uma das maiores potências nucleares do mundo.

No Paquistão, também temos grupos extremistas religiosos, como o TLP (Tehreek-e-Labbaik Pakistan), cuja política se resume a espalhar ódio contra minorias e contra qualquer um que não seja muçulmano. Mas esses grupos ainda estão em menor número. Já na Índia, esses grupos estão no poder há dez anos.

Claro que precisamos ter um debate sério sobre o tipo de destruição que as armas nucleares podem causar. Acho que estaríamos muito melhor se nenhum país tivesse acesso a esse tipo de armamento. Todos já vimos, com o Japão, a destruição que isso pode causar.

Mas para nós, no Paquistão, infelizmente, é uma questão de sobrevivência ter esse tipo de armamento. Porque nosso vizinho é um país com uma obsessão expansionista. A ideologia Hindutva, que guia Modi e seu partido, visa criar uma utopia apenas para hindus. Isso é extremamente preocupante.

Em um mundo ideal, ninguém teria armas nucleares. Eu não me sinto seguro sabendo que meu vizinho tem uma. Mas também não me sinto mais seguro sabendo que meu próprio país as possui. Por que precisamos ter esse tipo de arma que causa destruição em massa? Mas, no fim das contas, hoje, isso é o que nos impede de sermos invadidos ou esmagados por um vizinho muito mais poderoso.

Zaidan: Você levanta uma questão importante: não é apenas o fato de ter armas nucleares, mas quem as controla. Então, para encerrar, queria falar sobre a resistência. Como as pessoas estão resistindo na Caxemira? Como têm lutado pela autodeterminação? Que tipo de ações têm ocorrido?

Um país próximo, Bangladesh, teve recentemente uma revolução — um movimento estudantil e juvenil derrubou o governo. Você acha que esse exemplo inspirou o movimento na Caxemira? Como você vê essa resistência e as ações em prol da autodeterminação?

Haris: Com certeza, o movimento de Bangladesh — não só na Caxemira ou no Paquistão — inspirou pessoas em todo o mundo. E especialmente para nós, como jovens membros de um partido de esquerda, fomos profundamente inspirados por esse movimento. E eu acho que o mesmo vale para todo o Sul da Ásia e também para a Ásia em geral. Então, sim, quero falar sobre isso. Estava muito empolgado para falar sobre isso — a resistência da Caxemira. Na verdade, estou até arrepiado só de pensar no nível de resistência que essas pessoas têm mantido contra um inimigo tão imenso.

Quero mencionar alguns nomes que acho que precisam ser citados nesta conversa. O primeiro, claro, é Yasin Malik, que está preso há muitos anos por causa de suas crenças, de sua luta, de sua resistência pela autodeterminação do povo caxemir. Depois temos Syed Ali Geelani, que foi um grande homem, praticamente responsável sozinho por grande parte da luta contra a ocupação indiana.

E também gostaria de falar sobre o senhor Maqbool Bhat. Ele foi um dos pilares da resistência caxemir contra a ocupação indiana. Ele chegou a sequestrar um avião para chamar atenção para a causa do povo caxemir. E, no fim, ele foi capturado pelas autoridades e enforcado pelo governo indiano, numa prisão na Índia continental, em Delhi.

Pessoas como essas colocaram literalmente suas vidas em risco por seu povo — eles lutaram muito, sofreram muito. Há um livro de uma autora, Afsana Rashid, em que ela fala sobre as “meias-viúvas”. Esse termo que ela cunhou, “meias-viúvas”, se refere a mulheres cujos maridos desapareceram há muitos anos, há décadas, mas elas não podem nem chorar por eles, porque não há forma de confirmar se eles estão vivos ou mortos, e também não conseguem seguir com a vida normalmente. É uma atrocidade.

E acho que também precisamos mencionar, como dissemos no post, a Lei Negra — a AFSPA, de 1990 — que é um Ato das Forças Armadas de Jammu e Caxemira. Basicamente, essa lei permite que o Exército indiano, reviste qualquer casa sem mandado, prendam qualquer pessoa sem mandado, atirem em qualquer um que considerem uma ameaça, que esteja quebrando uma lei — ou mesmo que só esteja pensando em quebrar uma lei.

E todos esses membros das forças armadas estão isentos de qualquer responsabilidade perante o governo central ou estadual. Eles podem declarar qualquer área como “área perturbada”, aplicar a AFSPA, e então prender pessoas casa por casa sem jamais apresentá-las ao tribunal.

Em 2019, a Caxemira ainda tinha um certo grau de autonomia, pois, na constituição indiana, ela não era oficialmente um dos estados da Índia. Em 2019, o artigo 370 — que permitia alguma forma de autonomia à Caxemira — foi revogado pelo governo Modi. E, quando isso aconteceu, houve um apagão total da mídia e da internet durante um ano inteiro. Não havia nenhuma linha de comunicação entre o povo caxemir e o resto do mundo.

E mesmo nessas circunstâncias, o povo caxemir não ficou parado, não aceitou calado. Eu estava te falando sobre as “meias-viúvas” — há exemplos incríveis de coragem. Na cultura caxemir, o luto por alguém que se perdeu é algo muito privado, mas elas transformaram isso. Transformaram o luto pelos maridos, filhos, irmãos, parentes, em um ato público.

Agora, eles lamentam a perda dessas pessoas — que desapareceram ou foram mortas — publicamente, para que ninguém possa dizer que “nada está acontecendo”.

Há filmes saindo da Caxemira com uma força impressionante — recomendo um chamado Haider. Acho que você consegue assistir com legenda em inglês. E também tem muita arte saindo da Caxemira ocupada pela Índia — muitas músicas, músicas de resistência.

Esse nível de resistência contra a ocupação indiana é algo que… claro, há o exemplo dos palestinos, que estão resistindo firmemente contra o Estado mais brutal do mundo. Existem outros exemplos também, mas este está quase no mesmo nível. Porque, veja — em um pequeno pedaço de terra, há mais de 600 mil tropas do Exército indiano. Imagine que você tem que provar sua identidade em cada posto de controle, a cada quilômetro, sendo questionado por soldados indianos repetidamente.

Mesmo nessas circunstâncias, pessoas como Maqbool Bhat, como Syed Ali Geelani, como Yasin Malik — são a imagem da resiliência, da resistência. E acho que todos nós estamos melhores por causa deles. Todos nos inspiramos neles, e todos deveríamos agradecê-los por sua coragem, por sua resistência tão poderosa contra um inimigo tão imenso.

Zaidan: É muito poderoso ouvir como a luta, mesmo nas piores condições, nunca para — e como podemos construir resistência. Muito, muito forte ouvir isso. Acho que isso desenha um quadro muito importante para o povo do Brasil, que sabe muito pouco sobre esse tema. E acredito que é muito bom te ouvir, para que também possamos pensar em ações de solidariedade internacional. Como construir não apenas a solidariedade como repercussão — embora isso também seja importante — mas também ações em conjunto.

Haris: Com certeza, com certeza. Porque, claro, há lições a aprender com a resistência da Caxemira — para todos nós, basicamente, que estamos resistindo a governos como esses. Mesmo que não estejamos nas mesmas circunstâncias, ainda podemos aprender muito com eles. E isso pode ser um dos elementos que nos unam. Podemos planejar campanhas de solidariedade, podemos colaborar. Podemos planejar muitas ações, não apenas depois que algo trágico aconteça, mas de forma preventiva, proativa, podemos mostrar solidariedade ao povo caxemir para que eles também sintam que têm camaradas ao redor do mundo — do Brasil, dos EUA, do Paquistão — que estão pensando neles, ouvindo suas histórias, querendo ajudar, e que desejam ser considerados parte da mesma luta que eles.

Então sim, acho isso muito importante. E acho que foi uma iniciativa brilhante podermos falar sobre isso com tanto detalhe, com tanta profundidade — algo que raramente temos a chance de fazer.


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